Nesta sexta feira, mais uma edição da coluna “Cinecasulofilia”, assinada pelo cineasta, crítico e professor de cinema Marcelo Ikeda. Como sempre, publicada em parceria com o blog de mesmo nome.

Conto dos Crisântemos Tardios

de Kenji Mizoguchi

Primeiro filme de consagração da maturidade de Mizoguchi, realizado em 1939, curiosamente o mesmo ano de A regra do jogo.

Dois filmes bem diferentes; dois filmes bem semelhantes. Dois filmes sobre o processo de representação: a vida é o maior dos palcos do teatro. Dois filmes que utilizam de estratégias de encenação mais realistas (especialmente a profundidade de campo) justamente para problematizar a construção do realismo na vida.

Mas o tom farsesco, burlesco de Renoir se afasta do olhar rigoroso, do cinema ético de Mizoguchi. Se CRISÂNTEMOS TARDIOS é sem dúvida um filme sobre as tensões entre vida e representação, ou ainda, sobre os limites sombrios entre criação e vida, outra faceta do filme é sem dúvida entre seguir ou trair a tradição.

E Mizoguchi, eterno japonês, não consegue ter uma relação de aversão à tradição: se de um lado seu filme transpira uma imensa insatisfação com o cheiro embolororado dos rituais anacrônicos do passado, Mizoguchi “quer mudar para continuar o mesmo”. Me parece que Mizoguchi vê essa velha trupe de teatro como fariseus, e que só se deve desmascarar a tradição quando, embolorada, ela não deixa transparecer a essência dos eternos valores da vocação do artista e da sua obra.

Se Mizoguchi não consegue romper com a tradição – pelo menos com os valores de uma tradição do teatro nô e do kabuki orientais – ele precisa romper com a superfície de bolor, com essa casca, para fazer sua arte renascer. E assim Mizoguchi “inaugura” o cinema moderno no Japão do entreguerras.

Os longos planossequências de CRISÂNTEMOS TARDIOS mostram penumbras, áreas de sombras pelas quais esse personagem pode caminhar. Ele perambula por um palco (palco entre palcos), do palco do teatro para o palco dos estúdios em que esse próprio filme é filmado: esse personagem que não parece ser dono da sua própria vida, que rompe com o que se espera dele para, no final, “cumprir o seu destino” e fazer exatamente o que se espera dele. Uma marionete que perambula como um sonâmbulo pelos palcos montados por Mizoguchi, em enormes travellings e em grandes angulares extremamente atípicas para a época.

Quando perambula nesse palco, o cinema de Mizoguchi se aproxima do teatro, e ao mesmo tempo se afasta dele (teatro, vida, cinema, é difícil dizer…). Ou ainda, de palco em palco, não sabemos onde ele começa ou onde termina – essa é a vocação “moderna” de CRISÂNTEMOS TARDIOS.

Ou, poderíamos dizer de outra forma: a modernidade do filme está quando perguntamos ao final: quem é de fato esse personagem? Até que ponto ele é livre? Até que ponto ele pôde viver sua própria vida, ou viveu a vida de um personagem de si mesmo? Muito mais poderia (deveria) ser dito sobre esse filme, como, por exemplo, sobre o papel da personagem feminina – a verdadeira protagonista do filme. Nos seus filmes áureos dos anos cinquenta, Mizoguchi vai retomar, de várias perspectivas, esses olhares: em CONTOS DA LUA VAGA, em INTENDENTE SANSHO, em A VIDA DE OHARU, em mais alguns outros. O gesto nobre de Otoku. O gesto nobre de Mizoguchi (e Yoda).

Quando, após a apresentação que consagra a “ressurreição” de Kikunosuke, Otoku se retira do “backstage” e sai da casa de espetáculos, caminha lentamente até cair agachada junto a uma árvore. São nesses momentos é que fica mais que claro o cinema ético de Mizoguchi. Em optar, nesse momento, em acompanhar a consciência dessa personagem, do seu fim. (São os dois planos – ver abaixo a partir de 1h44min).