[texto originalmente escrito no dia da Consciência Negra de 2007]

Não há nada mais triste para um carioca do que sentir-se exilado em sua própria cidade. Digo isso porque é essa a sensação que tenho toda vez que compromissos profissionais – aulas e mais aulas – me obrigam a visitar o bairro da Barra.

Gosto de muita gente que mora lá, mas o local é meio estranho; raras esquinas, sem botecos, repleto de casas comerciais com nomes em inglês, projetado para o deleite dos automóveis, uma réplica doida da estátua da liberdade, e outros babados. Não merece carregar o sacrossanto epíteto de Barra “da Tijuca”.

Da Tijuca, que eu saiba, são o Eduardo Goldenberg, tombado em vida e no meu coração como patrimônio imaterial da cidade, a Confraria do Bode Cheiroso – um pé sujo de responsabilidade – e o Rodrigo Ferrari, o comerciante de carioquices que mais fez pelo Rio e por mim desde o Barão de Mauá.

Para exorcizar esse encosto de Miami que vez por outra me persegue, quero lhes contar uma história que tem como cenário um bairro carioquíssimo – São Cristovão, terra que viu nascer dois brasileiros máximos, D. Pedro II e Bruno Ribeiro.

Ali, pertinho do pavilhão, há um edifício desgastado pelo tempo que, para o bem da cidade, deveria ser imediatamente declarado patrimônio público, com placa na entrada e o escambau. Neste local trabalhou, como zelador e porteiro, o grande Anescarzinho do Salgueiro.

Humilde, sempre modesto, Anescar parecia não ter a consciência da grandiosidade de sua figura para a história do samba carioca. Foi ele um dos nossos heróis civilizadores. Compôs, com Noel Rosa de Oliveira, os antológicos Quilombo dos Palmares (1960) e Chica da Silva (1963), além de ter participado do show Rosa de Ouro , que lançou Clementina de Jesus. É mole ou quer mais ? Fez parte, ao lado de Paulinho da Viola, Nelson Sargento, Jair do Cavaquinho e Elton Medeiros, do grupo Cinco Crioulos , que marcou, apesar da curta duração, a história do samba.

Um dia um sujeito qualquer – com poucos cabelos que anunciavam a futura calva – soube que o Anescar era porteiro do tal prédio. Foi até lá para saudar o baluarte. Aproximou-se, tocou o interfone e perguntou pelo Anescarzinho do Salgueiro. Extremamente tímido, Anescar apresentou-se e saudou o fã. Parecia quase constrangido com a deferência. Não tinha, definitivamente não tinha, a noção do que representava para a música brasileira.

O autor de Chica da Silva, para alguns o maior samba da história da acadêmia tijucana, trabalhava anônimo e silencioso nas proximidades da Quinta Imperial. Será que os moradores daquele prédio tinham consciência da honra absoluta que o destino lhes reservara? Sabiam quem era aquele porteiro que morreu pobre de marré de si e sem o devido reconhecimento? Acho que não.

Lembro do Anescar porque hoje é dia 20 de novembro, marco da resistência maior de Zumbi dos Palmares. Ouço, como um brado magnífico de liberdade, a obra-prima que Anescar compôs para saudar os guerreiros da serra da Barriga e imagino que nenhuma homenagem que se faça ao quilombola superará em beleza o desfile salgueirense de 1960. Meninos, eu não vi, mas como queria ter visto.

É por isso que acendo minha vela de sete dias no altar da Pátria ao grande Anescarzinho do Salgueiro. Lá, na Aruanda ancestral, deliro que neste 20 de novembro o capitão palmarino estará comovido com as homenagens e o som dos tambores do Brasil. Imagino, também, que Zumbi olhará para o lado e dirá ao seu companheiro de noite grande: Anescar, canta de novo o meu samba, canta.

Saravá!

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