Em edição extraordinária, a coluna “Lacombianas”, da jornalista Milly Lacombe, nos conta uma noite de quarta feira com muitas emoções sob a ótica de uma torcedora corintiana – e um final não tão feliz.

Não contém Amarilla

Para que torcemos? Para que nos esgoelamos por um gol quando bastava que captássemos no ar que aquela seria uma noite de destinos decididos?

Já não tinha ficado muito evidente desde o minuto cinco que Amarilla não deixaria o Corinthians sair do Pacaembu com uma vitória? Seja por incompetência, por má vontade ou por coisa muito pior e ainda mais grotesca. Não era essa a sensação que pairava no ar como neblina em uma noite fria de outono? Quem estava no estádio viu a poeira passando. Eu vi a poeira passando.

Mas o torcedor é um otimista, um ingênuo, um infeliz, mesmo o mais pessimista, maduro e afortunado. E só aos 43 minutos do segundo tempo parecíamos ter, coletivamente, entendido a tragédia. Estávamos fora. Fora porque um trio de arbitragem assim decidiu. Não perdemos para o Boca, perdemos para Amarilla e sua gangue, que erraram e erraram e erraram e erraram e erraram – e então erraram uma definitiva vez. Seja por incompetência, por implicância ou por motivo muito mais grotesco.

E não me venham os devotos do pragmatismo dizer que o Corinthians sacramentou sua sorte em Buenos Aires, quando jogou acovardadamente. Se é para analisar com dados, fatos e números é muito mais razoável escolher o “perdemos porque o juiz errou imperialmente contra um mesmo time no mínimo quatro vezes durante um mesmo jogo”, ou até o apaixonado “perdemos porque fomos roubados”.

O diabo é que o juiz pilantra quando está a fim de encrencar – seja por incompetência, implicância ou opção mais grotesca – não erra apenas na grande jogada: erra nas pequenas, e desde muito cedo. Vai invertendo faltas e laterais, amarelando jogador que recebeu a falta ou reclamou corretamente, interrompendo o jogo a todo o instante na tentativa de calar a arquibancada.

É assim que juiz malandro – seja por incompetência, implicância ou opção mais grotesca – mina um time.

E foi o que aconteceu no dia 15 de maio de 2013 no Pacaembu. Estava escrito há dez mil anos que o Corinthians não venceria o Boca naquela noite. Deixemos pra lá o erro – seja por incompetência, implicância ou opção mais grotesca – contra o Tijuana, quando o trio de arbitragem, que não continha Amarilla, validou um gol com triplo impedimento. O Corinthians já teve um gol contra validado com quintúplo impedimento, ocasião em que teria que vencer o Cianorte por quatro gols de diferença pela Copa do Brasil. Mas essa era uma noite diferente, que não continha Amarilla nem Conmebol, e o Corinthians fez o impossível. O Corinthians, esse iconoclasta, esse time que não entende o que é impossível, foi lá e fez, numa das viradas mais espetaculares e emocionantes que já vi dentro de um estádio.

Ah, mas voltam os devoradores de dados e números e estatísticas, o Corinthians é o time que mais ganha roubado. De onde veio essa? Mostrem-me os números, idiotas da objetividade. Depois mostrem-me um time que nunca ganhou ou perdeu por erro de arbitragem – seja por incompetência, implicância ou opção ainda mais grotesca. E, ainda que um cientista vestido de jaleco branco venha com os números, uso e adapto Nelson Rodrigues: os números são burros.

Burros porque não se pode medir paixão. Burros porque não se pode provar uma sensação, uma impressão, uma percepção construída a partir de desejos pré-estabelecidos, de pré-conceitos, de percepções. Burros porque você não pode sequer pensar em tratar o mais subjetivo dos esportes – o futebol – de forma cartesiana.

Para pessoas como essas, o inferno tem que reservar um lugar especial.

Vou citar alguém que explicou a vida e os homens bastante melhor e mais brilhantemente do que eu estou tentando, desse jeito destrambelhado, fazer. Vou citar Eça de Queirós: “Apesar de séculos de geometria me afirmarem que a linha reta é a mais curta distância entre dois pontos, se eu achasse que para subir da porta do hotel Universal à porta da Casa Havanesa me saía mais direto e breve rodear pelo bairro de São Martinho e pelos Altos da Graça, declararia logo à secular geometria que a distância mais curta entre dois pontos é uma curva vadia e delirante”.

Nós, homens e mulheres, não somos seres que funcionam racionalmente. Somos emoção. Como é o futebol. Como é a vida. O time mais prejudicado da história, a despeito de dados e planilhas e gráficos e contas exatas, será sempre o seu. O mais ajudado, a despeito de fatos e dados e matemáticas, sempre o grande rival. E daí que o time que perdeu teve mais posse de bola? E daí que o campeão foi o último na etapa classificatória? E daí que o time que mais encantou perdeu na final? E daí que aquele time nunca venceu jogando de calções brancos em partidas que começam depois que o sol se pôs?

Quem busca por estatísticas e justiça precisa urgentemente mudar de esporte e ir torcer no baseball, golfe ou xadrez. Futebol é arrebatadoramente sedutor porque é o único esporte tão injusto quanto a vida. Quem diz “o time A mereceu vencer” não entende o jogo. O verbo “merecer” não tem lugar na análise futebolística. A bem da verdade, a análise não tem lugar na futebolística. Futebol não é número. Futebol não é matemática. Futebol não é justo. Futebol, aliás, é uma merda – como é a vida.

Por outro lado, só o futebol pode provocar reações que não encontram símbolos, signos e letras para serem traduzidas. Na mesma noite em que a vontade do irracional que nos habita é descobrir o endereço do Amarilla e fazer ele confessar, sob a mira de uma bazuca, o roubo premeditado você se pega envolvido por uma passa de 40 mil pessoas que, depois do apito final, canta como se o time tivesse vencido. Na mesma noite em que a vontade de chorar pelo desespero que só a injustiça provoca inunda todas as suas células, o pranto que você deixa sair é o de amor porque, mesmo depois de ver seu time ser imperialmente tungado durante 90 minutos, tem a seu lado 40 mil malucos que resolvem cantar alucinada e apaixonadamente em homenagem à camisa que amam.

E aquele voz que é formada pela junção de 40 mil outras vozes provoca uma espécie de transe coletivo, um pequeno mas poderoso vestígio de Deus. Nessa hora o jogo entra em perspectiva até para o mais pragmático; danem-se os números, a posse de bola, os escanteios, os erros, os roubos, os equívocos, os deslizes. O que importa é sentir, é deixar que aquela voz amalucada e cheia de paixão ecoe pelo universo, cantando depois da derrota como se o time tivesse acabado de ser campeão.

E daí que a torcida do Corinthians não é a única no mundo capaz de ficar quase meia hora vibrando dentro do estádio depois de ver seu time eliminado? O fato de talvez haver outras torcidas tão loucas diminui a grandeza do que aconteceu na quarta feira à noite no Pacaembu? Qualquer manifestação de amor, coletiva ou individual, deveria ser vista – e sentida – como um vestígio de Deus.

Todos nós que amamos o jogo já tivemos, dentro de um estádio, a sensação de que deve haver algo maior a nos unir, a nos embalar, a justificar tanta dor e sofrimento. Um Amarilla nunca vencerá o Corinthians. Dois gols equivocadamente anulados e dois penaltis não marcados nunca interromperão o destino de um time. Somos infinitamente pequenos para enxergar a fotografia em toda a sua amplitude: a vida, o futebol, é muito mais do que uma grande dor, ou duas, ou três, ou vinte ou cem. A vida é o que acontece quando você se deixa pular e cantar de emoção e amor depois de uma derrota dolorida e injusta.

Felizes aquelas tribos que enterram seus membros com festas, danças e cânticos. Porque, como um torcedor apaixonado, eles entendem que não acabou. Nunca acaba. E é para isso que vamos ao estádio, e torcemos e gritamos e vibramos: para que tenhamos, ainda que por 90 minutos, a sensação de que nunca acaba, e de que somos feitos de uma mesma substância, e de que somos parte de uma coisa só, e de que, afinal, sabemos e podemos amar mesmo diante das piores e mais trágicas circunstâncias. É o que nos aproxima de Deus, se é que ele existe. Porque é Deus, se é que ele existe, que sabe amar mesmo sob as mais trágicas e inexplicáveis circunstâncias, não é? Como um torcedor de futebol.

Ganhar é delicioso, mas perder é fundamental porque mostra do que somos verdadeiramente feitos. Então, em resumo, o que eu queria mesmo dizer é o seguinte:

Chupa, Amarilla.

[N.do.E.: pessoalmente, teria anulado um dos gols, mas a colunista tem total razão em reclamar da arbitragem. E, como Flamengo que sou, entendo esta relação visceral entre a torcida e o time…]

3 Replies to “Lacombianas – “Não contém Amarilla””

  1. Lendo a coluna da Milly, tenho a certeza que estoy no lugar stcerto. Como adoro estatística, sou louco por baseball e xadrez e odeio futebol. Odeio exatamente porque ninguém faz nada conta os Amarillas da vida.
    Se eu, como árbitro de xadrez, faço o que fez esse senhor, estaria suspenso da federação por pelo menos 6 meses.

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