A coluna “Cinecasulofilia”, do cineasta, crítico e professor de cinema Marcelo Ikeda retoma hoje o tema da coluna anterior: a obra do cineasta francês Maurice Pialat (1925-2003), foto acima. Como sempre, coluna publicada em parceria com o blog de mesmo nome.

A ética (suicida) de Pialat

Parece que estou começando a entender a obra de Pialat. Minha primeira experiência com ele – com ‘À nos amours’ – não tinha sido muito positiva.

Mas alguns anos mais tarde, com os dois filmes do início dos anos setenta, a coisa mudou de figura. Seu primeiro filme – A infância nua – joga ainda mais luz na ética do cinema de Pialat. Uma ética da solidão. Ou da independência, como queiram.

Ética suicida, de não conseguir estar junto, mas precisar desesperadamente do outro. De matar a si mesmo, por não suportar estar consigo mesmo. Ética, como diz Guiguet em seu extraordinário texto sobre A garganta aberta, que não procura se fazer bela mas ao mesmo tempo não busca a feiúra ou o grotesco. Não procura caminhos fáceis. A redenção ou a comiseração. Não há epifania nem cortejo fúnebre. A vida, os gestos. Só.

Basta. Não basta?

É o que se tem.

Pequenos instantes de beleza simples para serem destruídas por uma raiva que não se sabe de onde vem. A infância nua foi patrocinado por Truffaut, provavelmente pelos motivos errados. Pialat é belo artesão: talvez seja seu filme mais belo entre seus três primeiros. No entanto, é uma beleza dura, crua, nua. Não cabe aqui o retrato da infância de Os incompreendidos nem mesmo o de Rosetta.

Até Rosetta parece meio ingênuo em comparação a esse filme do Pialat. Não se trata somente de uma “crônica da infância” (comparo com os belos filmes do Bill Douglas) mas de um filme político sobre o fim de maio de 68 e sobre o fim de um certo cinema francês. É só lembrar do início: uma passeata, em tom documental, clamando um “plano de carreira” e “trabalho para os jovens”.

Também não é Kes (o único filme de Ken Loach), em que o individual é espelho de um contexto político. A política de Pialat é a forma ética como a encenação lida com a dramaturgia, sempre de forma frontal, às vezes assustadora, cruzando planos longos e elipses temporais, com cortes bruscos. É essa ética frontal – contra a psicologia, contra o “estilo do cinema de autor”, contra os preciosismos das firulas da “arte” – que faz esse cinema de Pialat ser tão contemporâneo. Sua recusa formal é a própria recusa desse menino em ser servil.

Recusa suicida, difícil, improvável, amarga, mas é o que se tem.