Mas, afinal, qual é o debate? O diálogo e a troca de ideias andam com profundidade perto do zero, nem formiga morre afogada, no Brasil atual. De um lado, a balela dos dez reais e do iogurte da merenda. Do outro, a falta de um direcionamento claro, de um posicionamento cordato e coerente. E, claro, de uma explicação plausível para a prestação de contas.

Assim, nas brechas deixadas pela entidade que comanda, de fato, o carnaval carioca, cresce e ganha força e aderência o discurso demagogo e raso do alcaide. E para quem gosta de samba, escolas de samba, carnaval, cultura, assusta, apavora a quantidade de gente que acaba apoiando a iniciativa de cortar pela metade (por enquanto) a verba destinada às agremiações do Grupo Especial. Pobres escolas dos grupos de Acesso, nem agora são lembradas…

Nem vou me aprofundar na questão do que é doação e do que é investimento, de como é feito um orçamento público ou de como são maquiadas e manipuladas as informações sobre repasse de verbas em diversos setores. Quem se informa além de 140 toques do twitter alheio já deve ter lido algum texto muito mais bem escrito sobre isso.

Por trás do bate-boca estéril desnuda-se, uma vez mais, a incapacidade das escolas de samba de construírem e sustentarem a própria imagem como centros de produção e preservação da cultura popular. São culpadas ao não terem aprendido a se dar valor. E agora veem seu valor inestimável ser calculado em reais.

Ao mesmo tempo, como em outras esferas, não se vai ao âmago da questão. A total inapetência do prefeito e seus periféricos de pensar fora do pragmatismo eleitoreiro-religioso. Tão óbvia quanto a traição a quem lhe declarou apoio é a motivação anti-macumba (entre outras e com perdão da simplificação grosseira) do senhor bispo. Fossem ressalvas à origem dos recursos de ordem “zoológica” de algumas escolas a foto, os abraços e a declaração de voto desses mesmos “empresários” teriam sido recusadas. Não foram.

Vencida a batalha das urnas veio a ação. E descobrimos que cuidar das pessoas é ignorar que milhares de seres humanos possuem empregos direta ou indiretamente ligados à maior festa popular do país. É fingir não ver que essa mesma festa traz bilhões em recursos para a cidade e o Estado – falido – e movimentam a economia – em frangalhos. É desconhecer que o povo quer comida, sim. Se possível com iogurte. Mas também se alimenta de diversão e arte.

Não, caro senhor prefeito, carnaval não acontece três noites por ano. Tivesse o senhor cumprido seu dever, em fevereiro, e entregue as chaves ao Rei Momo saberia que até esta conta está errada. O carnaval, no Rio, dura muito mais que três noites. A começar pelas noites de desfile… São pelos menos seis (sexta, sábado, domingo, segunda, terça e sábado das Campeãs – só para ficar nas escolas de samba).

Mas até simplificar o carnaval aos festejos de carnaval é cegueira. Já dizia Beto Sem Braço (o senhor conhece?): pior cego é aquele que enxerga e não quer ver. O carnaval, como força econômica e cultural, existe por 365 dias e noites anuais.

São as quadras localizadas em áreas onde o poder público, e o privado, se negam a investir. Onde não há cinema, teatro, praia, shopping, mas o samba resiste. São os projetos sociais e esportivos. São as iniciativas de qualificação profissional. São as oficinas de percussão que tiram crianças e jovens do tráfico ensinando-lhes música. É bem verdade que as escolas poderiam fazer muito mais do que fazem pelas suas comunidades.

Mas isso não é motivo para negar-lhes importância e relevância cultural, social, econômica. Não é motivo para querer vê-las apenas como um conjunto organizado de pessoas que atravessam uma avenida do centro da cidade durante pouco mais de uma hora.

Ao mostrar que desconhece a história e as engrenagens de instituições tão fundamentais para construir o que nos orgulhamos de chamar de Cidade Maravilhosa o prefeito se mostra indigno de comandar os destinos da população desta mesma cidade.

investir em arte e cultura é, também, investir em educação e saúde. Ninguém, em sã consciência, seria contrário a um representante do Poder Executivo se colocar a favor de transparência na alocação de recursos do Município. O problema é que isso não ficou claro. Pelo contrário. A forma como vêm sendo conduzidas as conversas soa vingativa, preconceituosa, politiqueira e ignorante. Ignora tradições, desrespeita rituais, choca e desanima.

Faz com que a gente se sinta na Idade Média do debate, nas Trevas da discussão, no velório dos argumentos. Vendo que tem gente que não se importa em deixar o samba morrer. E não porque não goste de samba. Mas por que não tem a menor ideia do que ele representa.

Isso nada tem a ver com um milhão a mais ou a menos. Isso tem a ver com a compreensão – inexistente – do que seja política cultural, com a incapacidade de entender que cuidar das pessoas vai além, muito além, de oferecer a elas a quase esmola embalada num pote de iogurte.

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