Neste sábado, a coluna “Buraco da Fechadura”, do compositor Aloísio Villar, traz uma alegoria do que é o carnaval dito “moderno” pelos “especialistas”.

Em tempo: as expressões referentes aos homossexuais utilizadas no texto não representam nem o pensamento do autor nem deste editor. Entretanto, infelizmente é o retrato do meio, em especial de seus mandatários. Fica o aviso.

Explicação dada, divirta-se leitor. Ria para não chorar.

Fabricando Carnaval

A Acadêmicos do Gato Molhado passava por aquilo que chamamos de ‘crise’. Outrora escola grande, com alguns títulos no carnaval carioca, a agremiação gatomolhadense vinha há alguns anos ‘na seca’ e no último festejo de Momo quase caiu para o Grupo de Acesso.

O presidente Nezinho convocou sua diretoria logo após o desfile e cobrou o motivo da escola quase ter ‘tomado na tarraqueta’. O diretor de carnaval Chocolate disse que o enredo não rendera bem na avenida, os jurados não entenderam nada e o público ficou com cara de bunda.

Nezinho, irritado, perguntou como podiam não entender um enredo tão simples como a “viagem de Maurício de Nassau pelo Império Inca na pós modernidade do terceiro milênio sobre a era de Aquarius”? Chocolate tentou desconversar e Nezinho mandou “demitam o Xibiu de Jesus!!”.

Chocolate lembrou que o carnavalesco não podia ser demitido, pois, além de não receber salários há seis meses ainda arrumava investidores para a agremiação carnavalesca. Resignado Nezinho sentou-se na cadeira presidencial e resmungou “temos que aturar a bicha louca”.

Xibiu entrou na sala e Nezinho logo levantou abrindo os braços e dizendo “meu carnavalesco!!”. Xibiu mandou que o homem nem tocasse nele, pois, estava “estressadérrimo” do último carnaval e pediria as contas da escola.

Nezinho implorou para que o carnavalesco não fizesse isso, enquanto Xibiu contava que não agüentava mais trabalhar com baixo orçamento e desperdiçar seus enredos geniais. Chocolate respondeu que o único jeito era buscar um enredo patrocinado. Nezinho esbravejou que era contra seus princípios.

O ano seguinte seria o do centenário de Tio Catatau, fundador e maior nome da história da agremiação. Chocolate respondeu que ele já tinha morrido, então nem ligaria de não ser homenageado. Nezinho bateu o pé dizendo não: tinha dado a palavra à família de Tio Catatau e não voltaria atrás.

Xibiu comentou que em enredos patrocinados existia a possibilidade de desvio de verba e Nezinho perguntou como arrumariam um enredo assim. Chocolate respondeu que seu primo Nenê Beiçola tinha conhecimento com empresários paulistanos e poderia ajudar.

Conversaram com Nenê Beiçola, ‘171 profissional e juramentado’ e decidiram ir a São Paulo negociar. Xibiu tinha medo de avião, então os quatro decidiram ir a terras paulistanas no Fusca velho de Chocolate.

Partiram naquela geringonça torcendo para que não quebrasse no meio do caminho. Só que quebrou no meio do nada fazendo fronteira com o “coisa nenhuma”.

Desceram do Fusca e viram uma cidade quase fantasma, abandonada no meio da poeira com algumas casas, bichos andando na rua e um calor do diabo.

Xibiu tirou o leque e começou a se abanar desesperadamente reclamando do calor. Nezinho percebeu um posto de gasolina próximo e empurraram o carro até lá.

Tinha apenas um homem sentado numa cadeira ao lado da bomba de gasolina, tirando uma pestana, quando Chocolate perguntou onde tinha uma oficina mecânica.

O homem respondeu que também era dono da oficina, mas só trabalhava na mesma a noite porque era frentista de manhã e prefeito da cidade de tarde. Nezinho tentava entender aquela situação quando Chocolate chegou próximo e perguntou “você é o prefeito da cidade?”.

O homem se levantou e cumprimentou Chocolate dizendo “sim, Ribamar Macieira, seu criado”. Nenê Beiçola logo teve senso de oportunidade: perguntou o nome da cidade e quantos habitantes tinha. Ribamar respondeu que se chamava Bole-Bole e tinha dois mil habitantes. Nenê esfregou as mãos e disse “temos um enredo”.

Nenê abraçou Ribamar e começou a andar com ele acompanhado de Nezinho e Chocolate que nada entendiam. Xibiu ficou no carro mexendo em seu ventiladorzinho portátil. Perguntou ao prefeito se ele nunca pensara em ver sua cidade retratada na Marquês de Sapucaí. O homem respondeu que gostava de samba, mas ali tinha nada pra mostrar.

Nenê mandou que ele se despreocupasse porque no carnaval atual ninguém ligava pra essas coisas. Era só ter algum chamariz na cidade que eles desenvolviam toda a história. Ainda assim o prefeito respondeu que não se lembrava de nada.

Nezinho naquele instante começou a reclamar. Nenê perguntou qual era o problema e o homem respondeu que pisara em bosta de vaca. Nenê gritou que era isso. Eureca!

O homem virou pra o prefeito e disse que Bole-Bole era a capital mundial do esterco. Ribamar nada entendeu e Nenê explicou que venderiam a imagem da cidade como a capital mundial do esterco e sua importância fabricando fertilizantes para a melhoria da prática agrícola. Bole-Bole era o local dos melhores fertilizantes do planeta.

Ribamar coçou a cabeça e perguntou se aquilo daria certo. Nenê devolveu perguntando se tinha alguma indústria na cidade e o prefeito respondeu “moço, aqui só tem poeira”.

Perguntou pelo cofre da prefeitura e ele respondeu que estava vazio. Nenê reclamou que assim complicava, mas o prefeito contou que tinha uns fazendeiros na região. Os olhos de Beiçola brilharam e ele pediu que o prefeito marcasse uma reunião com esses fazendeiros.

Na reunião Nenê Beiçola contou todos os benefícios que a cidade poderia ter passando na Sapucaí ao vivo pela Globo para mais de cem países. A cidade ficaria mundialmente famosa, viraria ponto turístico com o principal, renderia muito dinheiro.

Dinheiro sempre é a palavra mágica, aquela que abre portas; e assim os olhos dos fazendeiros brilharam. Dois dias depois a prefeitura de Bole-Bole e a Acadêmicos do Gato Molhado assinavam um contrato de cinco milhões de reais que seriam destinados ao carnaval da agremiação.

Imediatamente Nenê Beiçola pegou quinhentos mil e se despediu dos dirigentes dizendo que tinha que arrumar enredos para mais três escolas.

Ribamar que era humilde – mas não bobo – botou a mão em trezentos mil e Nezinho e Chocolate mais seiscentos mil cada. Nezinho chegou em Xibiu e contou que ele tinha três milhões para fazer um enredo sobre a capital mundial do esterco.

Xibiu com os olhos arregalados perguntou se era sério: que queriam que ele fizesse um enredo sobre bosta. Chocolate respondeu que sim. O carnavalesco fez um escândalo respondendo que era um artista e não faria enredo sobre cocô.

Chocolate enfureceu-se e falou “Olha só, sua bicha burra: sua chance de receber salário é essa, vai sim fazer a porcaria desse carnaval!!”. Xibiu ainda injuriado disse que cocô sozinho não sustentaria um enredo e Chocolate respondeu que era esterco, não cocô.

Nezinho emendou mandando que ele inventasse. Colocasse que veio do Oriente, passou pela Europa, fez parte das tradições africanas, que inventasse qualquer coisa até que o esterco chegasse a Bole-Bole.

Contrariado Xibiu fez a sinopse e ela foi entregue aos compositores. Eles leram numa reunião e o compositor mais antigo da casa perguntou se era aquilo mesmo, um enredo sobre cocô. Chocolate respondeu que não: era esterco.

A disputa de samba se iniciou com toda aquela festa que os compositores fazem nas quadras nesse período. Três sambas foram classificados para a final e Nezinho, Chocolate e Xibiu se reuniram para decidir o vencedor.

Xibiu defendeu um samba que era de um dos seus casinhos, Chocolate queria outro composto por seu sobrinho e Nezinho um terceiro do seu parceiro de pôquer. Uma grande confusão.

No dia da final logo após as apresentações Nezinho pegou o microfone pra anunciar o vencedor.

Essas foram suas palavras, absolutamente emocionantes:

– A gente tivemos grandes obras nesse concurso de samba-enredo, mas infelizmente muitos ficaram pelo caminho e infelizmente a gente não podemos agradar a todos já que nem Jesus Cristo agradou. Eu fiz a escolha sozinho e se não der certo podem vir me cobrar a mim mesmo. Como vocês sabem em samba-enredo só se ganha um, mas aqui ganharam os três, juntei a porra toda e o samba é esse.

Passou o microfone para o interprete da escola, o famoso Desdentado do Gato Molhado, que cantou o hino da agremiação.

Acadêmicos do Gato Molhado
Enredo: A viagem encantada do esterco: de Bole-Bole para o mundo adubando a vida
Presidente: Nezinho
Diretor de carnaval: Chocolate
Carnavalesco: Xibiu de Jesus

Compositores: Bololô, Vandercreison do Gato, Ananiel, Bola 7, Marcaradinho Gaúcho, Roberval do Posto, Feliciano do GatoNet, Zezeca da Vila Mimosa, Maneta do Cavaco, Stevie Wonder do Acari, Betão da Milícia, Buzunga da Crackolândia, Sardinha da Feira, Renatinho da Laje, Bruno Revelação, Cadinho da Ilha e Pedro Migão

Intérprete: Desdentado do Gato Molhado

“Desde os tempos mais antigos

Antigos pra cacete
O esterco é importante
Pra vida de toda a gente
Começou no oriente
Viajou pro ocidente
Em Roma e no Egito imperou
Os fenícios tinham adoração
O adubo vem em forma de oração

Vai vaquinha vai

Deixe o rastro que garante a produção
Vai vaquinha vai
Deixe a bosta pra delírio do povão
Chegou ao nosso continente
O Brasil foi pra frente
Orgulhoso desse mau odor
Numa cidade abençoada
O esterco fez morada
E a exportação começou
Das mãos do trabalhador
Do seu suor o mundo foi sorrir
Fertilizando a vida
Hoje é tema na Sapucaí

Sou Gato Molhado

Boto no peito as cores do meu pavilhão
Canto Bole-Bole
E dou sacode sonhando ser campeão
O samba do crioulo doido até que deu certo e fez sucesso no pré carnaval. Com a grana, Xibiu de Jesus conseguiu fazer boas alegorias e fantasias e a escola entrou como uma das favoritas na avenida.

O samba não rendeu o que a escola esperava. O desfile foi burocrático, xoxo como de costume no carnaval atual. Os desfilantes em alas não conseguiam sambar, brincar, evoluir; sempre que tentavam um diretor de harmonia os empurrava mandando andar. Não saiam de suas posições na fileira e passaram pela Sapucaí como numa marcha militar.

Quase metade da escola era de componentes com camisas com o rosto de Nezinho, que mais atrapalhavam a agremiação que qualquer outra coisa.

Mas mesmo sendo um desfile quase sem samba, sem alegria, foi um desfile considerado perfeito para os padrões atuais. Beleza no visual trazida por bonitos carros e fantasias e sem abrir espaços entre as alas.

E como atendeu todos os requisitos do carnaval atual ganhou com dez em tudo, depois de muito tempo tornando-se campeã do carnaval. Uma grande festa foi feita entre os dirigentes, prefeito de Bole-Bole e os fazendeiros. Xibiu de Jesus retocava as alegorias para o desfile das campeãs e Nezinho planejava achar outra cidade pra patrocinar a luta pelo bicampeonato.

No desfile das campeãs a escola se posicionou para entrar tomando vaia do público. Nezinho mandou que Desdentado não ligasse e desse logo o grito de guerra. O cantor pegou o microfone quando ouviu-se uma algazarra.

Nezinho perguntou o que ocorria e de repente todos tomaram um grande susto. Uma multidão invadia a pista da Sapucaí.

Era o povo. A polícia tentou impedir, mas não teve como segurar o povo. Eram aquelas pessoas barradas pelos desfiles da atualidade, que não tem dinheiro para comprar ingresso para ver nem desfilar.

Os pobres, desdentados (sem ser o cantor), os favelados, os humildes, o povo. Sim, o povo tomava de volta a Marquês de Sapucaí, tomava de volta o que é seu.

Nezinho, a Acadêmicos do Gato Molhado e os dirigentes do carnaval carioca olhavam abismados aquela multidão feliz cruzar a Sapucaí com surdos, tamborins, cuícas, chocalhos, caixas cantando sambas antigos, expressando a felicidade de quem ama o samba de verdade.

Muitas juraram naquela noite inesquecível terem visto desfilar com o povo Candeia, Paulo da Portela, Natal, Silas de Oliveira, Cartola, Ismael, Noel, Clara Nunes, dona Zica, dona Neuma, Aroldo Melodia, Jamelão e tantos outros baluartes que fizeram a história de nosso carnaval.

Todos unidos cantando “não deixe o samba morrer, não deixe o samba acabar, o morro foi feito de samba, de samba pra gente sambar”.

Nezinho abismado olhava e perguntava o que fazer. Xibiu rebolativo respondeu “eu vou sambar com o povo, você? Fica com essa bosta aí” – e foi embora.

E naquela noite o carnaval carioca adubado renasceu.

One Reply to “Buraco da Fechadura – "Fabricando Carnaval"”

  1. Não sei se era uma homenagem, mas Bole-Bole era também o nome da cidade de Saramandaia, na novela de mesmo nome.
    Sem esterco, o negócio para a Acadêmicos do Gato Molhado é criar uma Velha Guarda e viver dela e do nome da escola num passado remoto. Não será a primeira escola de samba a fazer isso, mas deve dar certo também.
    @llmarcello

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