Hoje falaremos de um clássico, considerado por muitos o maior samba enredo de todos os tempos – embora, em minha modesta opinião, este título se aplique melhor a “Os Sertões” – e com certeza um dos maiores sambas da safra brilhante do império Serrano: “Heróis da Liberdade”, 1969.
O clima político, à época, era irrespirável. O AI-5, ato ditatorial do governo militar que restringia barbaramente as liberdades individuais, fechava o Congresso Nacional, institucionalizava a Censura e prendia e torturava todos àqueles que se opunham ao governo havia acabado de ser editado. O Regime Militar se fechava e calava, no grito ou na pancada, as vozes dissidentes.
Na prática o AI-5 foi um “golpe dentro do golpe”, como resposta às pressões de setores mais radicais das Forças Armadas por um endurecimento do regime. Como pretextos – mas não causas – foram utilizados o crescente pedido por liberdade, vocalizado pelo Movimento Estudantil, a relativa liberdade cultural e de imprensa e um discurso do jornalista e deputado Márcio Moreira Alves na Tribuna da Câmara por ocasião do 7 de Setembro, conclamando às moças não namorarem cadetes do Exército.
Os militares pediram a cassação do deputado por “crime de opinião”, que é um claro acinte ao conceito político de liberdade de opinião – um parlamentar não pode ser punido pelo que diz em exercício de seu mandato. Obviamente, a Câmara dos Deputados, em rara demonstração de independência negou o pedido, e no dia seguinte veio o AI-5 – que, na prática, significou a tomada do poder pelos grupos mais radicais e mergulhou o país em uma era de trevas, autoritarismo, torturas, mortes e repressão.
Pois bem. É neste cenário que o Império Serrano apresenta como seu enredo um título sugestivo: “Heróis da Liberdade”. A proposta era a de mostrar ilustres brasileiros que lutaram pela liberdade no transcurso de nossa história – desde o Movimento Nativista da Batalha de Guararapes contra os holandeses até os pracinhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na II Grande Guerra. Apresento abaixo um raro documento, transcrito pelo site referência “Galeria do Samba”, que continha a súmula do desfile distribuída na avenida – uma espécie de sinopse.
Súmula do Desfile distribuída na avenida
O ” Abre-Alas ” é uma abóbada de 9 metros de comprimento com um azul do infinito ao seu interior, com uma pássaro voando a caminho do infinito, em sinal de liberdade. Atrás da abóbada vem escrito: Heróis da Liberdade. A abóbada vem girando.
A Comissão de Frente vem vestido em super-pitex, mas a modo convencional.
O enredo se desenvolve em dez atos:
1º.ato – Movimento Nativista do Brasil
“Com a invasão holandesa e a Batalha de Guararapes se inicia o movimento nativista do Brasil. Em razão dessa batalha se viu que o índio não servia para escravo, sendo então procurado o negro. O negro era muito mais resistente e lutador, o índio não se sujeitava, fugia.” São destaques as figuras de André Vidal de Negreiros, Felipe Camarão, Henrique Dias, Índia Paraguaçu e Maurício de Nassau. As alas vêm com saldados e civis da época.
2º.ato – Palmares
“Mas o negro cansado de tanta exploração, vai procurar onde possa ter um pouco de liberdade: Palmares, que depois é arrasada”. As alas mostram escravos, reis e rainhas nativos: seis reis e seis rainhas. Destaques: seis reis nativos, entre eles Ganga Zumba, encarnado por Joãosinho da Comédia; e Zumbi, por Geraldo.
3º.ato – Filipe dos Santos
“Filipe foi herói mártir.Era revoltado contra a coroa que cobrava absurdos de impostos” . Filipe dos Santos é o grande destaque; para melhor representar os traços finos do herói. Seguem alas civis, escravos do ouro e militares da época.
4º.ato – Inconfidência Mineira e Baiana
Nesta parte aparece a primeira alegoria: uma mesa onde estão sentados Cláudio Manuel da Costa e Alvarenga Peixoto; Tiradentes em pé ( com seis metros de altura ) no momento em que ia ser conduzido à forca. Ao fundo um mapa do Brasil com um condor simbolizando a luta pela liberdade. Segue Tiradentes como destaque.
5º.ato – Revolução Liberal
“Uma homenagem ao movimento que assim denominou: Dom João VI aceita governar constitucionalmente “. O destaque é D. João VI, vivido por Jorge. As alas têm ministros, damas e saldados da época.
6º.ato – Independência
Logo à frente vem D.Pedro I, em destaque, encenado por Paulinho. Seguem alas da corte, com damas e cavalheiros. Aparece a segunda alegoria: D.Pedro I a cavalo em tamanho normal, tudo feito de pasta. E o estandarte da Maçonaria.
7º.ato – Confederação do Equador
O destaque seria Frei Caneca, acompanhado do Padre Miguelino e outros, mas a Escola decidiu não colocar os destaques porque teriam de usar hábitos religiosos, o que poderia não ter aceitação do público e ferir a sensibilidade do clero. Mas em homenagens aos heróis as alas carregam a bandeira com que o movimento foi sustentado. Outras alas mostram saldados e civis.
8º.ato – Abolição
3a.alegoria: Castro Alves ( seis metros de altura ), tendo ao lado um escravo de joelhos com os grilhões quebrados, em atitude de agradecimento. Mãe segura em tocha, simbolizando a liberdade. Tudo isso girando. E uma frase histórica: ” Assim como a praça é do povo, o céu é do condor ” . Alas com escravos, senhores, sinhás-donas, cortejos, procissões, todos os figurantes em Debret. A ala dos intocáveis com pombos vivos nas mãos e escravos carregando cada qual uma letra da palavra Liberdade. Destaque: Castro Alves.
9º.ato – Proclamação da República
Vem a mulher vestida de “República” Ala com ministros e soldados. Destaques de Deodoro e Benjamin Constant. O mestre-sala Canelinha vai dançar o balé da liberdade. Canelinha abre a bandeira em sinal de liberdade. Foge da ” república ” ( e porta-estandarte ) se liberta dançando de braços abertos .
10º.ato – Homenagem ao Samba aos heróis
Uma carreta empurrada por dois homens mostra: uma bota nazista pisando no mundo; um pracinha da guerra de 42 ferido, lembrando os soldados em defesa das Nações. Duas crianças de colégio, um pretinho e uma branca. E um sol no poente simbolizando: O Sol Nasceu para todos. Alas com malandros e baianas prestam sambando sua homenagem aos 21 anos de glórias do Império Serrano”.
Hoje o lamento de “Ôôôô, Liberdade Senhor!” no Império é usado para cortejos fúnebres. Talvez seja essa a maior razão para não terem usado novamente o samba em reedições: a associação inconsciente. Porque é um sambaço…
E que pode vir a tornar-se muito atual em breve, com qualquer resultado da eleição…
Não sabia disso, Bruno, obrigado.
Sobre o item dois, este fundamentalismo religioso aliado à Serra muito me preocupa. será tema em breve aqui.
abs