Neste sábado, mais uma edição da coluna de contos sambistas do compositor Aloisio Villar, a “Enredo do Meu Samba”.

Transtorno de Personalidade

Aquela história me embrulhou o estômago. Meu pai, rindo, perguntou se eu estava passando mal e respondi que perdera o apetite. Seu Jair gargalhou e me chamou de fraco. Em vez de responder preferi ir ao banheiro.

No banheiro enquanto lavava meu rosto e olhava no espelho pensei “Manolo é um homem responsável, com certeza não usou carnes estranhas na feijoada” e voltei para a feijoada. Quando me encaminhava para a mesa vi Zé sambando igual a uma mulata ao som de “gatinha que dança é essa que o corpo fica todo mole”. Tentei comentar algo com a Bia e evidente que percebendo o constrangimento da situação minha ex mandou que eu ficasse quieto.

A tarde estava divertida, muita gente animada e via minha filha feliz que era o que mais importava. Meu pai pegou um tamborim e se juntou ao samba que era feito por alguns dos personagens a mim relatados como Maneta, Penteado, Benito, Tobias, Carlinhos e Baltazar. Enquanto Zé rebolava como uma globeleza lembrei a Bia da festa de sessenta anos de meu pai que ele realizou na quadra da Vizinha Faladeira e nós fomos. A diferença que era churrasco e não feijoada.

Bia sorriu como poucas vezes eu vira nos últimos tempos e lembrou que eu tomei um porre e fiquei imitando o Quinho do Salgueiro e dizendo que seria puxador de samba. Rimos muito e de certa forma eu conseguia através das boas lembranças ter minha família perto de mim.

Um homem muito distinto se aproximou de Manolo e lhe cumprimentou. Como eu estava do lado fui apresentado a ele que, depois dos cumprimentos, se afastou. Com ele distante Manolo comentou “esse tem uma história braba também por causa do irmão”. Perguntei se tinha a ver com samba e Manolo me respondeu: “não necessariamente o samba é o ponto principal, mas passa por ele sim já que tem uma porta bandeira envolvida”.

Pedi que Manolo me contasse a história e ele me respondeu que teria que começar de antes do surgimento da sambista, pela vida de Gaspar, o irmão de Saulo.

E ele me contou.

Do alto da Pedra da Gávea Gaspar olhava para baixo. A altura era grande e o homem chegava até o precipício e pensava em pular. Queria se matar, a vida não tinha mais sentido para ele. Tomado por uma profunda depressão, portador de esquizofrenia, Gaspar queria pular. Ouvia vozes mandando que pulasse, mas não teve coragem. Sentou na pedra e começou a chorar.

Abandonara a medicação, o psiquiatra, não queria mais estar bem, não queria mais viver desde a morte de Larissa. Larissa foi simplesmente o amor de sua vida.  Conheceram-se ainda no colégio e nunca mais se desgrudaram. Entraram juntos para a faculdade e se formaram em publicidade e propaganda. Depois foram trabalhar em agências diferentes, juntaram uma grana na batalha do dia a dia e abriram a própria agência deles tornando-se sócios. O começo não foi fácil, como normalmente não é, mas com o tempo as coisas foram se ajeitando e o dinheiro começou a entrar.

Compraram uma casa financiada, o sonho da casa própria. Tentaram ter filhos, mas nada de Larissa engravidar. Fizeram exames para saber se tinham problemas e Gaspar descobriu que era estéril. O rapaz se descontrolou quando soube e teve uma crise, quebrando parte da sala da casa. Larissa ficou chocada por nunca ver o marido em crise, mas decidiu apoiá-lo e levar a se tratar.

Começou a se consultar com o Dr. Molina e controlou a esquizofrenia com remédios, mas apesar do muito amor que unia o casal eles tinham problemas. Larissa queria fazer uma inseminação artificial enquanto Gaspar não aceitava que ela engravidasse com semem de outro homem. Essa divergência era motivo de muitas discussões, brigas ásperas, mas como o amor era maior que tudo, no fim se entendiam e tinham uma noite de amor na cama.

Eram o amor um do outro há muito tempo. Sócios, cúmplices, companheiros. Problemas existiam, mas qual casal não tem? O mais importante é que existia amor.

Certa ocasião Gaspar que era o responsável pela parte administrativa da agência sentia dor de cabeça, mas tinha que terminar trabalhos. Larissa que era de criação chegou na sala do marido e perguntou se não iria embora com ela. Gaspar respondeu que não, já que tinha coisas para resolver, mas que a esposa poderia ir embora. Larissa entrou na sala e deu um beijo apaixonado no marido se despedindo.

Gaspar continuou trabalhando e sentindo a dor de cabeça. Decidiu beber um copo de uísque para ver se melhorava e nada a dor só piorou. Desistiu do trabalho e deitou no sofá de sua sala decidido a dormir um pouco. Dormiu bastante, acordando apenas no começo da manhã. Preocupado por deixar Larissa sozinha olhou o celular e estranhou não ter mensagens nem ligações perdidas. Colocou o terno e decidiu ir pra casa tomar um banho e o café da manhã com a esposa.

Chegando viu uma movimentação estranha. Alguns carros da polícia parados, órgãos de imprensa e sua porta aberta. Assustou-se com a cena e tentou entrar na residência para ver o que ocorria. A polícia tentou impedir e Gaspar alegou ser o dono da casa, conseguindo entrar.

Entrou e viu uma cena aterrorizante. As paredes manchadas de sangue, móveis quebrados e uma enorme poça de sangue no carpete. Assustado, entrando em desespero caminhou um pouco mais e viu o corpo de Larissa ensangüentado, esfaqueado… Entrou em choque.

Seu irmão Saulo, o da feijoada e que é policial estava presente. Percebeu que o irmão estava no local e correu em sua direção para lhe abraçar e pedir calma. Gaspar chorava e gritava perguntando quem tinha feito aquilo com sua esposa.

A polícia investigava o crime enquanto Larissa era enterrada. Gaspar, com óculos escuros, ficou quieto o tempo todo. Todos estranhavam a frieza do homem, mas por dentro ele estava destruído. Naquela mesma noite entrou em casa, fechou todas as portas e janelas e ligou o gás tentando se matar. Por sorte Saulo chegou a tempo e evitou o pior. Praticamente obrigou Gaspar a ir morar com ele e colocou a casa à venda.

A polícia chegou a vários suspeitos, mas nada conseguiu provar – ficando um crime sem solução. E o tempo foi passando até chegar àquela situação da Pedra da Gávea.

Situação difícil. Gaspar desistira de viver e cabia a Saulo tentar trazer o irmão de volta a vida. Tentou de todos os modos possíveis, chamava para sair, tentava apresentar a algumas mulheres, mas Gaspar não queria. Até que um dia Saulo, por desencargo de consciência, chamou o irmão para um ensaio da escola de samba Unidos do Recreio porque sua namorada Jucilene seria nomeada rainha de bateria da escola. Para sua surpresa Gaspar topou.

Foram até a escola numa noite quente típica do verão carioca. Sentaram à mesa e Saulo todo bobo mostrava a um incomodado e já arrependido Gaspar sua namorada sambando. O homem entediado via a mulher sambar quando reparou no casal de mestre-sala e porta bandeira. Gaspar sempre gostou do bailado dos casais e parou para prestar atenção naquele.

Olhou e achou a porta bandeira linda. Uma mulata simpática, sorridente, graciosa e linda, muito linda. Gaspar estava enfeitiçado e perguntou a Saulo quem era a porta bandeira. O irmão sorriu, chamou Gaspar de “danado” e respondeu que ela se chamava Adele e era irmã de sua namorada. Gaspar muito interessado perguntou a Saulo se ela tinha namorado, o irmão respondeu que não e gargalhou contando que estava gostando de ver. Gaspar levou copo de cerveja a boca e não conseguia tirar os olhos de Adele.

No fim da apresentação Jucilene foi até a mesa que os dois se encontravam e deu um beijo em Saulo. O policial pediu à namorada que levasse Adele até a mesa e ela foi buscar. Adele se aproximou com a irmã e foi apresentada a um encantado Gaspar. As duas sentaram-se à mesa com os rapazes e passaram a noite lá bebendo e conversando.

O ensaio da escola acabou e emendaram a noite em um barzinho próximo. Papo vai, papo vem e Adele e Gaspar já estavam se beijando. Saulo propôs que continuassem a conversa em outro lugar. Os dois casais foram para um motel e cada casal foi para um quarto. Gaspar e Adele entraram e o rapaz pareceu tenso. Adele fez massagem em seus ombros e mandou que relaxasse que cuidaria bem dele.

Mandou que Gaspar deitasse de bruços e passou óleo por suas costas, fazendo depois uma massagem tailandesa. O sexo com a porta bandeira foi maravilhoso. A mulher foi um vulcão e Gaspar, que até então só tinha transado na vida com a comportada Larissa, ficou louco. Era daquilo que Gaspar precisava.

O caso com Adele era algo que tirava totalmente Gaspar de sua normalidade. A mulher era extremamente liberal no sexo e realizou todas as fantasias do homem. Com ela o publicitário foi pela primeira vez a uma casa de swing. Viu trocas de casais e com o tempo também praticava.

Também fez sexo a três. Ele, Adele e outra mulher. Realizou a fantasia de transar com duas mulheres ao mesmo tempo e conheceu novos tipos de prazer no seu corpo em lugares que nunca imaginara. Depois de muito tempo estava feliz, não queria mais morrer e estava completamente alucinado por aquela mulher, de quatro totalmente por ela e sendo capaz de realizar todas as suas vontades.

A única coisa que lhe incomodava era o fato de não poder beijá-la nem ficar muito tempo perto dela dentro da escola de samba. Insistiu para saber qual era o problema e Adele relutava em contar, até que decidiu abrir o jogo. Era amante do patrono da escola.

Gaspar ficou furioso com a revelação e perguntou porque ela não contara antes. Adele com lágrimas nos olhos respondeu que silenciou por vergonha. Ela não gostava de ser amante dele, sentia asco pelo bicheiro e só estava com ele porque precisava com aquele cargo de porta bandeira sustentar sua mãe doente.

Gaspar, abalado com a revelação, foi embora pensar no que fazer. Caminhou pela praia pensando se não era melhor se separar de Adele, mas estava completamente louco pela porta bandeira. Era fraco, não conseguiria se separar da mulher e foi até sua casa. Contou a Adele que aceitava a situação apesar de amá-la muito. Adele ouviu a tudo atentamente e contou que não queria que ele aceitasse. Gaspar não entendeu a resposta e Adele chegou em seu ouvido e fez um pedido:

– “Mata o canalha pra mim”.

Gaspar assustado se afastou de Adele e a mulher perguntou qual era o problema. Ele respondeu que nunca matara ninguém e não sabia se teria coragem. Adele perguntou se ele não lhe amava e não era capaz de fazer tudo por ela. Gaspar respondeu que sim, mas matar era demais.  Adele empurrou Gaspar até o lado de fora da sua casa e mandou que ele só lhe procurasse quando pudesse provar seu amor.

Fechou a porta na cara de Gaspar que foi pra casa beber e bebeu muito. Já embriagado encheu-se de coragem para matar o bicheiro e voltou à casa de Adele.

Bateu à porta da mulher que abriu e ele foi logo entrando e dizendo que mataria seu amante. Adele sorriu e entrou para o quarto, voltou com uma arma na mão e uma chave dizendo que a arma estava carregada e a chave era da porta de casa. O homem não gostava de seguranças e morava sozinho: seria fácil para ele entrar. Gaspar botou a arma na cintura, a chave no bolso e comentou que antes tinha que fazer uma coisa ali começando a beijar Adele.

Algum tempo depois chegou de carro em frente à casa do bicheiro e com a chave abriu a porta. Notou a casa vazia, escura e devagar foi entrando. Subiu a escada em direção ao quarto.

Chegou à frente do quarto do bicheiro lembrando da indicação de local de Adele e devagar mexeu na maçaneta, entrando. Encontrou o bicheiro transando com uma loira, o homem se assustou e perguntou o que ele fazia lá. Gaspar atirou no bicheiro e na mulher, depois limpou as digitais da arma e jogou sobre a cama, fechou a porta do quarto e se encaminhou para sair da casa.

Saindo da mesma encontrou vários carros da polícia, delegado e muitos policiais (entre eles Saulo) e o delegado mandou que ele parasse. Gaspar levantou as mãos e os policiais se aproximaram e algemaram o publicitário. Com Gaspar algemado o delegado deu voz de prisão nele por diversos assassinatos, entre eles de Larissa.

Gaspar apagara da memória, mas no dia que adormeceu no escritório ele acordou e foi pra casa. Discutiu feio com a mulher mais uma vez devido a inseminação e como tinha bebido teve uma crise, esfaqueando a esposa. Depois calmamente jogou a faca fora e voltou para a agência.

Saulo olhava incrédulo o irmão enquanto policiais de dentro da casa falavam ter mais dois corpos no quarto. Gaspar com olhar vidrado dizia ao irmão que era inocente e apenas seguia vozes enquanto era levado ao camburão. O delegado chamou Saulo e foi até o porta malas do carro que Gaspar dirigia e falou “olha isso”. Abriu o bagageiro e lá estava o corpo de Adele, morta com três tiros.

Saulo não conseguia dizer uma palavra e apenas olhava o corpo da porta bandeira, não acreditando em toda aquela barbárie. A ponte que separa a normalidade da loucura muitas vezes pode ser frágil.

A loucura faz parte de nós e só espera uma oportunidade.