O meu leitor mais atento sabe que hoje é dia de “Samba de Terça”. Se prestar um pouquinho mais de atenção, saberá que a escola retratada hoje não é estreante neste quadro.
Falo da gloriosa Unidos de Lucas, cuja história contei um pouco no post sobre “Sublime Pergaminho”, desta mesma série.
Nosso samba de hoje já passou duas vezes pela avenida. Na primeira, marcou a estréia de um dos mais famosos carnavalescos do carnaval carioca, ativo até hoje; na segunda, um dos maiores “sacodes” da história recente do Sambódromo.
Para os não-iniciados: “sacode” é como se chama aquele samba que passa na avenida e empolga o público presente.
Mas contemos esta história desde o princípio.
Em 1976 a Unidos de Lucas pertencia ao hoje chamado Grupo Especial. A escola vinha de um décimo primeiro lugar no ano anterior, quando retornara ao então Grupo 1.
Para o desfile de 76 a vermelha e ouro da Leopoldina viria com um enredo evocando os deuses da Bahia e o povo negro do local. Além disso, contaria um pouco da religião afro-brasileira.
A criação era do carnavalesco Max Lopes, que depois se notabilizaria em escolas como a Imperatriz e a Mangueira. Naquela ocasião ele fazia a sua estréia como carnavalesco principal de uma escola de samba.
A Unidos de Lucas foi a segunda escola a desfilar no domingo bissexto, 29 de fevereiro de 1976.
Infelizmente, além da falta de recursos a escola foi prejudicada pelo atraso e pela chuva, obtendo apenas a décima segunda colocação no desfile, com 84 pontos. Com isso, a escola foi rebaixada para o Grupo 2 e jamais voltaria a desfilar entre as grandes escolas cariocas, situação que perdura até hoje.
Em 2005 o quadro era completamente diferente. A escola estava no Grupo de Acesso B, a terceira divisão do samba. Vinha de um sexto lugar no ano anterior, que marcava sua volta a este grupo e à Marquês de Sapucaí, com um enredo sobre a cidade de Itaboraí – região metropolitana do Rio de Janeiro.
O curioso é que a Estácio de Sá iria reeditar no mesmo grupo o samba igualmente de 76, e que possuía uma temática parecida – “Arte Negra na Legendária Bahia”. Coincidências da vida…
O carnavalesco desta vez era Marcelo Portela, que optou por alegorias e fantasias bastante simples para contar o enredo. A escola da Leopoldina atravessava graves dificuldades financeiras.
Desta vez a Unidos de Lucas seria a última escola a adentrar a Marquês de Sapucaí naquela já manhã de Quarta Feira de Cinzas, nove de fevereiro daquele ano.
Apesar das alegorias e fantasias bem abaixo das demais escolas do grupo, o samba apoiado em grandes interpretações do puxador Edmilton de Bem e da bateria de Mestre Orelha simplesmente colocou o bom público que resistia nas frisas e arquibancadas para sambar.
Todo mundo cantava o samba e muitas pessoas que estavam nas frisas pularam para a pista para acompanhar a escola. Foi decididamente uma catarse, fechamento perfeito para um carnaval.
O que Lucas fez naquele desfile foi um verdadeiro baile de carnaval, em sua acepção mais primitiva.
Antes da apuração muita gente temia o rebaixamento mesmo com o brilhante desempenho da escola nos quesitos ditos “de pista”, porque o regulamento da época privilegiava os aspectos visuais e a vermelho e ouro veio muito fraca nestes aspectos. Entretanto, a escola ainda salvou um oitavo lugar, com 177,2 pontos, mantendo-se no grupo. Uma vitória do samba.
Para mim, que assistia pela primeira vez o Grupo B – e virei fã – foi uma gratíssima surpresa. Inesquecível. Pena que hoje a escola esteja apenas no Grupo de Acesso D, a quinta divisão do samba.
Vamos à letra do samba, de autoria de Carlão Elegante, Pedro Paulo e Joãozinho. Aqui você pode ouvir a versão de 2005:

“Zamburei, atotô, aiê ieo, agoiê
(…e o negro chegou)
O negro chegou às terras da Bahia
No tempo do Brasil colonial
Com seus costumes e crenças, fé sem igual
O delogum, mareou todo o povo do mar
Netuno a participar das louvações da rainha do Aiuká

Uma pedra, uma concha
Pedra e concha têm areia
Quem mora no fundo do mar é sereia

E o povo da terra em romaria
Integrava-se à magia
Os saveiros dos milagres
No azul-verde do mar
Senhores, sinhazinhas arrumadas
E os pregoeiros a gritar:
Tenho frutas, balangandãs
Vem comprar para a deusa do mar lhe ajudar
Hoje a festa continua
E a raça se iguala
Cantos e batuques anunciam
O mar baiano em noite de gala

Muçurumim, nagô
Omolokô, Congo e Guiné
Atotô de Zambi-rei do Candomblé”

Abaixo, um vídeo do desfile. Ressalto que todas as fotos são de minha autoria.

Semana que vem, um presente para os leitores: “Rapsódia de Saudade”, Mestre Toco, Mocidade Independente 1971. Com direito a farto material gentilmente cedido pelo pesquisador Fábio Fabato. Será imperdível.

2 Replies to “Samba de Terça – "Mar Baiano em Noite de Gala"”

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