Bom, o acontecimento palpitante na política internacional nos últimos dias foi a virtual derrubada do governante da Líbia, Muammar Khadafi, por rebeldes apoiados de forma ostensiva pela Otan. No momento em que escrevo – final da tarde de terça – o ditador ainda não havia sido apeado totalmente do poder, mas me parece questão de tempo.
Ressalte-se que o que está ocorrendo, na prática, é um clássico golpe de estado à moda antiga. Desta vez, ao invés do ostensivo apoio da CIA, a Central de Inteligência americana temos a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) patrocinando de forma decisiva o golpe de estado – que não seria possível sem o apoio das potências ocidentais a rebeldes a princípio desorganizados e desunidos.
Vamos tentar entender o que está por trás desta clássica quartelada. Sei que ainda falta aparecer o general da anedota, mas não vai demorar.
Em janeiro escrevi um post tentando explicar os protestos no Oriente Médio e suas motivações – que pode ser lido aqui. No texto observava que os genuínos protestos nacionais estavam tendo maior intensidade em países que não eram fortes produtores de petróleo, porque estes tinham condição de dar algumas benesses ao povo mais pobre e mitigar as tensões.
De lá para cá mudaram algumas coisas. Não podemos esquecer da brutal repressão ocorrida no Bahein, patrocinada pela Arábia Saudita e a que os americanos simplesmente “fingiram que não viram”. Obviamente, são governos títeres de Washington, aliados à sua política externa. Também são países, em especial a Arábia Saudita, fornecedores de petróleo aos americanos.
Outro caso emblemático é o da Síria, praticamente ao lado da Líbia. O governo de Bashar Al Assad vem enfrentando protestos de rebeldes em muito semelhantes aos que ocorrem na Líbia, mas seus assasssinatos, torturas, prisões indiscriminadas e repressão aos protestos vem merecendo condenações muito tímidas por parte das potências ocidentais.
O motivo? A Síria não tem petróleo em quantidades expressivas.
Este é o ponto onde quero chegar. O país do norte da África é um fornecedor importante do “ouro negro” para a Europa Ocidental, em especial a Itália. Além disso, o tipo de petróleo líbio se adapta bem às refinarias européias por ser bastante leve – e, por isso, é de difícil substituição. Desde o início dos combates a produção está praticamente parada e isto se converteu em um problema para países da Europa.
Vale lembrar também que hoje é a estatal do país que explora o petróleo, e a facção rebelde apoiada pela Otan vê com simpatia a entrega da exploração a grupos estrangeiros. É sintomático o fato de que a empresa italiana Eni já se prepara abertamente para “controlar o petróleo líbio”, conforme declarações vindas da Itália durante o dia de ontem. É uma forma de assegurar suprimento confiável e de alta qualidade para uma empresa e um país que não detém grandes campos exploratórios.
Outra questão geopolítica que envolve o petróleo foi a posição de neutralidade adotada pela Rússia, pelo Brasil e pela China. São três países que buscam uma política externa relativamente independente das potências ocidentais e que possuem companhias petrolíferas em fortíssima expansão. Nos três casos há atuação das empresas na África e em especial a China tem uma presença bastante expressiva neste continente.
Ressalte-se as declarações de um dos líderes rebeldes dando conta de que Brasil, China e Rússia seriam punidas na exploração dos campos petrolíferos por terem ficado neutros na questão. Cabe dizer que a Otan “coincidentemente” apoiou a facção rebelde (são pelo menos três) simpática às petrolíferas ocidentais.
O leitor também deve levar em conta que a China tem feito diversos investimentos de grande vulto na infra estrutura de países africanos tendo como pagamento recursos naturais, em especial o petróleo. O país está longe de ser auto suficiente no recurso mineral e tem estabelecido influência sobre vários países nesta base de cooperação. 
A China não estabelece uma relação de dominação política, a priori, com estes países, adotando um modelo onde a relação é essencialmente econômica – não importa o regime, os políticos ou as políticas locais. Isso contraria frontalmente o modelo americano e de seus satélites europeus, em especial a Inglaterra, que é de dominar a política local de forma a apenas atender seus interesses e de duas empresas.
Ou seja, a questão líbia também é uma tentativa de frear o avanço chinês sobre a geopolítica do continente, impondo seu modelo quase neo colonialista e assegurando o controle sobre o principal recurso natural do mundo.
Entretanto, engana-se quem pensa que os Estados Unidos e seus satélites europeus conseguirão impor sua dominação com facilidade: o povo local é bastante refratário a governantes considerados “entreguistas”. Um governo pró-americano, além de enfrentar o fato de ser apenas um dos grupos que lutavam contra o regime deposto, terá de lidar com uma população que foi armada indiscriminadamente e que pode perfeitamente pegar nestas armas a fim de defender seus recursos e sua “soberania”.
Um cenário perfeitamente possível de futuro, portanto, seria uma guerra civil entre as diferentes facções opositoras de Khadaffi e ainda envolvendo toda a população. Seria um cenário semelhante ao Iraque, invadido e ocupado pelos Estados Unidos e com um governo que é simplesmente representante dos interesses de Washington. Não é nenhum exagero dizer que o Iraque, hoje, é o 51º estado norte americano, sendo, na prática, uma colônia. Talvez até mais grave.
Portanto, leitor, desconfie quando ouvir ou ler que o que está ocorrendo na Líbia é “em nome da liberdade”. Não se está tirando um ditador para se colocar um governo democrático, mas sim depondo-se um tirano para colocar outra espécie de tirania: a econômica, regida pelo petróleo. O deposto governo líbio não é exatamente um exemplo de democracia e respeito aos direitos humanos, longe disso, mas o que move a ação da Otan não é a liberdade – nem a democracia.
Lembro também que Khadaffi foi por muito tempo apoiado, inclusive com armas, pelos mesmos governos que hoje patrocinam sua deposição – somente possível pela entrada destas forças estrangeiras na luta. Caso semelhante, portanto, ao de Saddam Hussein.
Concluindo, não há como não se constatar que o conceito de liberdade, em política internacional, é muito relativo. Na prática, é a liberdade do mais forte impor os seus interesses. 
O resto é puro verniz de segunda linha.

Em tempo: a cobertura da grande imprensa brasileira é de um adesismo pró americano que chega a envergonhar. É mais um exemplo da cobertura parcial, ideologizada e reacionária dos grandes veículos nativos.

A visão americana é transmitida ao público sem qualquer tipo de contextualização ou análise: a Otan está certa, a Líbia será “libertada” e ponto.

O blog Viomundo e o insuspeito New York Times trouxeram excelentes matérias sobre o assunto. Recomendo a leitura – basta clicar sobre os nomes das publicações.

One Reply to “É o petróleo, estúpido! (Sobre a Líbia)”

  1. Concordo, e mais: já me cansei de ver os jornais dizendo o quão bonzinhos são os EUA e seus coleguinhas europeus. Penso que a melhor definição para este atendado na Líbia ( atentado contra a população líbia, que é de fato quem está morrendo) veio da bandnewsfm, que sempre gosto de ouvir, que disse não exatamente com essas palavras: ” bombardear pela Paz é como trepar pela virgindade”. Nada vem de graça.

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