Neste domingo a coluna “Orun Ayé”, do compositor Aloísio Villar, retoma o debate sobre as escolhas de samba das escolas cariocas, posicionando alguns aspectos.
O leitor perceberá que o colunista discorda em parte da opinião que expressei na última segunda feira. Mas quando se vê parcerias como na Vila Isabel reunindo Arlindo Cruz, André Diniz e Martinho da Vila sinceramente eu me pergunto qual seria o propósito da disputa.
Vamos ao texto.
Verdades e Mentiras de Disputas de Samba
Vejo muita gente comentar sobre as disputas de samba-enredo. Sobre algumas coisas concordo, outras não e resolvi fazer mais uma coluna sobre o assunto.
O Pedro Migão tinha me sugerido o tema, mas respondi a ele que era melhor não, até porque já tinha tocado no assunto ano passado em uma coluna chamada “Samba Enredo S/A”, onde contei de uma forma irônica como era o processo de uma disputa de samba-enredo. 
Mas como todo mundo fala sobre as disputas, algumas sem ter muita noção sobre ele, resolvi escrever uma visão de dentro das disputas. O Migão também tocou no assunto essa semana, ele tem noção e concordo em alguns pontos.
Muita gente pensa que o carnaval começa do samba. Não, começa do enredo escolhido pela escola. Ela escolhe o enredo e pesquisa sobre ele, faz uma sinopse e dessa sinopse sai o carnaval. Nela a história está dividida em setores e junto com os desenhos de carros e fantasias ajuda o pessoal do barracão e ateliê a construir o carnaval e os compositores a elaborarem os sambas.
As parcerias são montadas e funcionam como uma aliança política. Uma disputa de samba-enredo lembra muito as campanhas políticas em tudo. Há distribuição de “santinhos”, antipáticos ficam simpáticos e tem a parte da aliança.
Não basta apenas escrever o samba: escrever é um detalhe.
É necessário quem faça a letra, a melodia, mas também quem tenha uma boa política na escola e principalmente quem banque a disputa. Ou seja: uma forma de arrumar dinheiro pra ser gasto na mesma.
Porque o gasto é grande. Tem que pagar os integrantes do palco formado por cantores, músicos, gravar cd, fazer prospectos com a letra, condução da torcida, bebida e ingressos para ela…
… E a eliminatória de samba não dura apenas a noite que se realiza o concurso. Por exemplo, as eliminatórias na Ilha são aos sábados, mas todas as terças nos reunimos para decidir o que faremos e nos reunimos de novo às quintas no dia do sorteio de apresentação. Fora que nos falamos todos os dias por telefone ou redes sociais.
Uma parceria de ponta em uma disputa do grupo especial passa por um grande stress desde que começa a montar a parceria – antes da entrega da sinopse – até o final do concurso. Muitas brigas, dores de cabeça, vontade de largar tudo. O samba acaba sendo o principal assunto e compromisso de sua vida naquele período.
Gastos exorbitantes, stress, vale a pena?
Vale e descobri ano passado ganhando na União da Ilha e olha que ganhei com junção. Uma parceria de samba-enredo que gasta 50, 60 mil reais num concurso caso vença ganha 300 mil reais brutos. Os descontos variam de escola por escola.
Não é só o dinheiro: tem a projeção também, a vida dentro do samba muda. Você passa a ser mais respeitado, tem seu nome em sites, jornais, rádios, tv, é sua obra passando na Rede Globo e tão importante para o ser humano quanto ganhar dinheiro é sua vaidade.
Devido à junção e compromissos firmados anteriormente por nossa parceria não entrou tanto dinheiro, mas foi o suficiente para fazer coisas que queria há tempo. Senti o sabor e gostei – é o que ocorre com todos que vencem. Por isso as disputas estão tão caras, por isso o surgimento dos escritórios. Escritórios são grupos de compositores que fazem sambas para diversas escolas e colocam testas de ferro para assinarem.
Só que as disputas de samba hoje me remetem à infância, quando um monte de gente invadiu Serra Pelada em busca de ouro. Aquilo virou um formigueiro até que o ouro acabou.
Eu cheguei a pegar um tempo em que Beija-Flor e Mangueira passavam de 100 sambas em seus concursos. Portela, União da Ilha, Salgueiro e outras passavam de 40.
Mangueira e Beija-Flor nem chegaram a 40 sambas esse ano e as outras tiveram média entre 20 e 30. Vemos muitos nomes sagrados do samba não disputando mais. Portela e Salgueiro, então, tiveram debandada de seus maiores sambistas.
Por que isso acontece?
Muita gente fala que falta transparência nas disputas atuais, dizem que é tudo armado. Mas a Portela que citei acima escolheu ano passado o melhor samba do carnaval, então pelo menos lá esse não deveria ser o motivo.
Os escritórios e o encarecimento das disputas?
Pode ser, apesar de que já senti esses escritórios com mais força em anos anteriores e vejo hoje em dia algumas escolas começarem a ter certa resistência a sambas feitos por “compositores de fora”.
Falta de renovação?
Sambistas se aposentam, morrem e não surgem outros por samba ser algo “fora de moda”? É uma boa alegação, cada vez mais perdemos sambistas para a igreja: o último foi o cantor Anderson Paz.
Enfraquecimento das escolas menores?
Também, decadência e extinção de algumas delas que foram verdadeiros celeiros do samba prejudicam no surgimento. Boa parte dos compositores surgiu e aprendeu nessas escolas, escola grande dificilmente gera talentos nesta área. Eu mesmo aprendi o pouco que sei no Boi da Ilha.
Mas isso quer dizer o que? Que as disputas de samba como são hoje em dia não tem futuro? Vão acabar? Não sei, acredito que a curto e médio prazo não. São as disputas que movimentam as quadras entre julho e outubro e sem elas as escolas morrem nesse período.
Não vão encomendar sambas, isso não dá dinheiro pras escolas.
Então se isso mudar algum dia será com o surgimento de uma ideia que dê mais dinheiro ainda, não por algo que já tenha sido tentado. Na verdade as escolas estão se lixando se o compositor gasta muito no concurso. Ela quer é que entre dinheiro em seu cofre.
O que me incomoda mais em samba hoje em dia não é nada disso: é a tal comunidade.
É gente de comunidade que se vende em troca de um churrasco ou porque tal parceria frequenta suas festas. São alas de comunidade que não torcem pela escola, torcem por grupo de compositores e torcem por eles, balançam suas bandeiras antes mesmo de ouvir seus sambas. Gritam e tentam influenciar outros dizendo ser o melhor mesmo que apresentem um “atirei o pau no gato”.
[N.do.E.: concordo plenamente sob este aspecto.]
Essas alas, essas pessoas que se dizem comunidade viciam as disputas. Fazem que muitos sambas ruins cheguem às finais e até vençam viciadas em grupos, em nomes.
Tenho asco, nojo dessa gente que não se preocupa com a escola e só pensa neles e em seus queridinhos. Se pudesse nem entregava cd e prospectos para essas pessoas. Mas como disse acima, disputa de samba é política e mesmo tendo meus limites, mesmo não indo a festinhas a fantasia de alas só para agradar, eu tenho que sorrir e entregar nosso samba a elas.
Agora vou tocar numa ferida maior e nadar contra a maré.
Apesar de entender em certos aspectos, eu não entro nesse discurso “derrotista” que só ganha samba quem tem dinheiro e pobre não pode mais fazer samba-enredo.
Eu mesmo não nado em dinheiro, não conhecia ninguém no samba, sabia nada sobre concursos, comecei do zero sendo cortado de cara nas disputas e aos poucos fui crescendo, buscando meu espaço – até que começaram a acreditar em mim.
Não só eu, mas conheço vários de compositores que eram assim também. Contavam moedinhas para pagar cavaquinista, cantavam seus próprios sambas e hoje são campeões do Grupo Especial.
Eu estou há quinze anos no meio. Dez pelo menos percorrendo outras escolas, conectado com o samba de um modo geral e vi novos nomes crescerem e surgirem.
A verdade é que quem tem talento se estabelece.
É igual entrevista de emprego e conhecer os pais da namorada. Você não vai desalinhado, atrasado, mal preparado a nenhum lugar desses.
Assim como não adianta não fazer um cd do seu samba, prospectos para as pessoas lerem, subir no palco de bermuda, bêbado, desafinando feito um cão com gripe, cantando com seu melhor amigo que canta tão mal quanto você. Então é cortado e reclama que a escola está de sacanagem, o samba comprado e cortaram sua “obra prima” porque iria incomodar.
Eu noto muito isso. Tem uns caras que todos os anos vem para as disputas como citei acima, caem logo e passam o resto do ano sumidos. Aparecem na hora de pegar a fantasia reclamando do samba, que é uma porcaria e com ele a escola não vai para a frente.
Não adianta fazer uma “obra prima” para você.
Você querendo fazer um samba-enredo tem que fazer pelo menos um cd – nem que seja com “base pronta” do estúdio – para entregar aos diretores da agremiação e por nos sites de samba. Fazer alguns prospectos para o pessoal da quadra entender a letra e botar cantores que saibam cantar, que o público entenda o que é cantado. Não precisa ser cantor de nome não, basta ser bom.
Vai ganhar assim?
Evidente que não. Mas pelo menos vai fazer o seu papel, mostrar seu talento e assim vai fazendo, vai perdendo, vai se mostrando até que alguém lhe convida e quando for ver estará disputando entre os grandes.
Ninguém nasce um cirurgião renomado, um grande jurista, um professor de mestrado nem entra no sacerdócio logo para ser papa. Então porque logo de cara e sem investimento no seu futuro já quer ser um grande campeão de samba-enredo?
Para disputar um samba-enredo, como em tudo na vida é preciso talento (estou falando para quem escreve), paciência, saber se mostrar e principalmente não adotar discurso derrotista. Ninguém quer um derrotista ou amargurado por perto.
É difícil? É, por isso é prazeroso.
Sou compositor de samba-enredo, gosto de ser e me orgulho disso. Orun Ayé!