Na última segunda feira teve final a mais longa e arrastada novela do mundo esportivo dos últimos anos: “Quem vai ficar com Ronaldinho Gaúcho”.
Não irei me ater ao que todo mundo já escreveu, disse e analisou sobre o assunto. Mas queria levantar alguns pontos importantes que, a meu ver, não foram suficientemente explorados neste imbróglio, com final feliz para a imensa Nação Rubro Negra – da qual faço parte.
O primeiro deles foi mostrar ao grande público que o mundo do futebol não é este “mar de rosas” que o torcedor médio pensa. Tem muito blefe, muito cinismo e muitas vezes o caráter e a palavra não são o mais importante em uma mesa de negociação.
Bons exemplos disso foram a postura do irmão e procurador do jogador Assis e da diretoria do Grêmio. O primeiro fez um verdadeiro “leilão” do destino do irmão, trabalhando com os diversos interessados e aumentando a pedida a cada “lance”. Parecia que o irmão era uma mercadoria ofertada aos interessados.
Quanto à direção do Grêmio, fez todos crerem que estava muito perto de um acordo quando sua proposta era a menor de todas. Além disso, não procurou o Milan, que detinha os direitos sobre o jogador, e no final fez uma grande jogada de marketing, auxiliada pela bairrista, provinciana e estreita imprensa gaúcha, a fim de encobrir seus muitos erros e colocar a culpa nos outros. 
Quem fala demais dá bom dia a cavalo, já dizia o ditado.
O leitor deve ter achado estranha a referência ao tráfico de escravos no título, mas eu afirmaria que o futebol, hoje, é o último reduto legalizado de tráfico de gente.
O jogador de futebol, hoje, tem “direitos federativos” ligados a clubes ou, o que é pior, a empresários. Ou seja, ele não é livre para decidir onde quer jogar ou onde quer alugar a sua mão de obra. Seus “donos”, na maioria das vezes, é quem decidem o destino do jogador, sendo este impedido, muitas vezes, de manifestar sua vontade.
Vejo muitos torcedores afirmarem que a culpa deste fenômeno “é da Lei Pelé”, que extinguiu a chamada Lei do Passe e regulamentou as relações entre clubes, jogadores e empresários. A questão é que a Lei Pelé nada mais é que a adequação brasileira às normas internacionais de transferência da Fifa. Ou seja, isso ocorreria de uma forma ou outra.
Em um caso de jogador famoso  e rico como Ronaldinho isto é até menos danoso, mas fique o leitor sabendo que existem verdadeiros “criadouros” de meninos em diversos lugares do país. São locais onde garotos de 12, 13 anos são amontoados em centros de treinamento ligados a empresários, são afastados da família, dos estudos e se dedicam a jogar bola. Muitas vezes, em condições sub humanas.
De cinqüenta, cem garotos apenas quatro ou cinco, se muito, seguem carreira. São mandados pelos seus donos, os empresários proprietários dos “criadouros”, para locais como o Azerbaijão, o Iraque ou a Nova Zelândia. E sem poder reclamar – seus “direitos federativos” pertencem a estes donos.
E ainda pode ser pior. Os demais são descartados na sociedade, sem estudo, sem uma profissão e com a adolescência e a inocência perdida. São descartados como o foram os escravos menos resistentes à longa viagem entre a África e o Brasil.
Este é um problema muito sério e que não recebe a devida atenção. Empresário não pode ser dono de jogador. Clube não pode ser dono de jogador. Isto é escravidão legalizada. Para cada Ronaldinho existem milhares de “Joões”, muitas vezes ganhando salário mínimo e explorados por empresários gananciosos e dirigentes velhacos.
Não podemos nos esquecer, também, do dilema enfrentado pelos jornalistas esportivos nestes tempos da notícia em tempo real.
Os leitores que acompanharam as entrevistas da série “Jogo Misto” perceberam a minha insistência em uma pergunta: como conciliar a apuração correta da notícia com a demanda insaciável de notícias em tempo real?
As redes sociais como o Twitter ‘ferveram’ nos dias pré confirmação de anúncio. Muitas vezes a ânsia em dar a notícia primeiro fez com a acuidade das mesmas fosse menor, bem menor que a desejável. Além disso, como me disse um jornalista amigo meu, as pessoas estavam falando “em off”, e com isso não se podia divulgar – ninguém confirmava, ainda que notícia verdadeira.
Em minha forma de ver, há um claro “trade-off” na questão: a velocidade exigida pela demanda quase irracional do público não combina com a precisão e a checagem das notícias. 
É uma vida dura, essa do jornalista esportivo: ou sai na frente e corre o risco de perder a credibilidade com algo inverídico, ou publica depois corretamente, mas taxado de “atrasado”.
Olha que não me refiro a casos onde as fontes “jogam” com esta sede insaciável por notícias e divulgam a jornalistas “notícias quentíssimas” que não passam de manipulações de fatos a fim de se alcançar um objetivo nem sempre louvável. Vimos isso claramente no comportamento da diretoria gremista com a imprensa local.

Finalizando, não deixo de estar surpreso com a postura da diretoria do Flamengo, que se manteve em silêncio e fez a coisa certa, negociando com o Milan primeiro e depois com o empresário do jogador. Surpreendente demonstração de competência. Não sei se Ronaldinho dará certo esportivamente, precisamos urgente de um lateral esquerdo decente, mas pelo menos em termos de marketing foi uma tacada de mestre.
(P.S. – O leilão da camisa autografada em benefício das vítimas das enchentes está abaixo)



6 Replies to “Ronaldinho, o tráfico negreiro e o jornalismo esportivo”

  1. Perfeito Migão. Tocou na ferida. E acredito que hoje muitos países “fornecedores de mão de obra” de jogadores de futebol possuem as mesmas características. Jovens mantidos em “criadouros” de baixo custo para melhor valorização em caso de venda.

    Como evitar isto? Simples. Cumpra-se a legislação trabalhista brasileira, acaba com este negócio de “direito federativo”. O clube poderia cobrar por esta formação nas negociações futuras que o atleta teria. Teria o custo de formação remunerado. Ou seja, não acho que o clube tem que fazer tudo de graça e no final ver o atleta dando adeus sem nenhum retorno.

  2. Eu vou voltar ao tema, Henrin, mas sou radical: não deveria haver pagamento por jogador.

    Só, como acontece em contratos de prestação de serviços em outras áreas, a multa rescisória por término do contrato antes de seu final determinado.

    E alguma indenização por formação do jogador.

  3. Pois então, esta indenização deve ser calculada em relação ao custo de formação dos jogadores, não é? Isto até já existe em caso de transferência para o exterior, mas deveria estar em todas as transferências e negociações de contratos. Assim o clube sempre ganharia ao formar jogadores de qualidade para o “mercado”.

  4. E, claro, todas as negociações deveriam se basear em contratos de prestação de serviços. Não em “direitos federativos” que como vc escreveu, é sim uma forma de escravidão. Daqui a pouco uma escola técnica irá cobrar isto de seus formandos.

  5. E este “jornalismo de twitter” tb acaba minimizando o trabalho de apuração, a tornando uma atividade meio sem escrúpulos;

  6. Não sei se leu as entrevistas que fiz – o link está neste post – mas eu não queria estar na pele de jornalista esportivo.

    tem muita gente séria que acabou arrastada neste balaio e sendo contextualizados como “fracos”, “incompetentes” e coisas parecidas. Olhando pelo lado deles, é algo muitíssimo complicado.

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