A grande notícia na esfera blogueira brasileira na última semana foi a volta à ativa de “O Biscoito Fino e a Massa”, mantido pelo Professor de Literatura Idelber Avelar.
Sempre com textos bem escritos e que fomentam o debate, é visita indispensável àqueles que querem formar opinião sobre os fatos e tendências brasileiras.
Reproduzo aqui, fechando o domingo, texto publicado sobre a alegação do candidato presidencial José Serra de não responder a perguntas de repórteres por “não entender o que eles falavam devido ao sotaque”. Originalmente de “O Biscoito Fino e a Massa”, reproduzo aqui. Entretanto, o blog merece e muito uma visita detalhada.
José Serra mente até sobre sotaque

Evidentemente, a última coisa que um professor de línguas/literatura, não importa de que posição política, deve fazer com as recentes declarações de José Serra — de que “não entende” sotaques em Minas Gerais, Goiás e Pernambuco — é acreditar nelas. Sim, porque a afirmativa de que é possível que um brasileiro alfabetizado como Serra viaje pelo Brasil e tenha problemas de comunicação oral, por culpa de variações dialetais do português brasileiro, é uma afirmativa comparável a “Serra criou os genéricos”, ou seja, trata-se pura e simplesmente de uma mentira, encapada, como outras, com uma camada de típico preconceito classista da República Morumbi-Leblon.

Isso não existe no Brasil. Serra estava mentindo. Vamos à sociolinguística elementar que nos permite mostrar por que ele estava mentindo.

Claro que estão certos os colegas acadêmicos mineiros entrevistados na matéria de Juliana Cipriani para o Estado de Minas: variações dialetais existem e um ato de comunicação aqui ou acolá pode tropeçar nessas variações, em combinação com o ruído do ambiente e outros fatores. Mas a afirmativa de que possa existir uma dificuldade sistemática, genuínos problemas de compreensão oral de um brasileiro viajando pelo país é um disparate. O brasileiro comum sabe disso intuitivamente, não é necessário ser da área de Letras. Quando Serra alega incompreensão de sotaque, ele está combinando uma mentira com um preconceito, uma desculpa esfarrapada para não ouvir o outro acoplada à real crença — real, ainda que amparada numa mentira — de que o outro não tem nada de importante a dizer.

Por mais que um alemão possa testemunhar que a variação dialetal da Bavária lhe causa problemas de compreensão, ou por mais correto que seja supor que um cidadão dos cafundós do Alabama e alguém do norte da Escócia, falando a “mesma” língua inglesa, poderiam não se entender, no Brasil isso não existe. Se há uma coisa que distingue o Brasil de outros países de extensão comparável é a sua assombrosa unidade linguística (com “unidade” aqui, claro, o único que se quer dizer é que todos falam, com incontáveis variações sócio- e idioletais, reconhecidamente a mesmíssima língua). Se você é falante nativo de português nascido no Brasil, a afirmativa de que “não entenderá” o sotaque de tal ou qual lugar é uma patacoada. É como aquele brasileiro que sai “para a América” e um ano depois diz que “esqueceu o português”.

Por isso, a segunda coisa que um professor de línguas/literatura não deve fazer com a afirmativa de Serra é ceder à tentação de dar-lhe lições de sociolinguística do português brasileiro e passar-lhe um atestado de ignorância. É verdade que a República Morumbi-Leblon continua não sabendo nada de Linguística, mas aqui não se tratava de ignorância. Era má fé mesmo, no seco.”