O pessoal das listas de discussão por e-mail das quais participo costuma dizer que não gosto do Salgueiro. Isso se explica porque no pré – e pós – carnaval de 2009 eu ‘desci a lenha’ no samba da escola, que achava fraco – apesar das notas máximas – e igual a todos os sambas da escola desde 1993. À exceção de um.

É justamente este samba que é o tema de nossa coluna de hoje. “Candaces”, Salgueiro 2007.

A vermelha e branca da Tijuca vinha daquela que é a pior classificação de sua vitoriosa história. O décimo primeiro lugar do ano anterior era reflexo de um enredo mal compreendido e do fato da escola ter aberto os desfiles do Grupo Especial, auxiliados por um samba não particularmente brilhante. Durante a apuração a escola chegou a correr risco de rebaixamento.

O carnavalesco Renato Lage para 2007 optou por um resgate das origens da escola, que sempre se notabilizou e se destacou por enredos com temática africana. A idéia era motivar novamente o salgueirense e “sacudir a poeira” após o péssimo resultado de 2006. “Candaces” foi o enredo escolhido, contando a saga da dinastia de rainhas da África Oriental, muito antes de Cristo. Nas palavras da sinopse:

“Falar de Candace … É preciso olhar pra trás para ir pra frente. Porque atrás de nós tem um espelho e é nele que está nossa cara verdadeira. Nosso espelho é um espelho de Rainhas. Rainhas-Mães, Rainhas Guerreiras. Candaces. Somos herdeiros dessas Rainhas, temos a fala de nossos ancestrais”. (Trecho da peça Candaces – A Reconstrução do Fogo)

A partir desta inspiração inicial, o Salgueiro vem desvendar em seu enredo a história das Candaces, dinastia de rainhas da África Oriental que comandaram, antes da era cristã, um dos mais prósperos impérios do continente.

Mais do que uma linhagem de rainhas, Candace torna-se um conceito, através do qual a força da mulher negra se faz presente em lutas, conquistas e no legado matriarcal que venceu o tempo e as distâncias.

As Mães Feiticeiras

Do grande continente africano trazemos não só a origem, mas também toda uma crença ancestral que exalta a figura feminina como a grande provedora que principiou a vida do Homem.

Um desses mitos conta que no início de tudo, ligadas às origens da Terra, havia as Mães Feiticeiras. Donas do destino da humanidade, elas eram o ventre do mundo. Conhecedoras dos segredos da vida, continham em si a capacidade de manipular os opostos e, assim, manter o equilíbrio do universo. Traziam consigo a força criadora e criativa do planeta. Raízes de um misticismo que abrigava em sua sabedoria a dualidade do cosmos, detinham o poder sobre a vida e a morte, o bem o mal, o amor e a cólera, o princípio e o fim.


As Ascendentes Candaces

Do mito à história, através do exemplo de duas grandes rainhas da Antigüidade, exaltamos o comando de mulheres negras sobre seus povos. Assim, evocamos a primeira ascendente Candace: Mekeda, ou Rainha de Sabá.

Reino das mil fragrâncias, confluência das culturas árabe e africana, Sabá era uma terra rica e mantinha uma sociedade matrilinear, em que o poder era passado aos descendentes pela via feminina. Ali viveu a exuberante Rainha Negra. A traída pela fama de riqueza e sabedoria que envolvia Salomão, o rei dos judeus, Mekeda adentrou Jerusalém com uma comitiva de camelos, levando uma infinidade de aromas e grande quantidade de ouro e pedras preciosas. Desse encontro nasceu a reverência à mulher que cativou com beleza, inteligência e diplomacia um dos soberanos mais importantes de sua época.

Do Oriente, rumo ao império dos faraós, surge mais um exemplo do po der feminino negro. Nefertiti reinou no Egito por mais de uma década durante o apogeu de uma civilização que iria influenciar toda a humanidade. Reverenciada por sua beleza, governou ao lado de Amenófis IV (Akhenaton) com status equivalente ao dele. Juntos, implementaram reformas culturais e religiosas, dentre elas o culto ao Deus Sol Aton. Foi imortalizada em templos mais do que qualquer outra rainha egípcia.

Candaces

Ao sul do Egito, banhado pelo Nilo, havia o Império Meroe. Era governado por uma dinastia de soberanas negras que exerciam o poder civil e milit ar. Imortalizadas pela história como Candaces, estas bravas guerreiras nasceram sob o signo da coragem para ocupar posição de poder e prestígio. Numa forma de conexão com as tradições matriarcais da África, reinavam sobre seu povo por direito próprio, e não na qualidade de esposas.

Viviam o apogeu de uma era de esplendor e fartura, abençoadas pelo grande rio e impulsionadas pelo comércio com o Oriente Médio. A localização do império permitia um intenso intercâmbio com outros povos – hebreus, assírios, persas, gregos e indianos. Em suas terras, ricas em ferro e metais preciosos, ergueram-se pirâmides e fortalezas.

Seus exércitos usavam armas de ferro e cavalaria, ferramentas e habilidades herdadas dos povos núbios, que lhes davam vantagem no campo de batalha. A idolatria daquela civilização pelos cavalos era tanta que estes animais eram enterrados junto com seus guerreiros, para servi-los por toda a eternidade. Esta imagem, misto de homem e cavalo, alcançou a Grécia, inspirando o surgimento da figura mitológica do Centauro. Na religião, cultuavam Apedemek, Deus da guerra e da vitória, representado por um homem com cabeça de leão.

A prosperidade de Meroe, que deu prosseguimento ao domínio Núbio na região, atraiu a ira dos senhores do mundo, o Império Romano. Aqui tem início o episódio que marcou a história das Candaces.

Líderes de um movimento de resistência contra o poderio bélico dos invasores, enfrentaram o forte exército, aliando técnicas de guerrilha e diplomacia. Uniram seu povo na luta contra o jugo romano movidas pela sede de justiça e liberdade.

Após a invasão de Petronius, a Rainha Candace esperou que as tropas do general adormecessem e os surpreendeu com um ataque. Este movimento abriu a possibilidade para uma negociação diplomática, comandada pela soberana negra. O resultado foi a retirada dos soldados romanos e a demarcação do território de Meroe, devolvendo a paz ao seu povo. Assim foi escrito o mais importante episódio que marcou a nobre dinastia de guerreiras naquele império africano.

Mas os exemplos de comando e resistência de bravas negras continuaram a florescer por outras eras e civilizações. Para além de seus próprios domínios, emergiu a saga das Candaces, Rainhas Mães que se fizeram deusas, reinando na crença de suas descendentes espalhadas pela Terra, porta-vozes da sua luta por toda a história.

As Descendentes

Várias luas se ergueram e se puseram no céu do continente negro. Um dia, rainhas e princesas de tribos e reinos se viram obrigadas ao trabalho forçado no novo mundo. Mas foi ali que fizeram multiplicar o sangue Candace. Em uma terra tão distante, ligadas ao passado, mulheres negras geraram o valor da bravura herdada de suas ancestrais.

A palavra liberdade ganhou um significado mítico no Brasil, dando um novo sentido à vida levada entre a clausura e o trabalho forçado. A bravura da dinastia Candace foi eternizada pela tradição oral africana, que tratou de espalhar aos quatro cantos os grandes feitos das suas soberanas, inspirando a luta de guerreiras que subverteram a força dos seus senhores e lutaram pela liberdade.

Para elas, ser livre era também reverenciar seus costumes, reviver o passado soberano, encenar a memória dos seus antepassados. Em folguedos, foram eternizadas na glória real da corte negra. No novo continente, há o despertar para o misticismo trazido do outro lado do Atlântico. A construção da identidade africana no Brasil encontra nas celebrações e ritos toda uma reverência à mulher como mediadora entre os deuses e a humanidade.

Na Bahia, as escravas ganhadeiras vendiam o excedente de produção em feiras e mercados como em sua terra natal. O lucro era poupado para comprar suas alforrias e a dos maridos, tornando-as mulheres com voz ativa. No chão brasileiro, era revivida a tradição das feiras iorubanas, um espaço não só para trocas de mercadorias, mas também para trocas simbólicas. A mulher concentrava o poder de fechar negócios, disseminar notícias, modas, receitas, músicas, e, sobretudo, aconselhar.

Assim, tornaram-se as grandes mães negras, sacerdotisas que tiveram suprimido o poder real na África, mas que passaram a exercer o poder espiritual no novo mundo.

Os elos entre arte e religião se tornaram mais fortes. As mães de santo se transformam em mães de samba. Tia Ciata, a mais conhecida, era respeitada por sua sabedoria religiosa. Celebrava os orixás em cerimônias em sua própria casa, que sucediam festas regadas a muita música, batuques e quitutes. Um misto de consagração da música e dos deuses afro-brasileiros.

Salve as Candaces do Candomblé , evocadas na saudação às entidades femininas.

Odoyá, Iemanjá!, rainha das águas do mar;
Saluba, Nanã!, deusa da Terra;
Eparrei, Iansã!, senhora dos raios;
Orayê-yê o, Oxum!, guardiã da beleza e do amor;
Oba-xi, Obá!, senhora das águas revoltas.

Celebração de religião e do puro prazer de dar ao corpo o gingado malemolente, fruto da persistência destas rainhas, sacerdotisas, baianas, pastoras, mães negras do carnaval.

A Imortalidade
 

Mulher. Negra. Gênero e raça. São as Candaces dos nossos dias, herdeiras do laço afro e da missão de semear esperança na Terra. Provedoras da força que nos acompanha desde os primeiros passos. Detentoras do relicário da arte em prol do coletivo.

Majestade, soberana, guardiã da sagrada chama da vida, dona do carnaval. Derrama teu talento ao interpretar a história da raça; enfeitiça os sentidos com tua beleza negra, libertando corpo e alma. Eleva-te ao panteon das matriarcas ancestrais da África e invoca a Candace dentro de ti. Resgata a força feminina das guerreiras imortais, Rainhas Mães de todos os tempos, para abençoar e iluminar teus filhos, emanando o Axé, poder vital da bondade e do afeto, energia que comanda o mundo.

Hoje, recontamos as glórias de quem um dia cumpriu seu destino e fez história, revivida sempre que alguém invocar teu nome. Salve as Candaces! Raça e gênero num só coração.

Renato Lage, Márcia Lavia e Diretoria Cultural”

(Fonte: Galeria do Samba)

Antes da escolha do samba, havia muitta curiosidade sobre a composição que seria escolhida. Desde o título de 1993 a escola vinha “em busca do Ita perdido”, repetindo, com muito menos brilhantismo, a fórmula do samba campeão naquela oportunidade. Eram sambas “fáceis”, com melodia e refrões “animados” e que eram esquecidos imediatamente após o desfile. Sambas descartáveis. Nem o enredo sobre o cinquentenário da escola em 2003 escapou desta fórmula de samba – o que, em minha opinião, foi uma pena.

Nos fóruns da internet brincava-se dizendo que o Salgueiro iria colocar os orixás para “zoar” e “sacudir” na Sapucaí. E que o carnavalesco Renato Lage faria uma “senzala com neón” – em alusão óbvia ao estilo ‘high tec” no qual o brilhante artista notabilizou-se. Não estaríamos mais enganados.

A escolha do samba resgatou o bom e velho Salgueiro de antigamente: um samba denso, cativante, de letra poética e contando o enredo; e melodia que permitia ao componente cantar e se emocionar, não somente o salgueirense como aquele admirador do bom samba e da “Academia”. O refrão final com a saudação aos orixás femininos era o arremate de ouro ao samba.

Antes do carnaval quem visitava a Cidade do Samba percebia que o carnavalesco estava “a fim de jogo”. À medida em que as alegorias tomavam forma, o comentário unânime era de que nada chegava nem perto da escola tijucana em termos de bom gosto e requinte. Eu me lembro que estive no barracão na sexta feira antes do carnaval e saí de lá absolutamente sem palavras com o que havia visto.

O Salgueiro foi a terceira escola a pisar na avenida na noite de segunda feira de carnaval, 19 de fevereiro. Pisou na passarela disposto a fazer história.

Cada alegoria que passava, cada fantasia de ala mostrava a busca do resgate pela escola e o grito ao mundo de que o Salgueiro estava sim vivo, estava sim disposto a quebrar o jejum de catorze anos sem títulos. O samba casou-se maravilhosamente bem com o visual, permitindo um outro tipo de evolução à escola. Isso apesar do puxador, que decididamente não estava à altura da composição escolhida – além de enfiar “cacos” desnecessários.

A agremiação encerrou seu desfile como uma das grandes candidatas ao título, ao lado da Beija Flor. A Academia estava viva, mais do que nunca.

Só que a apuração… em um resultado absolutamente incompreensível, a escola obteve apenas o sétimo lugar, com 396,4 pontos, ficando fora inclusive do Desfile das Campeãs. O samba perdeu pontos, inacreditavelmente – de acordo com as justificativas, devido aos “cacos” incluídos pelo puxador e que são nítidos nos dois vídeos que disponibilizamos aqui.

A consequência foi funesta: a escola voltou ao gênero de sambas descartáveis nos anos seguintes, obtendo o título em 2009 com uma composição que, apesar das notas máximas, eu acho horroroso. E igual a todos os sambas da escola desde 1994 – a ponto do Salgueiro ter feito o “esquenta” este ano com o samba campeão de 2009 e eu ter achado que já era o samba oficial. É tudo igual mesmo…

“Candaces” acabou sendo um ponto fora da curva. Entretanto é muito superior a todos os sambas da escola entre 1994 e os dias atuais.

Vamos à letra, de autoria de Dudu Botelho, Marcelo Motta, Zé Paulo e Pião:

“Majestosa África
Berço dos meus ancestrais
Reflete no espelho da vida
A saga das negras e seus ideais
Mães feiticeiras, donas do destino…
Senhoras do ventre do mundo
Raiz da criação
Do mito a história
Encanto e beleza
Seduzindo a realeza

Candaces mulheres, guerreiras
Na luta… Justiça e liberdade
Rainhas soberanas
Florescendo pra eternidade

Novo mundo, novos tempos.
O suor da escravidão
A bravura persistiu
Aportaram em nosso chão
Na Bahia… Alforria
Nas feiras tradição
Mães de santo, mães do samba!
Pedem proteção
E nesse canto de fé
Salgueiro traz o axé
E faz a louvação

Odoyá Iemanjá; Saluba Nanã!
Eparrei Oyá;
Orayê Yê o, Oxum!
Oba Xi Oba

Fotos: Walkir Fernandes Jr.

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