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Nesta quarta feira a coluna “Histórias Brasileiras”, do historiador Luiz Antonio Simas, conta uma história inacreditável, mas verídica, da Santa Inquisição brasileira: o processo em que formigas foram excomungadas. Vamos ao texto.

O Tinhoso Está Solto Nos Trópicos

Não pretendia tecer maiores comentários sobre o fato, mas a verdade é que as diatribes do pastor Feliciano sobre a forte influência do diabo nas terras do Brasil me arremessaram aos tempos coloniais, em que o Santo Ofício da Inquisição concluiu que o Tinhoso estava pintando e bordando por estas bandas. O Santo Ofício, aliás, daria um baita enredo de escola de samba. Explico.

Foi por iniciativa do rei D. João III que, em 1536, o Santo Ofício da Inquisição se instalou em Portugal. Pouco depois, os primeiros hereges começaram a ser queimados na terrinha. Foi o mesmo rei que considerou a necessidade de expandir a atuação dos terríveis tribunais da fé para as colônias.

A fama do Brasil como uma espécie de Sodoma tropical era conhecida. O padre Manoel da Nóbrega, um dos primeiros jesuítas a chegar por essas bandas, considerou que a América portuguesa era um valhacouto de pecadores, adúlteros, onanistas, tarados, incestuosos e maníacos. Nóbrega acreditava, como também defendia frei Vicente do Salvador, que a troca do nome da colônia de Santa Cruz para Brasil fora obra do próprio demônio e condenara para todo sempre essas plagas.

Para combater os pecados nos trópicos, chegou à colônia em 1591 o desembargador Heitor Furtado de Mendonça, o primeiro visitador do Santo Ofício a investigar os crimes contra a fé no Brasil.

Durante os quatro anos que passou na colônia, Heitor Furtado investigou delitos nas capitanias de Pernambuco, Bahia, Itamaracá e Paraíba. Assim que chegava a alguma área, o inquisidor proclamava o Édito da Graça: os fiéis tinham trinta dias para confessar seus pecados, escapando assim dos castigos corporais, da morte na fogueira e do confisco de bens. Depois desses dias iniciais, começava o “pega pra capar”, as terríveis denunciações. Era um tal de vizinho denunciar vizinho, mulher denunciar marido, escravo denunciar senhor e senhor denunciar escravo que não estava no gibi.

Nos dois anos em que esteve na Bahia, Heitor Furtado investigou 133 casos confessados ou denunciados. Listou, entre outros, quatro pactos com o diabo, 29 blasfêmias, 19 sodomias, 43 masturbações, dois usos de vestidos de festa aos sábados, uma defesa pública da fornicação, três possessões por espíritos de pretos velhos, oito coitos entre homens e animais, um coito entre um jovem e um tronco de bananeira (imaginem isso em um carro com as alegorias vivas de Paulo Barros) e cinco casos em que os denunciados seriam o próprio Sete Barbas. Concluiu que o Brasil era um caso perdido, tamanhas as sacanagens e heresias que rolavam por aqui.

Mas o grande momento dos desvarios do Santo Ofício no Brasil foi outro: Leio, em alguns registros da história da província do Maranhão, que, em 1713, os religiosos de um convento em Piedade travaram dura batalha contra centenas de formigas. Os impertinentes insetos himenópteros estavam invadindo a despensa do convento para comer a farinha dos padres.

As safadinhas, pelos relatos dos apavorados religiosos, pertenciam a espécie das iridomyrmex humilis, as famosas formigas-açucareiras, que se caracterizam pelo péssimo hábito de invadir casas em busca de qualquer tipo de alimento. Eram elas, sem dúvidas, que estavam atazanando o juízo dos homens de Deus.

Após infrutíferas tentativas de eliminar os insetos, os padres resolveram processar as formigas no Tribunal da Divina Providência, cuja sede no Maranhão era presidida pelo vigário-geral. As formigas foram julgadas e condenadas severamente. O tribunal estabeleceu que os religiosos devessem demarcar uma área para que as formigas se locomovessem; se as vilãs da história ultrapassassem o espaço determinado, seriam submetidas ao ritual de excomunhão – a mais vil das condenações.

Os leitores que acham que essa memorável passagem do direito canônico nacional terminou aí, estão enganados. O tribunal determinou que a sentença fosse lida por um padre na boca do formigueiro. Tenho amigos advogados que, certamente, concordarão que o procedimento correto era mesmo o de comunicar a sentença a quem de direito.

Acontece que as formigas, tremendamente subversivas, não respeitaram a decisão das autoridades canônicas; as hereges continuaram invadindo a despensa do convento, sem demonstrar receio algum do risco de excomunhão a que estavam sujeitas.

Diante do comportamento das formigas, que encheram mesmo as burras de farinha, o tribunal determinou a excomunhão de todo o formigueiro do convento. A sentença foi lavrada e o rito de condenação foi sumariamente executado, com a presença do vigário-geral.  

Considerando-se que a Igreja Católica já fez o ‘mea culpa’ dos descalabros do Santo Ofício – João Paulo II, por exemplo, pediu desculpas pela perseguição sofrida por Galileu Galilei – acho que o Papa Francisco poderia, em sua visita ao Brasil agendada para a Jornada da Juventude de 2013, pedir desculpas às formiguinhas maranhenses excomungadas. Fica a sugestão.

Abraços.

P.S. – Dicas de leituras básicas sobre o tema: Laura de Mello e Souza: O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo, Companhia das Letras, 2009 / Ronaldo Vainfas: Trópico dos Pecados. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997.

2 Replies to “Histórias Brasileiras – “O Tinhoso Está Solto Nos Trópicos””

  1. Mais uma vez sensacional. Estudei um pouco a inquisição brasileira para o vestibular e sabia da desolação do desembargador com a terra brasilis. Mas essa das formigas, juro que não conhecia.

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