Terça feira, muitos afazeres nesta vida… mas não poderia faltar a nossa coluna diária sobre grandes sambas de ontem e hoje.

Nosso texto de hoje é de uma escola que nos dias atuais é uma espécie de “emergente” do samba; entretanto, o ano de que falaremos é de seus primórdios: 1992.

A comunidade da Rocinha sempre possuiu certa resistência ao samba e às escolas. Isso se deve ao fato de o extrato populacional da comunidade ser formado em seu núcleo por pessoas oriundas do Nordeste. Ou seja, ritmos como o forró eram dominantes na localidade.

A Acadêmicos da Rocinha foi fundada em 1988 como uma tentativa de plantar a semente do samba na região. Respaldada em um forte apoio financeiro, a escola vinha invicta até aquele momento, sendo campeã de todos os grupos anteriores desde a sua fundação. Chegando ao Acesso A naquele carnaval, falava-se bastante na escola como uma das que, brevemente, alcançariam o Olimpo do samba: o Grupo Especial.

Para 1992, em em sua estréia no segundo grupo, a escola vinha bastante reforçada. Foram contratados o puxador Rixxa, o “Pavarotti do Samba”; não podendo contar com Joãozinho Trinta, que assinara os carnavais anteriores a escola foi buscar na São Clemente o carnavalesco Carlinhos Andrade. Este foi auxiliado por Ernesto do nascimento, que fora da Mangueira nos dois anos anteriores.

O enredo foi intitulado “Para não dizer que não falei de flores”, fazendo alusão a uma famosa canção da música popular brasileira. Contudo, o enredo buscava mostar através das flores que a favela da Rocinha não era somente violência, pobreza e discriminação. Também trazia a esperança de ver as crianças da comunidade em um futuro melhor.

Como dizia a sinopse:

“1° Quadro – Abertura

Objetivo: Mostrar o outro lado da Rocinha – a favela florida.

Levar à passarela uma Rocinha que não é só violência, como a sociedade acredita – mostrar seu lado poético – o lado das flores, do sonho, da harmonia e da paz, criado pela própria comunidade. Comunidade esta que tem como fruto de um trabalho sólido uma grande Escola de Samba, que agora faz da flor o símbolo de seu protesto contra a discriminação que lhe é imposta por uma visão equivocada.

2° Quadro: “Flores nas brincadeiras de roda”

Reproduzindo a cantiga “Apareceu a Margarida” temos jovens que vão tirando as pedras – obstáculos vencidos, até atingirem a meta: a Margarida – a realização, o sonho.
É o jovem da Rocinha que luta para conquistar seu espaço, apesar das dificuldades que enfrenta, vivendo numa sociedade discriminatória que lhe bloqueia todos os acessos a uma condição melhor.
A segunda cantiga, “O Cravo brigou com a Rosa”, metaforiza a briga do arlequim e a colombina.
Cravo e rosa separados, influenciados pela competição gerada pela própria sociedade.
Cravo e rosa juntos – síntese do arlequim – o sonho ou o ideal.
Formando a síntese: Homem e mulher – força de trabalho, de luta – comunidade.

3°Quadro: “Flores no cancioneiro popular”

a) “Ó jardineira por que estás tão triste?…”

Neste quadro temos a jardineira simbolizando a Rocinha, sua esperança, simplicidade e espírito comunitário. Em contrapartida, a camélia representando a elite, que “cai do galho” e se desfaz a qualquer momento indo buscar auxílio na jardineira (Rocinha).

b) “Rosa morena, aonde vais morena Rosa?
Com essa rosa no cabelo…”

Aqui, a Rosa se foi, virou “bacana”, deixou o morro, muda de vida e abandona os companheiros de pagode, deixando-os na expectativa da volta ou do afastamento definitivo para uma nova realidade.

4° Quadro: “Te conheço pelo nome”

Bico-de-papagaio: embora a flor tenha forte semelhança como bico do papagaio, ela não é o próprio. Assim é a imprensa com as notícias do morro – espalha um só dos lados e nega a poesia, fica só na aparência.
Crista-de-galo: nasce e vive até nas pedras, carnosa e vermelha, demonstrando a capacidade de viver com garra apesar das dificuldades.
Flor-de-laranjeira: como símbolo de pureza, da ingenuidade, do sonho, da fantasia, muito presentes no coração das crianças e daqueles que vivem com amor e arte.
Saudade: uma homenagem a todos aqueles que, por diferentes motivos, foram impedidos de estarem florescendo na passarela.
Dama da Noite: vida noturna, as luzes simples da vida do morro ofuscando as do dia que começa, mesmo que o sol apareça tardiamente na sua jornada diária.
Copo-de-leite: representação das palmas da mão, entreabertas, num gesto de doação – simbologia da inocência, espiritualidade e pureza de sentimento.
Maria-sem-vergonha: vive em qualquer lugar. Como a vida para ela é inconstante, para poder sobreviver traz consigo uma característica congênita: a versatilidade.
Boca-de-leão: imagem da força bestial (sociedade selvagem que impõe as regras), dominada pela inteligência (comunidade da Rocinha) e a capacidade de sair vitorioso das ciladas que lhe são armadas – jogo de cintura do morador.
Mal-me-quer: é a própria escola trazendo sua indagação à passarela: “bem-me-quer ou mal-me-quer?”

5° Quadro: “Na flor da idade”

Base da flora da idade: “Vitória-Régia”, majestade, símbolo da beleza, do amor e da juventude.
A representação dos jovens da Rocinha, sua beleza, seu entusiasmo, seu dinamismo, seus sonhos e sua poesia. Esperança e visão segura das possibilidades de futuro.

6° Quadro: “A Flor do Amanhã”

Homenagem às crianças de rua que compõem a escola de samba “Flor do Amanhã” – confiança, inocência, ingenuidade, encanto, sensibilidade e ternura.
Neste momento temos uma metalinguagem – escola de samba falando de uma outra que leva o nome de flor.
Esperança de vida
Esperança de vencer
Esperança de novas “Rocinhas”

Apoteose: finalização de um enredo trazendo a flor – uma escola de samba chamada “Flor do Amanhã”

(Fonte: Galeria do Samba)

A escola pisou a Passarela do Samba como segunda a desfilar no sábado de carnaval, 29 de fevereiro. Naquela época, as escolas que vinham dos grupos de baixo abriam os desfiles, prática salutar e que no meu entender deveria ter sido mantida. Porém, mesmo vindo do Acesso B a escola entrou na avenida como uma das grandes favoritas ao título.

A Acadêmicos da Rocinha não decepcionou e, apesar do horário ingrato, fez um desfile que a credenciou às primeiras colocações. Quem sabe até ao sonhado acesso ao Grupo Especial, embora na visão dos analistas a escola “corresse por fora”.

Porém o resultado deu à escola apenas o quinto lugar, com 297 pontos. A campeã Acadêmicos do Grande Rio e a vice Unidos da Ponte obtiveram o direito de desfilar no Olimpo do samba em 1993. Bons tempos em que subiam duas escolas… Reza a lenda que este resultado já estaria definido antes mesmo das escolas adentrarem o Sambódromo.

Se é verdade, não sei, mas que a diferença de pontos entre as duas e as demais foi estranhamente alta, isto foi – 316 e 313 respectivamente para 298 da terceira colocada. Relembro que o samba da Grande Rio deste ano foi tema de outro post desta série.

Vamos ao belo samba, que eu adoro e que faz parte da melhor safra da história do Acesso A:

Autores:
Celso, Marquinho, Moacir Alves e Marcos

Puxador(es)
Rixxa

“Floresceu
No jardim a poesia
Fez feliz o meu cantar
E ser um rei nessa folia
Sou a borboleta eu sou
No despertar de um novo dia

Apesar da discriminação
Em versos vou mostrar
Minha Rocinha tão florida
Exalando amor
Nessa passarela em flor

Na brincadeira de roda
Apareceu a margarida
Realizando os meus sonhos
Colorindo a minha vida

No meu jardim
Cravos, rosas, beija-flor
Minha linda jardineira
Vem regar o nosso amor
Vem amar a noite
Linda dama meu amor
Minha flor de laranjeira
Que fascinação
Te conheço pelo nome
Tá na boca do leão
Na flor da idade
Vou gozando a vida
Vitória régia mocidade
Em profusão
Hoje eu quero é cantar
Extravasar curtir
A princesinha na Sapucaí

Eu vou sambar com a mente sã
E ver brilhar a flor do amanhã

Aqui você pode ouvir a versão em estúdio do samba. Abaixo, um vídeo do desfile:

Semana que vem, a última das grandes e históricas escolas que ainda não estiveram aqui: Acadêmicos do Salgueiro, 1989, “Templo negro em tempo de consciência negra”. Até lá.