Vivemos tempos de delicadezas perdidas. Nessa manhã, enquanto aguardava uma entrevista para matricular meu filho na creche,  perguntei a um garoto de seis anos se ele gostava de brincar de telefone sem fio. O infante me disse, com empáfia, que já tinha o seu próprio telefone celular com conexão 24 horas, contas no twitter e no facebook. Saí de fininho quando ele ameaçou me adicionar.
A brincadeira do telefone sem fio – que eu adorava – começava quando alguém dizia uma frase no ouvido da pessoa ao lado. Essa, por sua vez,  repassava a mensagem. O último da fila pronunciava a  frase em voz alta. A sentença, eis a graça do negócio, se modificava completamente ao longo do trajeto, não raro com conotações pornográficas criadas no meio do caminho.
Assim como no mundo infantil – pelo menos na minha época – o universo dos adultos também está cheio de linhas cruzadas. O sujeito escuta uma coisa e entende (ou finge entender) outra, com sonoridade parecida e sentido completamente diferente. Dou exemplos que me ocorrem enquanto divago, ainda sob impacto da conversa com a criança virtual.
O meu mestre Nei Lopes – e essa ele mesmo me contou – lançou certa feita o Dicionário Banto do Brasil. Uma jovem repórter, ao entrevistá-lo, perguntou, quase no final da conversa, se o Banco do Brasil tinha bancado o dicionário que homenageava a instituição. O curioso é que, até então, o mestre vinha falando com a moça sobre a importância da língua banto no nosso idioma.
Ary Barroso usou o artifício para se livrar de uma conterrânea chatíssima. A dona interpelou o compositor para cobrar, já que ele tinha feito sambas para a Bahia e o Rio de Janeiro, uma canção em homenagem a Ubá, a terra mineira de ambos. Ary reagiu indignado e teve a cara de pau de dizer para a chata que “Risque” era uma homenagem ao torrão natal. Mandou a mulher cantar a música, até que ela chegou ao famoso trecho: 
Mas se algum dia, talvez
A saudade apertar
Não se perturbe
Afogue a saudade
Nos copos de um bar
Imediatamente, olhos esbugalhados, Ary começou a gritar que a mulher é que era uma ubaense desnaturada. E cantou o “trecho correto”:
Mas se algum dia, talvez
A saudade apertar
Não se perturbe
Afogue a saudade
Nos copos de UBÁ.

O mestre Monarco tem um samba belíssimo de exaltação à Portela chamado “Passado de glória”. Certo trecho diz:

A Mangueira de Cartola, velhos tempos do apogeu
O Estácio de Ismael, dizendo que o samba era seu.
Em Oswaldo Cruz, bem perto de Madureira
Todos só falavam Paulo Benjamin de Oliveira.
Durante uma noite na Casa da Mãe Joana, sobrado de São Cristovão que nos anos 80 realizou memoráveis rodas de samba, sentei na mesa de um sujeito – um grupo grande comemorava o aniversário de uma amiga –  que, para mostrar que entendia do riscado, passou a noite bancando o gostoso e cantando mais alto do que os próprios artistas. Na hora do “Passado de glória”, o biltre mandou na lata:
A Mangueira de Cartola, velhos tempos do apogeu
O ESTADO DE ISRAEL, dizendo que o samba era seu…
De imediato um conhecido meu, estudante de história e aguerrido defensor da causa palestina, bradou, dedo em riste e com o ar enlouquecido dos revolucionários de botequim depois de umas e outras:
–  Os caras anexaram as Colinas de Golan, Jerusalém Oriental, Sinai, Gaza… mas o samba, não! O samba, não!!


Abraços

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