Neste sábado, a coluna de contos sobre samba do compositor Aloisio Villar traz uma divertida história envolvendo carros vermelhos. “Yo no creo en brujas, pero las hay, las hay…”
O Carro Vermelho
Todos riram da desgraça do sequestrador e até onde eles sabiam o cara nunca mais praticara crimes na vida. Meu pai, rindo, comentou que a sogra do Dr Bezerra era uma bela punição para todos os meliantes.
Rindo bebi mais um gole de cerveja e lembrei-me de minha sogra: contei que ela era parecida com a sogra do Dr Bezerra e meu pai, contrariado, respondeu que não era bem assim.
Perguntei “Como assim não era? A mulher é o cão!!” Meu pai irritado respondeu que não e que dona Elza era uma boa pessoa. Coloquei uma batata frita na boca e falei que bem que todos desconfiavam que meu pai “pegara” dona Elza. Meu pai, irritado demais, mandou que eu respeitasse minha ex-sogra e a memória de minha mãe.
Retruquei que não havia falta de respeito nenhum, minha mãe já morrera e meu pai era um homem desimpedido – então nada proibia. Completei que muito da personalidade da Bia, minha ex-mulher, devia vir da mãe: “filha de surucucu, surucucu é”.
Meu pai respondeu que Bia era um doce de pessoa e retruquei que eu devia ser diabético, evitar doces e perguntei se meu pai sabia que ela estava namorando. Meu pai sorriu e não só confirmou que sim como disse “é um bom rapaz”.
Pronto, me emputeci. A galera vendo o clima de tensão na mesa logo pegou cavaco, surdo e propôs que começasse uma roda de samba. Levantei e disse “vou ao banheiro” e saí com a rapaziada preparando o samba.
Enquanto estava no mictório pensava na desgraçada da Bia e seu novo namorado. Na pensão que tinha que pagar à nossa filha Ana Julia para que a Bia desfrutasse com o “novo garotão” – e ficava mais puto ainda. Almeidinha urinava ao meu lado e comentou: “você ainda gosta dela”.
Perguntei se ele ficara maluco e o garçom respondeu que não: eram anos trabalhando naquele bar, ouvindo e conhecendo histórias e sacramentou “o garçom é um psicanalista que serve cerveja”.
Agradeci a “consulta grátis” e emendei: “Freud, deixa um chopp lá na mesa pra mim”. Almeidinha colocou a mão no meu ombro e disse “se gosta, corra atrás dela”.
O garçom saiu do banheiro, pensei alguns segundos e gritei “porra Almeidinha, você pegou no meu ombro sem lavar as mãos!!”
Saindo do banheiro ouvi o som da batucada e me sentei. Meu pai bebia um chopp e me disse “o Almeidinha trouxe pra você e peguei, pede outro”.
Pedi e a rapaziada me apresentou ao Baltazar, sujeito que chegara há pouco na mesa. Continuaram cantando sambas antigos, quando aquele ex-harmonia da Unidos da Ponte que citei disse: “vamos cantar uma música que não é samba em homenagem ao Baltazar”.
Deu o tom ao cavaquinhista e mandou “meu carro é vermelho, não uso espelho pra me pentear”. A galera caiu na risada, Baltazar ficou puto e eu nada entendi. Perguntei a meu pai qual era o problema e ele me contou.
Baltazar Cabelinho, apelido ganho devido ao cuidado que sempre teve com o cabelo, é compositor de samba-enredo dos bons. Ganhou samba em escolas como Vila Isabel, Unidos da Tijuca e São Clemente. Dizem que é dono de vários outros sambas do carnaval e tem um “escritório” de samba-enredo, isto é, compõe sambas em diversas escolas para outros assinarem; mas Baltazar sempre negou essas histórias.
Renomado, querido, idolatrado Baltazar sempre passou uma ótima imagem, principalmente de credibilidade. Isso fazia que ele recebesse vários convites durante o carnaval para ser julgador de desfiles por todo o país.
Naquele ano, especialmente, Baltazar ansiava pelo convite. O homem comprou uma casa nova, teve gastos e estava na pindaíba sem um tostão no bolso e via um convite como a solução mais rápida, já que ele tirava pelo menos uns cinco mil reais julgando carnaval.
E o convite não chegava, o carnaval se aproximava e ele ficava cada vez mais preocupado. Até que um dia o telefone tocou.
Era seu amigo Reginaldo, aquele que sempre descolava convite para que ele julgasse. Reginaldo ligou marcando uma choppada com o amigo. Marcaram no “Casa de Bamba” e ficaram em silêncio esperando que Almeidinha servisse. Quando o garçom se distanciou Reginaldo brindou com o amigo e disse: “agora podemos falar”.
Baltazar não entendia o porque de tanto mistério e ansioso perguntou se tinha algo pra ele. Reginaldo respondeu que sim e Baltazar abraçou o amigo agradecendo.
Constrangido Reginaldo se desvencilhou e sem olhar os olhos do amigo contou que o cachê era de dez mil reais. Baltazar agradeceu e comentou que era uma grana suficiente para se segurar até receber os direitos de arena dos sambas que vencera naquele ano. Direito de arena é um dinheiro que o compositor recebe geralmente um mês depois do carnaval equivalente à venda de ingressos na Sapucaí e direito de transmissão.
Muito constrangido, Reginaldo lembrou Paulinho da Viola e comentou que nesse caso tinha um “porém, ah porém”. Baltazar não entendeu e em seu ouvido Reginaldo contou que o carnaval “estava encomendado”.
Baltazar nada entendeu e Reginaldo explicou “o carnaval já tem campeão, é a Unidos do Vermelho e Branco, escola nova que tem um bicheiro por trás e pagou um milhão pra liga pra ser campeã”.
Baltazar comentou que não se metia em nada roubado e agradeceu o convite recusando. Reginaldo mandou que o amigo parasse de besteira que aquela atitude não enchia barriga de ninguém e ele estava precisando. Baltazar já se levantava pra ir embora quando Reginaldo emendou “cada jurado vai ganhar um carro”.
Aquela notícia balançou Baltazar, que mesmo assim foi embora.
Em casa o compositor contou a história para a mulher e tomou uma bronca: “seu imbecil, como assim você não aceitou? Sabia que tem que pagar colégio? Ta em época de matrícula, como André e Cláudio vão estudar, seu vagabundo? Pensa que vou te sustentar?”.
Baltazar ainda tentou retrucar, mas sua esposa emendou: “Nem é aqui no Rio, é em outra cidade e se a tal escola tem bicheiro e dá um milhão pra ganhar deve usar dinheiro pra cacete pra fazer um grande desfile, ganharia por bem ou por mal”.
Baltazar pensou bem e ligou para Reginaldo aceitando o convite. A mulher mandou que ele perguntasse a marca do carro, Baltazar perguntou e Reginaldo respondeu que não sabia, apenas sabia que era vermelho da cor da escola.
Baltazar viajou para a cidade no carnaval. Se chamava Trololó do Oeste, que ficava a dez quilômetros do nada e vinte quilômetros de coisa nenhuma. Parecia uma cidade fantasma, pequenina e Baltazar se perguntava como aquilo ali poderia ter carnaval.
Mas tinha e Baltazar foi para o local de desfile, subiu até a cabine e foi designado para julgar harmonia. Era um jurado por quesito, dez quesitos – então dez carros vermelhos seriam distribuídos.
Os desfiles começaram com escolas simples, uma pior que a outra. Baltazar bocejava, quase dormia, mas tinha o consolo de que pelo menos a Unidos do Vermelho e Branco “trucidaria” as co-irmãs. Chegou a hora de seu desfile e ele já preparou a caneta pro dez.
Começou o desfile da agremiação campeã e o que passou por seus olhos assombrou Baltazar. A escola era péssima, horrível, horrorosa, parecia um bloco de bêbados conseguindo ser a pior de todas.
Alegorias caindo aos pedaços, fantasias se desmanchando, bateria errando tudo, cavaco desafinado, porta bandeira tomando tombo, cantor errando o samba. Os julgadores constrangidos se olhavam sem saber o que fazer. Um dos julgadores olhou para os outros e estendeu as mãos como se fizesse sinal de paciência e falando “fazer o que? É dez”.
Baltazar abismado olhava o desfile quando um buraco gigantesco entre alas – maior que o da Beija Flor – começava a abrir a sua frente. De propósito deixou cair a caneta no chão e ficou procurando por minutos até que o jurado sentado ao lado contou que tinham resolvido o problema: ele se sentou e deu o dez.
O desfile da escola acabou e todos respiraram aliviados. Faltava apenas uma escola e já tinham visto tanta coisa ruim que não custava nada ver mais uma e aquele pesadelo acabar, foi a vez da Unidos do Trololó.
E aí aconteceu o drama.
A escola estava linda. Alegorias perfeitas, fantasias de bom gosto, bateria com ótima cadência, excelente samba-enredo, tudo perfeito. As arquibancadas deliravam, cantavam o samba, gritavam “é campeã” e os jurados não sabiam o que fazer.
A escola passava compacta, linda, aguerrida na frente de Baltazar que apenas pensava: “fodeu”. Olhava para os lados e os jurados atônitos não sabiam o que fazer. Não tinha o que fazer, não tinha como descontar pontos daquela escola.
A cagada estava feita.
O casal de mestre-sala e porta bandeira começou a se exibir para o jurado do quesito que estava ao lado de Baltazar e de repente Baltazar levantou e deu um grito dizendo “A bandeira enrolou!! A bandeira enrolou!!”
Todos os julgadores olharam para ele que continuou “A bandeira enrolou que eu vi, vai logo porra, desconta ponto do casal!!” Pegando a mão do julgador e o conduzindo pra anotar 9,5.
Pois bem: ninguém sabe até hoje se a bandeira enrolou mesmo ou foi invenção do Baltazar. A verdade é que as duas escolas tiraram 10 em tudo, mas a Unidos do Vermelho e Branco foi campeã graças ao 9.5 que a Unidos do Trololó levou em mestre-sala e porta bandeira.
Alguns dias depois Reginaldo bateu na porta de Baltazar entregando o cheque de dez mil reais e dizendo “bom trabalho”. Baltazar perguntou pelo carro e Reginaldo apontou para o lado de fora.
O carro estava lá, vermelho, lindo.
Baltazar pegou a chave, se despediu do amigo e foi com a família passear com carro. Ao voltarem entraram em casa debaixo de muita chuva e enquanto fechava a porta ainda deu tempo de Baltazar ver um raio acertar uma árvore e ela cair em cima do carro. Perda total.
Desolado Baltazar foi no dia seguinte ao banco sacar o dinheiro e o atendente disse que o cheque não tinha fundos. Baltazar sem carro, sem dinheiro, desorientado ligou várias vezes para Reginaldo e nada do “amigo” atender.
Só restou pegar um ônibus e voltar pra casa pensando no que diria pra esposa. Ao lado no banco do ônibus um homem lia o jornal e ria, gargalhava. Curioso Baltazar perguntou o que era e o homem respondeu.
“Você acredita que teve suborno no carnaval de Trololó do Oeste? Um cara que se dizia bicheiro fez acordo com a liga, os jurados, pagou todo mundo em cheque só que eles não tinham fundo e nem bicheiro ele era. Era carteiro e se mandou da cidade. Como tem otário no mundo!!”.
Baltazar, com sorriso amarelo, respondeu “é mesmo” e a viagem de ônibus prosseguiu – sem Baltazar saber que os carros eram roubados e a polícia estava na porta da sua casa.
E na ganância do carro Baltazar entrou de carona na roubada…
(email para o colunista: aloisiovillar@pedromigao.com.br)