Após um intervalo, a nossa coluna “Samba de Terça” está de volta. Por enquanto com frequência quinzenal, quando estivermos mais perto do carnaval de 2011 voltaremos a falar semanalmente.
Reinicio a série com uma samba que ainda está “fresquinho” na cabeça dos leitores: Unidos de Vila Isabel 2010, “Noel, a Presença do Poeta da Vila”.
A escola do bairro da Zona Norte carioca foi bastante badalada antes do desfile. Seu enredo seria o centenário de Noel Rosa, sambista e compositor dos maiores da história do samba e da música popular brasileira, “cria” do bairro.
O enredo era de autoria do carnavalesco Alex de Souza, do historiador Alex Varela e do grande compositor Martinho da Vila. Reproduzo a sinopse abaixo:
“1910. Ano marcado por grandes transformações, prenunciadas com a passagem do Cometa de Halley. Entre outros fatos: a Revolta da Chibata, liderada pelo “Almirante Negro”, João Cândido, cujo motim ameaçou bombardear o Rio de Janeiro, e o nascimento de Noël de Medeiros Rosa, popularmente conhecido como Noël Rosa, em 11 de dezembro. A partir desse dia, a música popular brasileira nunca mais seria a mesma.

O pai era um amante da cultura francesa. Pela proximidade das festas natalinas deu ao filho o nome de Noël, termo que equivale a Natal entre os franceses. Também era tradição no bairro de Vila Isabel, no período natalino, passar o rancho, quando todos iam ouvir o canto das “Pastorinhas”. 

Desde sua infância, Noël se revelava irreverente. Ele era da rua. Na escola, gostava das piadas proibidas e das brincadeiras obscenas. Começou estudando numa escola pública, e, depois se transferiu para o tradicional São Bento, onde imperava os rigores educacionais. A rua e os seus tipos eram a sua grande paixão. “Poeta-cronista” da cidade; cidade que cabia em Vila Isabel. Bairro síntese dos personagens cariocas: os pequenos burgueses, o bicheiro, os malandros, o seresteiro, o sinuqueiro, o cartiador, o mendigo, o vigarista, o proxeneta, o valentão, entre tantos outros. 

Noël preferia a luz das estrelas à luz solar. Ele acompanhava os cantores da madrugada com o seu inseparável violão. Ficou conhecido pelo bairro. No ano de 1929, um grupo formado por jovens de classe média do conjunto musical Flor do Tempo o convidou para formar um novo grupo: o Bando dos Tangarás, grupo composto por Almirante, Braguinha, Henrique Brito e Alvinho. O conjunto se dedicou à moda da época: a música nordestina; emboladas; sambas com tempero do Nordeste; embora, seus trajes e seus sotaques mais pareciam de caipiras. A indústria e o comércio fonográfico cresciam bastante no Rio de Janeiro, quando foram convidados para gravar pela Parlophon, subsidiária da Odeon.

A inserção no Bando dos Tangarás abriu o caminho para Noël iniciar sua carreira como compositor popular. Ainda em 1929, ele escreveu a sua primeira composição, uma embolada, intitulada “Minha Viola”.

Noël Rosa tinha grande admiração por Sinhô, frequentador assíduo da Casa da Tia Ciata, localizada na Praça Onze, onde os batuques do samba, influenciados pelo maxixe, ecoavam livremente. O “Poeta da Vila”, contudo, se integrou a outro tipo de samba, que veio do bairro do Estácio, onde vivia Ismael Silva, e se espalhou pelos morros da cidade como o Salgueiro, Mangueira, Favela, Saúde, Macacos. Noël subiu ao morro e se integrou aos sambista que lá viviam. E compôs com algum deles, como Cartola, do Morro da Mangueira, e Canuto e Antenor Gargalhada, do Salgueiro. O “poeta” e Franscisco Alvez (que juntos fizeram parceria no grupo “Ases do Samba”) foram os maiores responsáveis pela consagração de diversos compositores negros de samba. 

Este tipo de samba que veio do Estácio, mais marcheado e acompanhado por instrumentos de percussão, era aquele tocado nos blocos, como o “Deixa Falar”, que deu origem a primeira “Escola de Samba”. No carnaval de Vila Isabel havia dois blocos: o Cara de Vaca, organizado, com componentes selecionados e cercados por um cordão de isolamento, e o Faz Vergonha, composto por populares e com sambas improvisados, do qual fazia parte Noël Rosa. As batalhas de confete no Boulevard eram o ponto alto do desfile de blocos.

Desde a adolescência, Noël adorava a serenata e serestas. O local favorito das noitadas era o cruzamento do Ponto dos Cem Réis, em Vila Isabel, onde os bondes “mudavam de seção”. Ponto de botequins e esquinas. Era ali que se reunia com os amigos e tomava sua cerveja preferida, a Cascatinha. No Café Vila Isabel, ele compôs a maior parte das suas composições. De bar em bar, em “Conversa de Botequim”, e de amores em amores, como o que sentia por Fina, para quem fez os “Três Apitos”, teceu suas canções. Frequentava também os prostíbulos do Mangue, e era facinado pelos malandros, homens que exploravam as mulheres, minas ou mariposas, e viviam da jogatina. Na Lapa chegou a conhecer o famoso Madame Satã, como também Ceci, a sua “Dama do Caberé”.

O ano de 1930 mudou a história do Brasil e a vida de Noël Rosa. Na política nacional, Getúlio Vargas assumiu a presidência do país por meio da chamada Revolução de 30. Nosso “Poeta” gravou o seu primeiro samba de história: “Com que Roupa?”, que fazia alusão de forma humorada a um Brasil de tanga, ilhado em pobreza, a fome e a miséria alastrando-se como praga, consequencia imediata da crise da bolsa de Nova York que abalou o mundo inteiro. O samba conquistou a cidade. A composição de sucesso passou a integrar o programa de diversas peças do teatro de Revista, todas encenadas nos palcos da Praça Tiradentes, que vivia dias de fulgor e esplendor. No mesmo ano conseguiu ser aprovado no vestibular para a Faculdade de Medicina. Contudo, ficou insatisfeito com o curso e abandonou-o. Ainda assim, compôs “Coração”, conhecido como um “samba anatômico”. O “novo regime” de Vargas e suas medidas governamentais também não passariam desapercebidas pelo compositor, ganhando tons de críticas bem humoradas nas letras de alguns de seus sambas como “O Pulo da Hora” ou “Que Horas São?” sobre a criação do horário de verão; “Psilone” composto em função da nova reforma ortográfica; “Samba da Boa Vontade”, sobre o pedido de Vargas aos brasileiros para manter o sorriso, mesmo num momento de crise; e, ainda “Tenentes … do Diabo”, samba jocoso quanto aos tenentes getulistas, rivais dos “Democratas”.

No começo de 1934, teve o início a famosa polêmica envolvendo os compositores Noël Rosa e Wilson Batista. Este último compôs “Lenço no Pescoço”. Noël rebateu com “Rapas Folgado”. Em resposta, Wilson compôs “Mocinho da Vila”. Ainda no mesmo ano, no período da primavera, Noël compôs “Feitiço da Vila”, uma homenagem para a rainha primaveril de Vila Isabel, Lela Casatle. Samba que colocou Noël em evidência, uma vez que o Brasil inteiro cantou a composição. A polêmica deu uma trégua e reacendeu no ano seguinte. O sucesso do “Filósofo do Samba” incomodou Wilson Batista, que gravou “Conversa Fiada”. Noël reagiu com “Palpite Infeliz”. Wilson respondeu com dois novos sambas: “Frankstein da Vila” e “Terra de Cego”.

Os anos trinta foram a chamada Era do Rádio, consagrada com a criação da Rádio Nacional. Em pouco tempo, o país inteiro ouviria suas rádio-novelas, seus programas de auditório e viria surgir muitas estrelas da nossa música, as chamadas cantoras do rádio. Marília Baptista e Araçy de Almeida foram as maiores intérpretes das canções de Noël. Este também atuou no rádio. No Programa do Casé, de Adhemar Casé, na Rádio Philips, Noel cantava e trabalhava como contra-regra. E, em 1935, Almirante conseguiu-lhe na Rádio Clube do Brasil, trabalhando como libretista no programa “Como se as óperas célebres do mundo houvessem nascido aqui no Rio”. Escreveu o libreto da ópera “O Barbeiro de Niterói” uma paródia ao “Barbeiro de Sevilha”. Fez também as revistas radiofônicas “Ladrão de Galinhas” e a “Noiva do Condutor”. As composições de Noël também foram utilizadas no cinema. Em Alô, Alô, Carnaval (1936), compôs “Pierrot Apaixonado”, em parceria com Heitor dos Prazeres. Para o filme Cidade Mulher (1936), ele compôs seis músicas, dentre as quais “Tarzan, Filho do Alfaiate”, em parceria com Vadico.

No ano de 1937, os céus do Brasil foram atravessados pelo cometa de Hermes. Os cometas inspiraram durante milênios profundos temores na humanidade, que os considerava sinais divinos de maus presságios. O medo persistia. Foi assim com o cometa de Halley naquele ano de 1910 e voltou a ser vinte sete anos depois. E, de fato, realmente foi. Na noite do dia 04 de maio, no mesmo chalé onde nasceu na rua Teodoro da Silva, em Vila Isabel, faleceu, acometido pelo “mal do século”

Da mesma forma que nasceu num ano turbulento, Noël disse “Adeus” num ano de grandes transformações, cumprindo assim um ciclo de mudanças. Ele mudou a história da música popular brasileira. As serestas e serenatas não seriam mais as mesmas sem a sua presença. Uma outra “Festa no Céu” faria ele entre anjos e arcanjos. Para sua felicidade, não viu a instalação do Estado Novo, com seu caráter repressivo e censurador, nem mesmo a chegada do “Tio Sam”. Não viu também a vida boêmia da Lapa se substituída pelas boates chiques de Copacabana, onde Aracy de Almeida, o imortalizou. Também não teve o prazer de ver a fundação do GRES Unidos de Vila Isabel, Agremiação carnavalesca do bairro que tanto cantou. No firmamento do samba, assim como a estrela Dalva, a estrela de Noël, finalmente, no céu despontou e jamais se apagou. Foi o seu “Último Desejo”. Por isso, cantamos: “Quem nasce lá na Vila, nem sequer vacila, ao abraçar o samba”. Saudades de ti, Noël!!! 

Carnavalesco: Alex de Souza

Autores do Enredo: Alex de Souza, Alex Varela (historiador) e Martinho da Vila

Redação do Texto da Sinopse: Alex Varela”

A disputa para a escolha do samba foi recheada de polêmicas. Primeiro o presidente da escola anunciou que não haveria disputa e Martinho da Vila faria o samba. Depois que haveria uma parceria entre Martinho e André Diniz, os dois maiores vencedores de sambas enredo da história da escola.
No fim acabou havendo o concurso tradicional, mas com fortes suspeitas de que já haveria um resultado antes mesmo de seu início.
Ainda tem mais. O samba de Martinho, que se sagrou vencedor, é muito semelhante a uma outra composição do artista, em parceria com Gracia do Salgueiro. Disponibilizo abaixo a letra:

“Se um dia
A boemia me chamasse
Com saudade e perguntasse
Por onde anda Noel
Com o meu sorriso responderia
O autor de “Filosofia”
Anda na terra e no céu
Eu não sambei com Noel
Com ele eu não cantei
Porém um dia sonhei
Que eu era o seu menestrel
Eu não bebi com Noel
Eu não vivi com Noel
Mas sei que ele está presente
Com a gente em Vila Isabel
E na avenida
Se me vêem como espelho
Eu sou o seu aparelho
Num transe de carnaval
E a fantasia que se usa
Já tem os tons de lá do céu
Que são as cores
Da nossa Vila Isabel”

Veremos abaixo que a primeira parte do samba enredo tem, sim, uma letra muito semelhante a esta. Para completar a polêmica, existe uma lenda (jamais confirmada) que conta a “Presença de (André) Diniz” no samba após a vitória no concurso – o vitorioso e talentoso compositor teria “arrumado” a melodia do samba para torná-lo mais apropriado ao desfile.
Polêmicas à parte, era um belo samba, muito bem gravado no CD pelo puxador Tinga. Aqueles que discordam dos rumos que o samba de enredo vem tomando, entre os quais me incluo, torciam para que o samba fosse bem na avenida e mudasse o paradigma vigente atualmente, de “dez versos, refrão do meio com quatro, segunda parte também com dez versos e refrão final explosivo com mais quatro versos”.
Havia uma grande expectativa para o desempenho do samba na noite de 15 de fevereiro, segunda feira de carnaval. A escola pisaria a passarela como a quinta e penúltima a desfilar.
Entretanto, preciso fazer um parêntese antes de continuar. Tal qual a Portela, o Império Serrano e a Mangueira, a Vila é uma escola que tem muita resistência a Mestres de Bateria vindos de fora da escola. E a grande atração da escola era a troca no comando da bateria, com Mestre Átila, premiadíssimo no Império Serrano. E…
A escola pisou na avenida como grande favorita. O samba, aclamado.
Mas dois fatores arrasaram o desempenho do samba e, por tabela, o da escola.
O primeiro foi uma falha no som que impedia a captação correta dos instrumentos da bateria e dos puxadores e que alterou totalmente a cadência do mesmo para os espectadores e os desfilantes.
O segundo… 
Bom, o segundo fator foi o desempenho lamentável da bateria, que desde o seu “esquenta” estava bastante estranha. Embolava, atravessava e se percebia claramente descompasso entre as peças “grandes” e as “pequenas”.
A minha sensação no ponto onde eu estava (Setor 3, início da pista) era de que o surdo que faz a marcação para os microfones – o chamado “guia” – estava totalmente atravessado.
Em suma, a bateria foi uma lástima. A ponto de Mestre Átila fazer duas “paradinhas” seguidas em frente ao ponto da pista onde eu estava para ver se conseguia acertar o ritmo. Para quem não conhece, as paradinhas são recursos que visam abrilhantar o desfile de uma escola, mas também podem ser utilizadas para corrigir erros da bateria – algo como “parar para começar de novo”.
Mas nem este recurso deu jeito. Lógico que estas coisas são muito difíceis de se provar, mas minha hipótese é de que tenha sido algum tipo de “inconformismo” pela vinda de um Mestre de fora da escola – em português claro, sabotagem. Entretanto, são apenas hipóteses.
O certo é que mesmo em um andamento excessivamente exagerado e que inibiu o efeito da bela melodia, o samba ainda salvou as notas máximas. A bateria foi bastante penalizada nas notas mas assim mesmo ainda a escola salvou um quarto lugar no resultado final.
Vamos à letra do samba e, abaixo, um vídeo do desfile da escola.
“Se um dia na orgia me chamassem
Com saudades perguntassem
Por onde anda Noel
Com toda minha fé responderia
Vaga na noite e no dia
Vive na terra e no céu
Seus sambas muito curti
Com a cabeça ao léu
Sua presença senti
No ar de Vila Isabel
Com o sedutor não bebi
Nem fui com ele a bordel
Mas sei que está presente
Com a gente neste laurel

Veio ao planeta com os auspícios de um cometa
Naquele ano da Revolta da Chibata
A sua vida foi de notas musicais
Seus lindos sambas animavam carnavais
Brincava em blocos com boêmios e mulatas
Subia morros sem preconceitos sociais

Foi um grande chororô
Quando o gênio descansou
Todo o samba lamentou
Ô ô ô
Que enorme dissabor
Foi-se o nosso professor
A Lindaura soluçou
E a Dama do Cabaré não dançou
Fez a passagem pro espaço sideral
Mas está vivo neste nosso carnaval
Também presentes Cartola
Araci e os Tangarás
Lamartine, Ismael e outros mais
E a fantasia que se usa
Pra sambar com o menestrel

Tem a energia da nossa Vila Isabel”
Reparem na estrutura bem diferente do samba, com apenas um – e longo – refrão.

Na próxima coluna, outro samba de 2010 que sofreu com questões exógenas a ele: Imperatriz Leopoldinense.

2 Replies to “Samba de Terça – "Noel, a Presença do Poeta da Vila"”

  1. Caro Martinho, ou assessor em seu nome,

    o vídeo em questão é de um amigo meu e eu estava ao lado dele quando ele foi gravado. Ou seja, o vídeo que indica é exatamente a minha visão da pista.

    Obrigado pela visita e abraços.

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