Minha avó, quando veio de Pernambuco, recebeu de sua Yalorixá a permissão para abrir uma roça de santo no Rio de Janeiro. Aqui chegando, comprou uns terrenos nos arredores de Rosa dos Ventos, um bairro de Nova Iguaçu, onde plantou o axé e criou sua casa de Xambá – o candomblé do Recife – e onde se cultuavam também os encantados do Tambor de Mina.
 
Foi lá que eu, menino, convivi com algumas figuras extraordinárias. Dentre elas havia um sujeito humilde, que tomava cerveja e cachaça na birosca da encruzilhada da Rua Castor, área conhecida como Esquina do Pecado (chamada deste jeito porque era um ponto de desova do esquadrão que agia na Baixada Fluminense e assinava crimes em nome de certo Mão Branca).

Normalmente descalço, o cabra falava pouco e gostava de ver a molecada jogando bola na rua. De vez em quando assistia a curimba. Não me lembro que desse intimidade a muita gente. Era fechado. Conversava com meu avô, o velho Luiz Grosso, nordestino que, como ele, era chegado numa cana firme.

 
Trazia um olhar embaçado, profundamente triste e, para algumas crianças, ameaçador. Se sorriu alguma vez, eu nunca vi.  Lembro-me que uma velha amiga de minha avó, Maria do Carmo, parecia ser a única por ali a saber que o sujeito era artista. Ela vivia dizendo isso : – Ele é compositor; tem até músicas famosas.
 
Ninguém acreditava, até porque essa Maria do Carmo tinha fama de ser doida varrida.
 
Meus avós mantinham a casa em Nova Iguaçu e alugavam um apartamento modesto em Laranjeiras, pertinho do Catete, onde passávamos a semana. Às sextas o meu tio dirigia a Kombi da família e todo mundo ia pra macumba.
 
Foi em Laranjeiras que um amigo me chamou um dia – eu devia ter uns dezesseis anos – para ir a uma casa de música que tinha aberto na rua do Catete e era baratinha. Só tocava música brasileira, o que pra nós, docemente xenófobos, era obrigatório. Fomos.
Nesta casa – o Forró Forrado – descobri que o preto triste e zangado de Nova Iguaçu era, de fato, artista. E tinha cada música bonita de doer. Passei a ir quase toda semana ao forró, mas nunca falei pro homem que o conhecia.
Ele nunca reparou na minha existência. Continuou morando em Rosa dos Ventos, tomando as canas na mesma birosca, convivendo com os mesmos cachaças. Mas eu sabia, como a doida Maria do Carmo, que o homem era artista maior, um poeta do povo.
 
Um dia, depois de doença ingrata,  morreu à míngua, pobre de marré-de-si.
 
Hoje lembrei do cabra e tomei a primeira gelada. Escutei uns cantos bonitos que ele fazia, feito o da estrela miúda que alumeia o mar – lição que, cada vez mais desconfiado de estrelas imensas, tento aprender e reproduzir nos meus afetos e ofícios.

Às margens do rio Maracanã, o da minha aldeia, este arrazoado vai na intenção do poeta que um dia subiu nos ares e foi brincar, encantado brasileiro, na asa do vento leste. Dizem que lá ninguém é triste. Mojubá, João do Vale.

Abraços

 
 

One Reply to “NINGUÉM É TRISTE NO VENTO LESTE”

Comments are closed.