mario-magalhaes-165014

Nesta segunda feira, a coluna “História e Outros Assuntos”, do doutorando em História Fabrício Gomes, traz uma entrevista com o autor da recente biografia de Carlos Marighella – já resenhada neste mesmo blog.

Mário Magalhães, autor de “Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo

Mário Magalhães nasceu no Rio de Janeiro na primeira semana de abril de 1964. Formou-se em Jornalismo na Escola de Comunicação da UFRJ. Trabalhou nos jornais Tribuna da Imprensa, O Globo, O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo, diário do qual foi repórter especial, colunista e ombudsman. Recebeu mais de 20 prêmios, entre eles: Every Human Has Rights Media Awards, Lorenzo Natali Prize, Prêmio Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), Medalha Chico Mendes de Direitos Humanos, Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos e Anistia, Prêmio AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros), Grande Prêmio Esso de Jornalismo, Prêmio Folha de Reportagem, Prêmio Direitos Humanos-RS e Prêmio Dom Hélder Câmara de Imprensa (da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Lançou em 2012 o livro “Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo”, pela Companhia das Letras. O livro recebeu o Prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Artes) como melhor biografia do ano.

Mário gentilmente concedeu uma pequena entrevista a esse blog, contando um pouco sobre seu trabalho na biografia de Marighella: 

1. Como você teve a ideia de escrever a biografia de Carlos Marighella? Algum motivo especial? 

MM – Nasci na primeira semana de abril de 1964, a do golpe de Estado que mudou a história do Brasil. Em 2003, eu tinha 39 anos e não queria virar quarentão sem iniciar um mergulho numa reportagem de fôlego, sem as amarras de tempo e espaço próprias de uma redação de jornal – eu era repórter especial da “Folha de S. Paulo”.

Como queria contar uma vida, levantei as opções, como um repórter busca pautas. Não encontrei trajetória mais fascinante para investigar e narrar que a de Carlos Marighella (1911-69). Não produzi nem uma hagiografia, propagandeando o protagonista, nem um libelo contra ele. E sim uma reportagem, procurando oferecer informações sobre o que ele fez, pensou e disse, para que cada leitor forme seu próprio juízo. 

2. Quanto tempo esse trabalho consumiu? Você se dedicou só a isso? Como foi a sua rotina de trabalho para escrever essa biografia? Me lembro numa palestra sua, que fui, que você citou números “assustadores” (risos) sobre número de livros que leu, pessoas que entrevistou etc. Poderia citar? 

MM – Foram nove anos de trabalho, dos quais cinco anos e nove meses em regime de dedicação exclusiva. Entrevistei 256 pessoas, algumas em várias sessões. Cerca de 40 já faleceram. Como eu brinco, não que eu seja pé-frio, mas eram octogenários e nonagenários, contemporâneos de um homem nascido no começo do século XX. Até com uma antiga professora de Marighella, de quase cem anos, eu me encontrei.

Tive acesso a aproximadamente 70 mil páginas de documentos, oriundos de 32 arquivos públicos e privados de Brasil, Paraguai, Estados Unidos, República Tcheca e Rússia. Em boa parte, papéis secretos na origem, seja os produzidos pelo aparato de Estado, seja os da lavra de organizações revolucionárias clandestinas. A bibliografia soma 600 títulos, alcançando quase 700 volumes (só a história oral do Exército sobre a ditadura reúne 15 tomos). Minha rotina foi de suor – muito trabalho – e disciplina, empregando os métodos e as lições que aprendi em um quarto de século de jornalismo. 

3. Marighella foi deputado federal pelo PCB em um momento onde o partido havia saído da ilegalidade – você inclusive conta que Marighella levava uma vida bastante simples, doando a maior parte de seus proventos ao Partido. Logo depois, o PCB voltou à ilegalidade. Muitos historiadores consideram o período que vai de 1946 a 1964 como o “tempo da experiência democrática brasileira” – o que é bastante polêmico, já que, se por um lado o Rio de Janeiro conta com 14 periódicos circulando pela cidade, por outro há partidos com registros cassados – o próprio PCB – e políticos presos. Como você analisa essa questão? Foi, de fato, um período democrático ou não? 

MM – Sim e não.

O presidente Eurico Gaspar Dutra (1946-51) foi eleito diretamente, mas logo se empenhou em proibir legendas como o PCB, que tinha Marighella entre suas figuras mais conhecidas. Sua base parlamentar aprovou leis asfixiando a livre organização sindical e proibindo o direito de greve. No governo Dutra, foram assassinados mais militantes do PCB que na ditadura instaurada em 1964.

O jornalista e historiador Pedro Estevam da Rocha Pomar tem uma expressão feliz para classificar aquele tempo, “democracia intolerante”. O PCB permaneceu na ilegalidade depois de 1947, mas foi ganhando espaço até adquirir um status de “legalidade de fato” nos anos que precederam 1964, como o partido reconheceu. Em tempo: Marighella doava ao PCB 92% do salário como constituinte (1946) e deputado federal (1946-48). Ficava com meros 8%.

4. O PCB enfrenta até hoje profundas críticas quanto a sua atitude no pré-1964, de não ter pego, de fato, em armas, como era esperado. Houve inclusive uma relação bastante estremecida de Marighella com Luís Carlos Prestes. O livro quebra a ideia de que toda a esquerda atuava num bloco monolítico contra o regime – havia muitos grupos pensando em propostas distintas. Pelo que você pesquisou do Marighella, o que ele pensava sobre a postura que deveria ser adotada? 

MM – Marighella não era partidário de “pegar em armas” antes do golpe de 1964. O que a documentação partidária demonstra e os testemunhos confirmam é que ele se opunha à política de subserviência do PCB em relação ao presidente João Goulart. As quase duas dezenas de cadernetas do dirigente comunista Luiz Carlos Prestes, com anotações de 1961 a 63, evidenciam que Marighella e outros líderes, como Mário Alves, já desenvolviam uma política mais à esquerda e se confrontavam com a maioria do comando pecebista. Como o partido condicionou sua sorte à de Jango, quando o presidente decidiu não resistir ao golpe, o PCB foi derrotado junto com ele. 

5. O gênero biográfico teve uma retomada a partir dos anos 1980 – juntamente com a renovação da História Política -, após ficar durante muitas décadas relegada a segundo plano. Hoje vemos jornalistas e principalmente historiadores retomando essa prática biográfica, mas com certos cuidados, como por exemplo, a “ilusão biográfica” (termo cunhado pelo sociólogo Pierre Bourdieu, que diz que historiadores devem evitar escrever uma história cronológica, com linearidade e previsibilidade – afinal, já sabemos o início, o meio e o fim das personagens que pesquisamos).

Como você vê essa questão de jornalistas escrevendo biografias, em contraposição a muitos historiadores que ainda vêem com ressalvas essa prática fora da Academia? Sua ampla pesquisa demonstra que você se baseou em fontes seguras e teve bastante rigor acadêmico na pesquisa. 

MM – Como sabemos, há restrições arraigadas de historiadores e jornalistas sobre a elaboração de biografias por uns e outros. Grosso modo, historiadores costumam identificar falta de profundidade nas biografias jornalísticas. Muitas vezes estão cobertos de razão.

Os jornalistas reclamam com recorrência da prosa enfadonha de historiadores. Não é raro que estejam corretos. Rejeitando preconceitos anacrônicos, considero que o rigor acadêmico e a narrativa jornalística podem e devem conviver em harmonia. Tentei escrever uma biografia com uma narrativa esteticamente encantadora, seduzindo o leitor, o que é uma característica de repórter.

Ao fim do volume, empregando um instrumento caro à academia, publiquei 2.580 notas sobre fontes, expondo escrupulosamente a origem das informações mais relevantes e interessantes. A quantidade e qualidade de depoentes é matéria-prima cara tanto a historiadores (que falam em história oral) quanto para jornalistas (que adotam o termo entrevista). 

6. Algumas pessoas não entenderam quando você escreveu que Marighella foi “o guerrilheiro que incendiou o mundo”. Poderia explicar essa frase/afirmação?

MM – Todas as restrições – mais dúvidas do que restrições – que ouvi partiram de pessoas que ainda não haviam lido a biografia. O livro fundamenta à exaustão o subtítulo. Ao ser declarado “inimigo público número um” pela ditadura, em novembro de 1968, Marighella ganha ainda mais projeção no Brasil.

Com a repercussão de ações espetaculares de sua organização, a ALN (Ação Libertadora Nacional), ele se transforma em um personagem internacional. Marighella e a ALN foram ajudados por personalidades como o filósofo francês Jean-Paul Sartre (publicou cinco textos de Marighella e da ALN na revista “Les Temps Modernes”), pelo cineasta francês Jean-Luc Godard (com dinheiro, entregue ao colega marighellista Glauber Rocha), pelo cineasta italiano Luchino Visconti (dinheiro) e o pintor catalão Joan Miró (desenhos para leiloar).

Não foi só. Depois da morte do guerrilheiro argentino-cubano Ernesto Che Guevara, a CIA, Central Intelligence Agency norte-americana, apontou Marighella como o sucessor de Che como o grande inspirador de movimentos rebeldes na América Latina. Ações da ALN, como a tomada dos transmissores da Rádio Nacional paulista, em agosto de 1969, ganharam enorme destaque em jornais como o “New York Times”.

O “Minimanual do guerrilheiro urbano”, escrito por Marighella, animou movimentos revolucionários e contestatórios em todo o planeta. Até hoje é empregado por militantes de esquerda. E estudado por historiadores e academias militares e de inteligência. Há muito mais, como conto no livro. 

7. Marighella só soube do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick quando o mesmo já havia sido consumado – inclusive era contrário aquela ação. No seu entender, isso já indica que ele estaria “perdendo o prestígio” junto à esquerda revolucionária? 

MM – A biografia conta em minúcias o que ocorreu, como uma série de informações absolutamente inéditas. Não tem nada a ver com perda de prestígio – pelo contrário, no começo de setembro de 1969, quando ocorreu o sequestro, Marighella e a ALN viviam seu auge.

Marighella sustentava que ninguém precisa pedir autorização para agir contra a ditadura. Foi o que ocorreu: companheiros seus da ALN se uniram a um grupo carioca – a Dissidência da Guanabara, logo rebatizada como MR-8 – para sequestrar o embaixador, na ação mais espetacular da luta armada. 

8. Como seria o “Brasil ideal” de Carlos Marighella? Na História evitamos sempre o “se”, mas no seu entender, caso a revolução do proletariado tivesse prosperado, qual seria o papel de Carlos Marighella? Como ele estaria situado no cenário político brasileiro? 

MM – A ALN era uma organização revolucionária, mas não defendia a introdução de uma ditadura do proletariado, embora essa pudesse ser a agenda de alguns dos seus militantes. A agenda de Marighella foi sintetizada no manifesto “Ao povo brasileiro”, cujos pontos principais eu reproduzi no livro.

Marighella hoje? Seria adivinhação, ofício no qual não sou versado. 

9. Alguma nova pesquisa em vista? Algum novo trabalho biográfico? Se uma pessoa quiser escrever hoje, uma biografia, qual a dica que você daria?

MM – Primeiro preciso que Marighella desencarne de mim. Sugestão? Se não fizer biografia com paixão, gostando ou não do personagem, não vale a pena.

One Reply to “História & Outros Assuntos – “Entrevista: Mário Magalhães, autor de “Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo””

Comments are closed.