Os nostálgicos que ainda se importam com um antigo estilo musical chamado rock, especialmente com um certo tipo de rock que fez sucesso na década de 70, celebraram semana passada o 40º aniversário do clássico álbum 2112, da banda canadense Rush.

O Rush é uma daquelas bandas que poucos amam, alguns odeiam e a maioria não ouve. Sua marca mais conhecida eram os vocais agudos do baixista e tecladista Geddy Lee, mas sua alma sempre foi o baterista Neil Peart, geralmente considerado o maior da história do rock. Peart também é (ou era, pois tem dado declarações ambíguas sobre o fim de sua carreira) o letrista do grupo, e gosta de escolher temas de fantasia, mitologia e ficção científica.

2112 é uma obra pretensiosa como os roqueiros jovens e talentosos dos anos 70 gostavam de fazer: a faixa-título ocupa todo o lado A do LP, dividida em 7 partes que abrem como uma “Overture” e fecham com um “Grand Finale”. O tema é o conflito de um músico do futuro com os sacerdotes dos “Templos de Syrinx”, os quais desde 2062 controlam todo o conteúdo que os artistas podem criar, bem como toda a vida intergalática nos limites da “Federação Solar”.

Por trás desta fachada nerd havia um libelo político. Os músicos do grupo, em especial Peart, que idealizou a obra, acreditavam então que o mundo estava se tornando socialista, e a distopia que eles apresentaram simbolizava seu receio quanto ao fim da liberdade em um planeta fadado a ser dirigido pela União Soviética.

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Por estranho que pareça, estas ideias foram recebidas com mais perplexidade naqueles tempos de Guerra Fria do que o seriam hoje. A revista inglesa New Musical Express fez uma matéria, pouco após o lançamento do disco, que se provou tóxica para a banda, ao expor ao escrutínio, e à execração pública, as opiniões políticas dos músicos. O jornalista escalado iniciou o artigo explicando que fora escolhido por ser “o único na redação que já ouvira falar de Ayn Rand”.

Ayn Rand estava para os EUA daquele tempo como Olavo de Carvalho está para o Brasil da atualidade. Uma velha filósofa amadora de extrema-direita desprezada pela academia mas com um fanático exército de seguidores, quase todos jovens de cultura superficial. Estes jovens, entre os quais os membros do Rush, que dedicaram 2112 “ao gênio de Ayn Rand”, devoravam seus tediosos romances filosóficos como bíblias.

Rand chamava sua filosofia de “Objetivismo”. Sua faceta ética era um egoísmo radical cujo desdobramento lógico, na política e na economia, era o capitalismo sem freios. Para ela, o Estado só deveria ocupar-se de proteger direitos individuais, notadamente o de propriedade. Direitos coletivos como a educação pública gratuita e a proibição do trabalho infantil são apenas a porta de entrada no comunismo. Apesar de combater o “coletivismo” na sociedade, Rand, estranhamente, se opunha às leis antitruste. Supunha-se que a formação de cartéis seria um direito natural dos que possuem a propriedade privada.

aynrandComo era de se esperar, Rand considerava os impostos um roubo. Seu romance-tijolo de mil e duzentas páginas, A Revolta de Atlas, mostra os EUA arruinados pela taxação de empresas e indivíduos empreendedores. Na famigerada entrevista para a New Musical Express, Neil Peart se opôs a que um órfão pobre doente recebesse do Estado atendimento médico gratuito com o seguinte argumento: “Talvez eu não queira pagar impostos para isto”.

A parte da entrevista em que Peart defende este “egoísmo ético” randiano foi prejudicial para a imagem do Rush. Dizia-se que os músicos seriam capazes de deixar suas próprias avós para morrer de fome no meio da rua. Na canção Anthem (1975), que carrega o nome de um livro de Ayn Rand, a banda já gritava: “Viva por você mesmo/Não há ninguém mais/Pedintes só vão pedir cada vez mais/Sempre me disseram/Que o egoísmo era errado/Mas foi para mim, e não para você, que escrevi esta canção”.

O problema com as éticas do egoísmo (a de Rand não foi a primeira) é que elas são socialmente estéreis. Sistemas éticos são invenções humanas com a finalidade de melhorar a convivência social. O Conservadorismo procura compensar os desequilíbrios fatalmente gerados pelo individualismo com um apelo às virtudes “cristãs”, principalmente a caridade. Já o “anarcocapitalismo” que deriva do egoísmo exacerbado só pode resultar em desagregação.

Se eu proclamar que só o meu interesse pessoal me importa, e que prefiro acumular dinheiro a curar a doença de uma criança desamparada, é improvável que isso atraia muita simpatia alheia. É fácil perceber que se um homem resolver praticar o Objetivismo ao pé-da-letra, será marginalizado na comunidade em que vive. Se todos resolverem praticá-lo, viveremos em conflito permanente. Se os Estados o adotarem, viveremos em guerra permanente. É o que sempre acontece quando colocamos o interesse individual num pedestal.

Confrontados com esse tipo de critica, os músicos do Rush minimizaram as opiniões que expressaram. Disseram que na verdade não se interessavam muito por política, e que o que lhes preocupava realmente era a ameaça à liberdade de criação musical, algo que lhes afetava quando um executivo de estúdio tentava pressionar a banda a seguir numa trilha mais pop com fins comerciais.

Esta justificativa era especialmente inconsistente. Na entrevista, Peart citou Rand para dizer que “qualquer artista que pensa que o homem de negócios é seu inimigo é um idiota”. E, no entanto, era evidente que o tipo de censura que o incomodava era praticada exatamente por homens de negócios. Apesar de vociferar que países como o Canadá e a Grã-Bretanha já eram “socialistas”, não era difícil notar que a reclamação dele não tinha a ver com opressão estatal, mas com o poderio econômico de grandes empresas.

A concentração de capital, consequência inevitável da desregulamentação do mercado, pode ser tão lesiva à liberdade individual quanto a concentração de poder político.

constantino e o patetaAinda na semana passada tivemos outro exemplo de incoerência dos que defendem plena liberdade econômica e de expressão ao mesmo tempo. O colunista de O Globo Rodrigo Constantino, discípulo tupiniquim de Rand, foi demitido dias depois de lançar uma campanha de boicote a qualquer artista que defendesse o Governo Dilma, o que incluía boicotar programas da própria Globo nos quais estes artistas aparecem.

Constantino reconheceu que a demissão era um direito da Globo (“sempre defendi a propriedade privada e o livre mercado”), mas insistiu que a empresa protege os esquerdistas por pressão dos sindicatos e do governo, pois no Brasil ainda estamos longe do verdadeiro mercado livre. Ou seja, como a Europa dos anos 70, vivemos em pleno socialismo.

Ayn Rand faleceu em 1982 (no funeral, seu túmulo foi coberto com um arranjo de flores em forma de cifrão), mas suas ideias só cresceram em popularidade desde então. Hoje não seria fácil encontrar uma redação em que seu nome só tivesse sido ouvido por um jornalista. Continua sendo menosprezada pelos eruditos, mas alguns políticos de primeiro time já não têm vergonha de citá-la como fonte de inspiração. Pelo menos o Rush, hoje no ocaso, achou por bem se distanciar de sua filosofia.