Praça Nossa Senhora da Salete. Curitiba, tarde de 30 de agosto de 1988.

No 26º dia de greve dos professores da rede estadual, uma passeata com 20 mil educadores cruza o centro da cidade, rumo ao Centro Cívico, onde se localiza o Palácio Iguaçu, sede do governo do Paraná. Ao se concentrarem na praça em frente ao prédio, chamada de Nossa Senhora da Salete, os professores grevistas logo são alvejados por bombas de efeito moral e se deparam com a cavalaria da Polícia Militar do Paraná sendo lançada em cima da multidão.

Dez pessoas se ferem na confusão que só não é maior porque o local é amplo, tem várias saídas e a Avenida Cândido de Abreu, que corta a praça, se transforma numa das ruas mais largas de Curitiba duas quadras para frente. Alguns professores se refugiam no estacionamento da Assembleia Legislativa, localizada num dos lados da Praça Nossa Senhora da Salete (que tem formato retangular), a alguns passos do Palácio Iguaçu.

O Brasil tinha saído da ditadura militar fazia três anos e o governador do Paraná, que tem poder sobre a PM, era Álvaro Dias.

manifestação 1Outubro de 2013. Jozélia Nogueira, então procuradora-geral do estado, assume a Secretaria da Fazenda. Ela é a primeira pessoa da gestão Beto Richa a assumir que o Paraná vivia uma crise financeira. Tentando sanar a situação, Jozélia Nogueira deixa de liberar recursos para secretarias e obras, dá declarações a imprensa relatando a necessidade de economia, após gastos pouco controlados no início do governo Richa.

Com um ano eleitoral pela frente, a cúpula do governo vai contra a secretária e tenta controlar suas falas e abafar o caso. Após cinco meses de desgaste, e de Beto Richa garantindo a sanidade econômica do Paraná, Jozélia Nogueira sai do cargo de forma estranha, alegando problemas pessoais.

Meses depois, o bem aprovado Beto Richa, suportado por uma coligação mastodôntica de 17 legendas, se reelege em primeiro turno, com 55,65% dos votos válidos. Após o resultado, o governador tucano declara que “o melhor está por vir”, prometendo, como em toda sua campanha, um Paraná próspero, cheio de obras e economicamente bem.

Beto Richa, desde o começo da carreira em cargos executivos, é um arrastador de votos. Ele é herdeiro de José Richa, cacique tucano dos anos 80; carismático, com imagem de boa-pinta, bom articulador de coligações e extremamente polarizador no PSDB, apesar da oratória mecânica e de discursos repetitivos e prolixos, dignos de um aluno “meia boca” de 14 anos lendo um texto de escola todo decorado. Richa se elegeu prefeito de Curitiba com 77% dos votos válidos, em primeiro turno, em 2008. Dois anos depois, se elegeu governador também de cara, mesmo contra o peso do nome de Osmar Dias, sendo reeleito, humilhando outro cacique histórico do Paraná, Roberto Requião. Assim, é um dos quadros que podia pleitear algo no tucanismo nacional.

Nos seus discursos de campanha, que qualquer vitrola substituiria perfeitamente, Richa jamais assumiu ou dimensionou problemas no caixa do Estado. Da mesma maneira como fez nas declarações após a vitória em outubro de 2014.

Dois meses mais tarde, surpreendentemente, Beto Richa revela que o Tesouro do Estado está deteriorado, chama um aloalobahia_mauroricardotal Mauro Ricardo Costa para o posto da Fazenda. O cidadão trabalhou com José Serra e ACM Neto e é conhecido pela forma como aumenta a arrecadação e corta gastos friamente.

Os paranaenses não demoram a conhecerem o porquê da fama do forasteiro. Aumento de alíquota de impostos como o IPVA e o ICMS, causando 40% de preços mais salgados à população. Medidas aprovadas rapidamente pelos deputados estaduais.

Em fevereiro, já de 2015, com o argumento de que o governo está contando centavos para saldar suas dívidas e compromissos, Mauro Ricardo e Beto Richa enviam para avaliação da Assembleia Legislativa um novo pacote de “maldades”.

Desta vez, as medidas cortam planos de carreira e o vale-transporte dos professores, obrigam os educadores a passarem pelo crivo do secretário de educação para conseguirem licenças e permitem que o governo estadual retire oito bilhões de reais da ParanaPrevidência, um fundo criado em 1998, que deveria servir para o Paraná ser autossuficiente no pagamento das aposentadorias aos servidores públicos do estado. O dinheiro seria usado para sanear as dívidas e o caos econômico do Paraná, que cresceu exponencialmente na gestão Richa.

A ira dos professores estaduais é subitamente despertada e, no dia sete de fevereiro, a classe entra em greve, faltando dois dias para o início do ano letivo. Os educadores alegam a falta do pagamento do terço de férias, péssimas condições das escolas, falta de verbas para manutenção, menor número de classes, demissões sem pagamento de profissionais contratados por Processo Seletivo Simplificado – uma gambiarra para contratações mais rápidas do que por concurso público – que causa falta de efetivo para o começo do ano, dentre várias reivindicações.

Milhares de professores de todo o Paraná se concentram por dias a fio na Praça Nossa Senhora da Salete, sejam acampados ou em manifestos. A Assembleia Legislativa tenta votar o projeto do Executivo, em regime de “tratoraço” (uma bizarrice existente apenas no Paraná que permitia votação de projetos sem os trâmites de discussão clássicos de um Legislativo decente). Com este toque de caixa e uma base aliada gigantesca de mais de 40 de 54 deputados – lembrem-se daquela coligação de 17 partidos – todos avaliam a aprovação do projeto como inevitável.

Porém, na primeira tentativa, os professores e demais servidores públicos estaduais que aderiram ao movimento, lotam as galerias da Assembleia Legislativa e, revoltados, invadem/ocupam – como queiram – o plenário. Sessão interrompida.

Dois dias depois, determinados, os deputados governistas, liderados pelo presidente da Assembleia, Ademar Traiano (PSDB), e o líder de governo, Luiz Cláudio Romanelli (PMDB, que foi oposto ao seu correligionário Requião, em 2014, mesmo já tendo o apoiado outrora), tentam a qualquer custo a votação do projeto… num restaurante da casa.

Com a praça ao lado tomada e o plenário também, é montado um esquema digno de plano infalível do Cebolinha para a entrada segura dos deputados governistas – a esta altura já odiados pela massa. Fernando Francischini, deputado federal da “bancada da bala”, e atual secretário de Segurança Pública, coloca 34 deputados em um camburão da Tropa de Choque e avança com escolta para deixa-los numa entrada aos fundos da Assembleia. Mesmo cercados, os deputados conseguem entrar no prédio.

Poucos minutos depois, a multidão de 20 mil pessoas invade o local, com pouca resistência policial – principalmente dos praças. Temeroso de uma tragédia, Ademar Traiano encerra a tentativa de votação e devolve o projeto para melhores avaliações. Os deputados oposicionistas são aclamados como heróis e o “tratoraço” é extinto.

Tempos depois, governo e professores chegam a um acordo e essa greve se encerra após 29 dias de duração, finalmente permitindo o início das aulas.

Contudo, Beto Richa não desistiu de tentar sanar seus problemas econômicos. Enviou, nas últimas semanas, um projeto mais contido, no qual 33.556 beneficiários com 73 anos ou mais não teriam aposentadorias ou pensões pagos pelo Tesouro do estado, mas sim, pela Previdência, para aliviar o caixa. Ou seja, pela “poupança” planejada para deixar o Paraná autossuficiente no assunto. Apesar de menos agressivo que o projeto anterior, há o julgamento geral de que seria danoso, mas a longo prazo e não imediatamente.

manifestação 2Isso já foi suficiente para os professores decretarem uma nova greve, no último sábado (25), com quase 100% de adesão. Houve uma sensação de que os educadores tomaram para eles, em fevereiro, o dever de serem os bastiões dos direitos trabalhistas dos servidores públicos paranaenses.

No mesmo dia, começou a surgir o burburinho de que Ademar Traiano teria solicitado proteção policial a Assembleia, apoiado por decisão judicial. Ou seja, um cerco de centenas, talvez, milhares de policiais, numa jornada descrita como “insana” por um deles, cercariam a Assembleia e impediriam a presença de público nas votações. Uma clara resposta aos acontecidos de fevereiro. Estando clara a impossibilidade de aprovação das medidas caso houvesse presença popular, ficava caracterizada uma tentativa de aprovação “goela abaixo”.

Na manhã de segunda (27), a Praça Nossa Senhora da Salete amanheceu cercada de PMs, com direito ao Choque e ao Bope locais. Professores e demais servidores fizeram passeata de outra praça próxima ao Palácio Iguaçu e colocaram caminhões de som no trecho da Avenida Cândido de Abreu que passa em frente ao prédio do governo e do legislativo. Trecho este que foi… bloqueado pela PM.

Um trecho que no qual desembocam veículos da região Norte da cidade que vão a região central. Habitantes de bairros residenciais importantes tiveram transtornos. Oito linhas de ônibus de Curitiba tiveram itinerários mudados de forma forçada. Funcionários da prefeitura, assim como o prefeito Gustavo Fruet (PDT, oposicionista de Beto Richa), tiveram dificuldades para entrar no expediente – a Prefeitura de Curitiba fica do lado oposto do Palácio Iguaçu, na mesma Praça Nossa Senhora da Salete. É a Polícia impedindo o direito de ir e vir, que ela devia proteger.

Na terça-feira (28), com mais policiais, trazidos de divisões de todo o Paraná, inclusive das fronteiras, desguarnecendo estas regiões, houve um princípio de confusão por volta de uma e meia da manhã no Centro Cívico. Alegadamente, a PM quis retirar os carros de som dos grevistas.

A praça amanheceu com mais efetivo policial e um acampamento de manifestantes tomando toda a frente do Palácio Iguaçu. Por volta de 10:30 da manhã, novamente um carro de som, junto a uma passeata, tentou adentrar na zona de bloqueio. Estava no meu intervalo e resolvi comer alguma coisa na região (trabalho no bairro) e cruzei com o grupo quando ele chegava ao cordão policial. Dez minutos mais tarde, quando já estava refugiado no prédio onde labuto, estoura a confusão. Os manifestantes teriam forçado a passagem. Bombas de efeito moral, jatos d’água e spray de pimenta são usados. A bagunça termina rapidamente e sem maiores consequências.

Praça Nossa Senhora da Salete. Curitiba, tarde de 29 de abril de 2015.

Desde a manhã, o clima era tenso na região. Cada vez mais pessoas se juntavam aos acampados na região, num ato comandado pela APP-Sindicato, que representa os professores, se consolidou após 1988 e todo ano organiza passeatas no dia 30 de agosto. Policiais já estavam em formação por volta de 10:15, quando novamente passei no local. Com 20 mil manifestantes previstos, um helicóptero sobrevoava o acampamento de forma rasante, às 13:00.

Dois dos senadores do Paraná, Roberto Requião (PMDB) e Gleisi Hofmann (PT, envolvida na investigação da Lava Jato) vieram a Curitiba para discutirem com deputados a entrada de público na votação do projeto de reestruturação da ParanaPrevidência. Liminares permitindo o livre acesso a um lugar chamado de “A Casa do Povo” já tinham sido expedidas. Ainda sim, Ademar Traiano não cedeu e, de acordo com relatos (já tinha deixado a região fazia uma hora e meia), nesta hora, a PM lançou mão de armas não-letais para dispersar a multidão que, supostamente, forçava entrada na Assembleia.

manifestação 3Em uma hora de bombas, jatos d’água, sprays de pimenta e (boatos) de ataque aéreo – daquele mesmo helicóptero… – o que se viu foi digno de uma guerra civil. 213 pessoas se feriram segundo o balanço da Prefeitura de Curitiba. O deputado estadual Rasca Rodrigues (PV) e o cinegrafista da TV Bandeirantes, Luiz Carlos de Jesus, foram mordidos por pit bulls usados pela PM em manifestações. Isso na rampa da Assembleia Legislativa.

A Prefeitura serviu como refúgio para vários manifestantes que fugiam da praça de guerra. O desenho do Centro Cívico, área ampla e aberta planejada urbanisticamente em 1953 para sediar os prédios públicos de Curitiba, certamente ajudou na dispersão dos populares, evitando números mais graves. A cultuada página social, a “Prefs”, já havia criticado duramente o bloqueio policial no dia anterior.

Mais tarde, com o clima menos bélico, Ademar Traiano prosseguiu a sessão plenária, mesmo com o caos externo, bradando que “tem poder da Polícia”. O governador Beto Richa se pronunciou dizendo que a PM agiu porque Black Blocs infiltrados forçaram um confronto e os policiais tinham que “proteger o prédio”. Richa, desta maneira, consegue ressuscitar os Black Blocs, de quem não se ouvia nada há tempos.

Curioso que, em junho de 2013, na mesma Praça Nossa Senhora da Salete, os black blocs organizados arrasaram a região. A Polícia só foi agir quando a situação virou quase anárquica, com um rastro de vandalismo deixado no Centro Cívico. Na quarta-feira, ao menor sinal de confusão, a mesma PM decidiu descer o malho logo de imediato e de maneira geral e destemperada. De fato, há registros de pessoas forçando grades, munidas de paus e pedras, ou arrancando-as das calçadas, mas aparentavam ser uma minoria desorganizada, o contrário dos Black Blocs.

Francischini(Fernando Francischini, da bancada da Bala, se tornou secretário de Segurança Pública em dezembro de 2014…)

No começo da noite, mesmo com o massacre na rua em frente, houve a votação do projeto de reforma da ParanaPrevidência. Com 31 votos a favor, a medida foi aprovada e já sancionada por Beto Richa, que conseguiu o que queria usando do aparato do estado para passar por cima de qualquer questionamento, a maioria deles, democráticos.

Assim como em 1988, sob o olhar da Nossa Senhora de Salete (há uma estátua em homenagem a ela na praça), jaz a democracia paranaense.

P.S: Álvaro Dias, governador em 1988, foi eleito senador no ano passado, com absurdos 77% dos votos válidos. Foi o único senador paranaense a não estar em Curitiba ontem. Apesar de sofrer um revés no pleito seguinte ao acontecido de 1988, assumiu o erro, criou uma imagem de combativo, principalmente, na oposição federal e reergueu sua imagem. Como nunca se deu bem com Richa no PSDB, Dias pode ter sido o político mais beneficiado pela batalha do Centro Cívico. O mundo dá voltas… Resta ver se, nestes tempos, Richa terá mesmo imagem arranhada, nem que a curto prazo, ou se virará “herói do Tea Party brasileiro”, como observou o colega colunista Rafael Rafic.