ctiNeste sábado, mais uma edição da coluna de contos do compositor Aloisio Villar, a “Buraco da Fechadura”.

A Ligação

Lara era uma menina feliz, cheia de vida. Recém formada em publicidade e propaganda, conseguiu um bom emprego numa das principais agências do país e começava a percorrer uma nova estrada.

Noiva de Guto, planejavam casamento. O rapaz era advogado e os dois tinham um amor em comum: esportes radicais. Nos fins de semana praticavam alpinismo, rapel, trilhas, vôo livre, eram cheios de saúde e energia.

Compraram um apartamento, móveis, eletrodomésticos para o local e casaram-se na igreja da Candelária no Rio de Janeiro. Uma mega festa foi realizada pelos pais do casal, pessoas ricas e no fim uma viagem a Paris para a lua de mel.

Voltaram e ‘caíram dentro’ do trabalho para as conquistas do dia a dia. Guto e Lara cada dia que passava estavam mais apaixonados e a menina tinha sonho de filhos. Depois de dois anos de casamento o casal resolveu que era hora de tentar e começaram a pensar no primeiro rebento.

Algum tempo depois Lara notou o atraso de sua menstruação e sentiu enjôos. Todos começaram a sentir esperanças e a moça resolveu fazer o teste. Guto quando chegou em casa encontrou um sapatinho de bebê preso na porta do quarto e começou a chorar. Lara estava grávida.

A moça teve uma gravidez tranqüila, fez pré-natal sem problemas e descobriu que seria mãe de um menino a quem decidiram dar o nome de Luis Antonio, em homenagem ao pai de Lara. Tudo ia bem e foi marcada cesariana. O casal decidiu passar o fim de semana anterior ao nascimento na Serra. Estava friozinho então curtiam o tempo com fondue, vinho e a expectativa da chegada do menino. À beira da lareira Guto e Lara faziam planos para o futuro, imaginavam como seria a vida do filho, seu crescimento, a profissão que escolheria e não conseguiam segurar a felicidade com o momento em que viviam.

Zezinho era um cara esforçado, trabalhador. Não teve muito estudo na vida, largando a escola no ensino fundamental. Desde pequeno trabalhava para ajudar a família e aprendeu a fazer de tudo um pouco. Eletricista, soldador, serralheiro, encanador, pintor, o que pintasse ele fazia.

Conseguiu dessa forma juntar um dinheiro e comprou um terreno na favela que morava. Com ajuda dos amigos aos poucos construiu a casa própria, seu maior orgulho.

Tímido, nunca foi namorador, mas se apaixonou por uma vizinha chamada Jurema. Tornaram-se amigos e um dia Zezinho tomou coragem e conseguiu se declarar. Recebeu em troca um beijo apaixonado e assim foi o começo do namoro.

Namoraram por um tempo e depois Zezinho, sentindo-se sozinho e com vontade de criar uma família, decidiu chamar Jurema para morar com ele. Em dois dias fizeram toda a mudança e começaram a dividir o lar.

Tiveram um início feliz. A grana era curta, mas dava para levar e o mais importante era que nada faltava em casa. Com o tempo compraram tv nova, geladeira, coisas que a classe C tem oportunidade em tempos de melhoria econômica. E um ano depois veio Ramon, o filho do casal. Zezinho gritava pela favela que agora tinha um herdeiro e comprou uma caixa de cervejas apra comemorar com os amigos.   

Zezinho trabalhava o dia todo prestando serviços em casas da redondeza e começou a estranhar não encontrar a mulher em casa. Desconfiava que era traído e a confirmação veio em uma manhã de domingo.

Zezinho acordou com o choro de Ramon e chamou por Jurema: não obteve resposta. Levantou da cama, viu se o filho estava bem no berço e procurou pela esposa na casa sem achar. Estranhando aquele sumiço, encontrou uma carta em cima da mesa na cozinha.

Leu a carta e era de Jurema. Nela a mulher pedia desculpas por sua decisão e não ter tido coragem de falar pessoalmente. O chão de Zezinho sumia a cada linha que lia. Jurema contou que se apaixonara por Adalberto, um caminhoneiro da redondeza, eles começaram um caso e o homem chamou para morarem juntos em Belém, sua terra natal.

A mulher aceitou o convite e naquela manhã eles foram embora para o Pará. Mais uma vez Jurema pedia desculpas e que Zezinho tomasse conta do filho que não teria como levar.

Zezinho leu a carta e seu coração começou a sangrar. Puxou uma cadeira, sentou e começou a chorar. A mulher que amava o abandonara da forma mais vil, com um filho pequeno para criar.

Mas Zezinho não conseguiu dar conta da situação. A dor do abandono era grande demais e ele se entregou à bebida. Acordava e bebia de cara um copo de cachaça – e eram muitos por dia. Deixou de trabalhar e sua situação financeira ficou precária.

Vendeu seus instrumentos de trabalho e rapidamente gastou o dinheiro com bebida. As pessoas uma a uma desistiam de ajudá-lo, excetuando seu irmão Djair, o único que ainda acreditava em sua recuperação. Mas um dia Zezinho caiu na real e viu que estava no fundo do poço. Foi quando recebeu visita do conselho tutelar que recebera denúncia contra ele. A hipótese de perder o filho apavorou o homem. 

Sabia que tinha que arrumar um emprego, mas não tinha mais seus equipamentos. Pediu ajuda a Djair que trabalhava como enfermeiro em um hospital e prometeu ver a ele o que poderia fazer.

Dois dias depois voltou contando que tinha vaga de faxineiro, perguntando se interessava. Zezinho que conseguia aos poucos vencer o vício da bebida não pensou duas vezes e topou dando um abraço no irmão. Não deixaria que levassem tão fácil seu filho.

Começou a trabalhar no hospital com esperanças de colocar sua vida novamente no lugar.

O fim de semana acabou e Guto e Lara tinham que voltar ao Rio de Janeiro. Chovia muito na serra e o caseiro aconselhou que ficassem e só fossem embora segunda de manhã, mas Guto respondeu que era impossível, já que ele tinha reuniões importantes bem cedo.

Os dois se despediram e pegaram o carro. A chuva atrapalhava muito a visibilidade da pista e Lara ficou com medo perguntando ao marido se não era melhor pararem em algum lugar. Guto respondeu que não e pediu que a esposa ficasse tranqüila que logo estariam em casa.

Mas não foi o que aconteceu.

Guto dirigia em alta velocidade e não percebeu quando um ônibus cortou o carro que estava a sua frente e entrou em contra mão. Só em cima Guto percebeu o veículo vindo em sua direção e em um ato de desespero tentou desviar. Mas bateram em cheio.

Guto bateu com a cabeça e desmaiou enquanto Lara foi lançada para fora do carro.

O socorro chegou rapidamente e levou o casal ao hospital mais próximo. Guto sofreu apenas escoriações e estava fora de perigo, o drama maior vivia Lara.

A moça não só entrou em coma como em trabalho de parto. Os médicos ao mesmo tempo tiveram que lutar pela vida da mulher e da criança. Conseguiram salvar o bebê, Luis Antonio nasceu com saúde, mas a situação de Lara ganhava contornos de desespero.

Foi transferida de helicóptero para um hospital do Rio de Janeiro, onde foi realizada uma cirurgia para drenar o sangue do cérebro. Depois de mais de oito horas de operação e três paradas cardíacas a mesma foi encerrada.

O médico chamou aos pais de Lara e passou a situação. Ela sobrevivera à cirurgia, mas estava em coma profundo e não dava para garantir quando ela acordaria: poderia ser questão de dias, semanas, meses ou até mesmo nunca mais acordar.

Os pais de Lara entraram em choque. Tiveram a notícia feliz da chegada do netinho e ao mesmo tempo aquela tragédia. Lara era uma jovem cheia de planos, com um futuro brilhante pela frente e agora estava condenada a uma cama de hospital Deus sabe até quando.

O tempo foi passando. No começo Lara foi tomada por cuidados de toda a família e de Guto que não saíam de perto da moça, mas com o tempo parecia que o conformismo tomava conta das pessoas, ninguém acreditava mais na recuperação. Guto decidiu retomar sua vida, conheceu uma moça e foi morar com ela. A família de Lara mal a visitava, só a mãe ia as vezes ver como estava a filha.

Dois anos se passaram, dois anos em coma.

Até o momento que Zezinho começou a trabalhar no hospital.

Zezinho passava pelo corredor recolhendo o lixo quando olhou por curiosidade para um quarto. Viu uma moça dormindo, um sonho que parecia profundo. Era Lara. Sem ninguém por perto, Zezinho entrou no quarto e viu Lara em seu coma. Sentiu pena da moça, era uma mulher tão linda, com um jeito tão sereno e lá naquele leito.

Zezinho olhou Lara por alguns minutos embevecido com sua beleza e depois ao ouvir barulho no corredor resolveu sair, mas não conseguiu esquecer a moça. Em casa enquanto jantava com o filho, assistia televisão ou tentava dormir só pensou em Lara.

No dia seguinte de novo Zezinho olhava Lara pela porta. Ao notar que não havia ninguém por perto entrou novamente no quarto, mas dessa vez pegou uma cadeira, sentou-se ao lado e ficou admirando Lara.

Passou a mão em seus cabelos e comentou “como pode, uma moça tão bonita numa cama dessas?”. Zezinho era um homem muito solitário e acabou encontrando naquela mulher em coma uma companhia.

Naquela noite passou horas no quarto de Lara contando sobre sua vida. Contou até sobre a traição de Jurema e a luta pela guarda do filho. Abriu seu coração de uma forma que nunca fizera antes e só saiu do quarto quando acabou seu expediente. Saiu do hospital aliviado.

E foi assim dia após dias com Zezinho sempre indo ao quarto visitar sua “nova amiga”. O rapaz contava sobre tudo o que ocorria na sua vida, seu dia a dia e que pesquisava em livros sobre a forma de ajudar alguém em coma e prometeu que lhe ajudaria.

Zezinho levava revistas e livros e lia para Lara com as dificuldades de alguém com pouco estudo. Levava músicas e colocava fone em seus ouvidos para que ouvisse: o homem estava determinado a ajudar Lara.

Comentou com Djair que conhecera uma mulher muito especial. O irmão ficou entusiasmado por ver finalmente Zezinho se empolgar por outra mulher e perguntou quem era. Zezinho respondeu que ele não conhecia, Djair perguntou se tinha futuro e o irmão respondeu “quem sabe quando ela acordar”.

Uma manhã Zezinho ouvia rádio em casa antes de ir trabalhar, ouviu uma música gospel linda e achou que essa música poderia ajudar Lara. Saiu mais cedo de casa, foi a uma lan house e conseguiu baixar a música e colocar no seu MP3.

Correu para o hospital na esperança de ver Lara ter alguma reação. Percebeu o corredor vazio e entrou no quarto. Lara estava da mesma forma de sempre, Zezinho então contou a moça que tinha uma surpresa, algo que poderia ajudar e colocou o fone em seus ouvidos.  

Zezinho assistia Lara ouvir a música com esperanças no coração quando notou uma lágrima cair do olho esquerdo da moça, gritou “É isso!! É isso” quando a mãe de Lara entrou no quarto com um medico e perguntou o que ocorria.

Nem deu tempo de Zezinho responder nada. O médico chamou os seguranças que entraram no quarto e tiraram o homem de forma violenta enquanto ele gritava que ela acordaria. Enquanto Zezinho era demitido na sala da direção Lara abriu os olhos para espanto da mãe e do médico e perguntou o que acontecia.

Desolado, triste, fracassado, Zezinho subia o morro sabendo que nunca mais conseguiria ver Lara e sem emprego reduziria as chances de manter a guarda de seu filho. Foi quando notou um caminhão descendo a ladeira e pior: era o de Adalberto carregando Jurema e Ramon.

Zezinho se desesperou ao ver seu filho sendo levado e se jogou na frente do caminhão, sendo atropelado. Adalberto nem parou, foi embora com Jurema e Ramon enquanto Zezinho era acudido por populares.

Homem pobre, em lugar pobre a ambulância demora a chegar e Zezinho foi levado a um hospital público com demora de atendimento no local devido ao excesso de gente e a falta de médicos.

Algumas semanas depois uma moça entrou no hospital, andou pelos corredores cheios e subornou um funcionário para que pudesse entrar na UTI. Foi até um quarto e viu Zezinho lá todo entubado. Em coma, lutava pela vida. 

Era Lara.

A moça se aproximou da cama, abriu a bolsa e pegou um MP3 de dentro dizendo “você esqueceu comigo.”.

Colocou os fones no ouvido de Zezinho com a música gospel com a qual o homem lhe ajudara a acordar e acariciando seus cabelos falou: “agora é a sua vez”.

Uma ligação criada na dor que só Deus seria capaz de explicar.

One Reply to “Buraco da Fechadura – “A Ligação””

Comments are closed.