Edmar Morel, Jacaré e Welles

 

Nesta terça feira, a coluna “História & Outros Assuntos”, do Doutorando em História Fabrício Gomes, nos traz um episódio muito pouco conhecido de nossa história.

A saga dos jangadeiros em busca de seus direitos

Durante certo tempo era comum a definição de rótulos e conceitos fechados acerca de determinados períodos da nossa história. O Estado Novo, concentrado na figura onipresente do presidente Getúlio Vargas, é um exemplo claro, que  sustentou durante muitas décadas, a imagem de uma ditadura opressora, tendo em seu comandante gaúcho o líder manipulador de toda a população.

Mas cabe a pergunta: como um homem sozinho seria capaz de oprimir, manipular, mandar matar e prender tanta gente? E que povo era aquele? Despolitizado? Não pensava? Não criticava? Não tinha idéias próprias? Aceitava tudo como lhe era ordenado, sem reclamar?

Felizmente um dos papéis da História, além de somente transmitir conhecimentos sobre o passado, é investigar e quebrar certos dogmas formados através do tempo e que encontraram ressonância no senso comum. A historiadora cearense Berenice Abreu fez esse trabalho com grande competência ao analisar sobre um episódio assombroso ocorrido em plena “ditadura” do Estado Novo, mais precisamente no ano de 1941: a saga de quatro humildes jangadeiros – Jacaré, Jerônimo, Mané Preto e Tatá – pescadores, trabalhadores brasileiros – que saíram de Fortaleza de jangada, navegando os mares bravios do nordeste, enfrentaram fortes ondas, tempestades e tubarões, até o Rio de Janeiro, para apenas falar com o presidente Getúlio Vargas.

A pauta da conversa? Expor ao presidente a situação dos pescadores da Colônia Z-1 – a mais antiga colônia de pesca do Ceará -, que viviam uma situação bastante ruim, enfrentando o descaso da Federação dos Pescadores daquele estado, obrigados a dividir o pescado acumulado no final do dia com os donos das jangadas e os intermediários que atuavam nas vendas dos peixes. Os ganhos financeiros dos pescadores eram mínimos e eles não se viam representados naquela Federação.

A autora procura também analisar sobre a origem do espaço onde os jangadeiros viviam, na praia de Iracema. Inicialmente habitado por pescadores humildes, o espaço foi sendo tomado por ricos proprietários oriundos do sertão cearense. O Ceará, diferente dos pólos hegemônicos coloniais – como Recife e Salvador – teve seu processo de ocupação no interior – nas cidades de Aracati, Icó e Sobral, com extensiva criação de gado, que gradativamente migrou para o litoral, durante a segunda metade do século XIX.

Fortaleza passou a ser então, com o implemento da malha ferroviária e aumento das vias de comunicação, o principal ponto de escoação da produção interiorana – o algodão para exportação. Os pescadores passavam o dia – às vezes semanas – no mar e o pescado era para comércio e sustento próprio de suas famílias. Moravam em casebres e choupanas, bastante humildes e enquanto buscavam peixes, suas esposas faziam rendas para ajudar no orçamento.

Jacaré e seus companheiros percorreram grande parte da costa brasileira em 61 dias de viagem, chegando à capital da República no dia 15 de novembro de 1941 – a data de chegada não foi mera coincidência: o governo brasileiro, ao saber do empreendimento, apoiou a viagem dos jangadeiros. Afinal, a iniciativa trazia uma imagem bastante positiva para o Palácio do Catete, reforçando o sentido de nacionalismo e de aproximação com setores mais humildes da população. O governo desejava que a chegada ocorresse em 10 de novembro – aniversário do Estado Novo.

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Como enfrentaram contratempos – como fortes tempestades e correntezas no sul da Bahia, Jacaré e seus amigos atrasaram a viagem. Por volta do dia 13 e 14 de novembro já se encontravam em Macaé e Cabo Frio, respectivamente, forçando a chegada ao Rio no dia 15 – dia da proclamação da República.

No período em que estiveram fora de Fortaleza, na viagem ao Rio, os pescadores tiveram ajuda de custo de algumas pessoas de grande notoriedade na sociedade, como Dona Mariinha Holanda, católica fervorosa e bastante atuante em trabalhos beneficentes na região, e o Dr. Fernando Pinto, presidente do Club Jangada.

A viagem foi custeada por associações de moradores, entidades desportivas, por parte da população de Fortaleza e contou com ampla cobertura dos jornais dos Diários Associados. Anos antes, o próprio Assis Chateaubriand participara de uma corrida de jangadas na praia de Iracema, na embarcação de mestre Jerônimo. O repórter Edmar Morel acompanhou a viagem (por terra), em cada localidade onde os jangadeiros paravam a jangada para o pernoite. 

O Rio de Janeiro se vestiu com as cores da pátria para receber os intrépidos jangadeiros, que foram até o Catete conversar com o presidente e reivindicar seus direitos. A conversa foi coroada com um decreto presidencial que incorporava os pescadores ao Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos (IAPM). Além de poder falar com o presidente, os jangadeiros ficaram famosos e foram capa de diversas revistas.

Até despertar a curiosidade de Hollywood.

Orson Welles, cujo filme “Cidadão Kane” havia sido exibido cerca de três meses antes nos cinemas brasileiros, ficou interessado em filmar a saga dos quatro jangadeiros cearenses. Em consonância com a Política da Boa Vizinhança implementada pelo Departamento de Estado dos EUA, o jovem ator-diretor veio ao Brasil para filmar uma série de documentários, entre eles, a viagem dos jangadeiros. Seu primeiro contato com Jacaré aconteceu numa suíte do Copacabana Palace e o humilde jangadeiro estava bem à vontade e confortável nas palavras, sem qualquer travamento por estar diante do astro de cinema.

Com uma câmera na mão e um orçamento bastante reduzido, Welles levou adiante seu propósito de mostrar ao mundo a sagacidade dos quatro jangadeiros. Só não contava que um deles – justamente Jacaré – viesse a morrer durante a gravação do documentário, na praia da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Em dia de forte neblina e mar com correnteza, a jangada que levava Jacaré, mestre Jerônimo, Mané Preto e Tatá virou. Apenas Jacaré – que sabia nadar – não se salvou e desapareceu para sempre.

O cineasta estadunidense foi um dos que mais lamentou o desaparecimento de Jacaré e finalizou as filmagens do documentário, que infelizmente, perdeu-se com o tempo, devido ao desinteresse de quem o financiava bancar os custos finais de produção. Apenas em 1985 as latas de filmes foram achadas num estúdio, na Califórnia. Em 1993 foi iniciada a recuperação e edição dos negativos, que se transformaram, anos depois, em curta-metragens.

Quando Getúlio Vargas foi eleito, o cearense foi novamente à Guanabara falar com o presidente. E em 1958 sua jangada singrou ondas internacionais: após seis meses de viagem chegou a Buenos Aires, onde Jerônimo queria presentear Arturo Frondizi, presidente argentino, com sua jangada. Não tendo conseguido fazer isso, restou o consolo de ver muitos argentinos admirando a jangada, exposta na capital daquele país.

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Mais importante do que as viagens que se sucederam, no entanto, é refletir sobre a importância do que representou, de fato, a viagem que os quatro jangadeiros fizeram em 1941. É entender o heróico feito como um símbolo de atuação e participação de trabalhadores humildes na sociedade, com suas queixas, reclamações e reivindicações. É também compreender a consciência de classe dos pescadores, entendedores de seus direitos sociais. A viagem gerou ondas e caminhos que possibilitaram que outras categorias de trabalhadores também quisessem se ver representados na sociedade.Os outros companheiros de Jacaré fizeram outras viagens. Mestre Jerônimo viajou com sua jangada em 1951 e 1958.

http://www.youtube.com/watch?v=trtERk1bXek