Madrugada. Acabei de passar os olhos numa edição de domingo do jornal O Globo. Estou com o Facebook aberto à minha frente. Por impulso, começo a escrever sobre a experiência de ler um jornal que se transformou em imprensa-cadáver. Escrevo diretamente na minha linha do tempo.

À medida em que escrevo, o que seria um comentário despretensioso vai se transformando num relato um pouco mais consistente, talvez uma coluna. Dúvida: publico agora mesmo no Face ou guardo para virar uma nova Sobretudo?

Não é a primeira vez. Em casos anteriores, já guardei, já publiquei e depois requentei, já guardei e perdi o texto porque não havia mais timing nem sentido. Desta vez, publiquei logo.

A internet fez com que a informação circulasse tão rápido que deixar para amanhã pode significar jogar na caixa do nunca mais. O texto falava da morte do jornalismo impresso e a minha decisão é parte deste processo. Apesar do Ouro de Tolo ser também uma publicação eletrônica, as colunas vão subindo dia após dia, quase sempre uns dias depois de escritas. É da natureza do veículo, mas não é exatamente da natureza do meio.

Eu tenho escrito cada vez mais pelo impulso. Pelo casamento de ter o tempo para escrever com a pertinência do assunto. E, quase sempre, a partir de uma provocação que estava no FaceBook. E, às vezes, não faz sentido escrever uma resposta tardia àquele estímulo.

Surpreendentemente, dado o tamanho do texto para um meio tão dinâmico e direto, dado o horário em que foi publicado, recebi um bom número de “likes” e compartilhamentos.

Num desses, houve um compartilhamento de segundo nível, ou seja, alguém que eu conheço divulgou e, deste link, alguém que eu não conheço divulgou também. E o fez com um comentário curto e extremamente elogioso. Sinceramente, eu nem acho que o texto mereça tanto, muito menos o autor. Mas a experiência, e a mecânica pela qual se forma, são interessantíssimas. Mais que isso: uma massagem cibernética no ego.

E o mesmo tecno-imediatismo que havia roubado uma coluna Sobretudo, também proporcionou um gancho para que o texto original pudesse ser repostado aqui, porque a introdução acima é um novo assunto em si, e renova o texto original. Que vai a seguir:

SAUDADE DO JORNAL O GLOBO

o-globo-capa_reprodução_tratada2Amigos perguntam, com alguma insistência, se eu sinto saudades do Rio. Amigos de cá e de lá. Sim, eu sinto. Mas não me adiantaria voltar, sequer visitar. O Rio do qual sinto falta também falta ao Rio de hoje.

Eu não sou o tipo nostálgico, saudosista profissional. Apenas lamento não reconhecer mais a cidade nas poucas vezes em que passei por lá nos últimos anos. Menos ainda reconheço do antigo carioquismo. Dá incômodo, estranhamento e saudade do que já não há. Hoje fui levar minha mãe na Rodoviária do Tietê. Oba, lá tem jornal O Globo. Comprei o exemplar dominical.

Jornal aqui em casa é importante. Pandora não abre mão porque, quando chove lá na área de fora, ela só faz xixi se tiver um jornal sequinho no canto apropriado. Diário do Grande ABC, Folha e Estadão foram se transformando em mictório canino. Apenas isso, sem nem uma lida antes. Mas estão fininhos, tadinhos, nem para isso servem mais.

Há uma semana, eu descobri que vendem resmas de papel jornal, sem o conteúdo, sem nada, apenas para finalidades excretoras do reino animal. O jornal impresso perdeu definitivamente a serventia para mim.

Mas Pandinha deve estranhar. Faltam as letrinhas, as fotos, as mentiras de sempre. Estas coisas que combinam com as observações que ela deixa sobre o papel.

Comprei O Globo de presente para ela. Até porque, ela tem uma afinidade especial com o Rio. Foi para lá que, ainda bem jovem, ela fez a sua primeira viagem. Foi nesta viagem que ela conheceu a Ovelha, paixão de toda a vida. E foi do Rio que ela trouxe, de contrabando, a primeira das cinco pulgas que teve até hoje, em onze anos. Pandinha merecia esta despedida: mijar uma última vez sobre o velho jornal carioca. Antes que acabe.

Pois é, mas acabou antes. Aquele jornal que eu lia prazerosamente todo dia, antes de fazer qualquer outra coisa, acabou. Aquela sessão de esportes que eu disputava com meu pai quem iria ler primeiro, acabou. Os encartes, as matérias de fundo, tudo foi para o fundo do lodaçal que se apoderou da redação.

Acabo de ler (folhear, por falta do que ler) em apenas 20 minutos, um jornal fininho, sem qualidade, sem conteúdo, sem noticiário que se dignasse a se chamar assim, sem anunciantes, sem jornalismo. O Globo acabou. É um pasquim político de pior espécie.

Acompanhei de longe a decadência. A cada visita aos meus pais, sempre pegava uma semana de O Globo, que quase sempre estava ainda na mesinha do velho. Lia cada vez mais rapidamente. Até que me peguei lendo apenas a coluna do amigo Arnaldo Bloch. A edição que não consegui ler hoje, dominical, nem Arnaldo tem.

Deve ter, ali nas entrelinhas não assinadas, os restos de algum texto escrito, revisado ou editoriado por um amigo talentoso. Mesmo depois do último corte, ainda sobraram naquela redação amigos e conhecidos que, eu sei, são bons nesse negócio de escrever um jornal.

Lamento por eles que haja algo, espírito, pessoa ou censura, que os impeça, que ate suas mãos e mentes. O resultado, nem de longe, reflete aquilo que eu sei que eles fariam se tivessem a mínima condição.

O Globo de domingo, aquele que eu já li na praia, na lateral do campinho de pelada, na mesa do botequim, na preguiça matinal da cama, na mesa do café, na padaria da Barra, na volta da noite de sábado, na portaria do prédio… este O Globo é apenas uma estranha e longínqua lembrança. Como são distantes as lembranças dos hábitos e lugares que já não me pertencem mais, alguns já nem pertencem ao Rio.

Talvez seja isso mesmo: aquele jornal contava coisas que já não existem, para serem lidas em outros lugares que também não existem. E o jornal acabou por também não existir.

Há alguma coerência nisso, uma coerência amarga, mas há.