O assunto da semana no futebol brasileiro foi o caso de racismo nas arquibancadas de Grêmio x Santos, pela Copa do Brasil. Vamos tentar uma análise mais ampla do episódio, e aproveitar a reflexão para o próximo artigo, no qual seguiremos no exame da “questão racial”. Para começar, recapitulemos o “Caso Aranha”.

Na quinta-feira 28/08 o goleiro Aranha, do Santos, interrompeu o andamento da partida que seu time disputava na Arena do Grêmio para reclamar ostensivamente das manifestações racistas que lhe dirigiam do setor ocupado pela torcida organizada Geral do Grêmio.

Aranha chegou a pedir a um cinegrafista da Globo que filmasse os ofensores, mas o funcionário da emissora não deu importância. Uma câmera da ESPN, de outra posição, filmou a torcedora Patricia Moreira claramente gritando “MACACO” em direção ao goleiro, e uma fila de gremistas imitando um símio para provocá-lo.

O caso ganhou surpreendente repercussão por causa da revolta de Aranha e das imagens da TV, passando-se a discutir uma punição esportiva ao Grêmio. Na mídia e nas redes sociais, uma turba pediu o sangue de Patricia, que teve de se esconder para fugir das ameaças. Alguns tentaram cobrar do Rio Grande do Sul, e em especial do Grêmio, a conta do racismo brasileiro. Patricia perdeu o emprego e sua casa foi apedrejada.

Outros minimizaram o caso como parte do “folclore do futebol” – o Grêmio chama rotineiramente seus rivais colorados de “macacos”, e o próprio Inter ensaia assumir a pecha como símbolo. Um terceiro grupo lamentou o ocorrido, atribuindo-o a uma minoria e sublinhando que seria injusto punir o clube Grêmio por atos individuais de torcedores, que de resto foram identificados.

No domingo 31/08 o Grêmio jogou novamente na Arena, contra o Bahia, e a Geral entoou um de seus cânticos mais conhecidos, o singelo “Chora Macaco Imundo”. Sentindo que isso agravava o bombardeio que o Grêmio vinha recebendo da opinião pública de todo o país, o resto do estádio vaiou a canção (abaixo). No dia seguinte o presidente Fabio Koff repudiou oficialmente a organizada, e a proibiu de ostentar símbolos do clube. Foi mais um capítulo da guerra fria entre Koff e a Geral do Grêmio, tradicionalmente aliada de seu adversário Paulo Odone.

http://www.youtube.com/watch?v=pnX64FClzv8

Na terça-feira 02/09 dirigentes do Grêmio vieram a público tentar salvar a imagem do clube, mas não foram muito hábeis. O vice-presidente Adalberto Preis negou que tenha havido ofensas racistas (o que os próprios torcedores admitiram) e acusou Aranha de fazer uma encenação. Outro cartola, Renato Moreira, lançou-se como campeão da causa LGBT ao deplorar que os gremistas sofrem homofobia no Rio e em São Paulo “por serem gaúchos”.

Parêntese: Moreira foi diversionista, mas tem razão quando lembra que os mesmos que agora condenam o racismo aceitam e praticam a homofobia. Talvez esta seja a próxima fronteira a ser conquistada pelo pensamento politicamente correto, mas o Zeitgeist dá um passo de cada vez. Por ora, foi o racismo explícito que se tornou inaceitável para a maioria, e é este tema que está na berlinda.

Na quarta-feira 03/09 o STJD puniu o Grêmio com sua exclusão da Copa do Brasil (da qual seria provavelmente eliminado na partida seguinte). Cada auditor fez um discurso mais moralista de reprovação ao racismo nos estádios e na sociedade brasileira. No dia seguinte revelou-se que um dos julgadores, Ricardo Graiche, postava costumeiramente piadas de cunho racista em seu perfil no Facebook.

Na quinta-feira 04/09 Patricia Moreira chegou aos prantos à delegacia para prestar depoimento, cercada por uma multidão hostil e por dezenas de jornalistas. Declarou que não teve intenção de ofender ninguém e que apenas “foi no embalo da torcida”, que desde sempre usa o termo “macaco” como sinônimo de colorado. No dia seguinte, convocou uma entrevista coletiva para pedir perdão publicamente. Ao longo da semana, circulou uma foto antiga sua espezinhando um boneco de um macaco com a camisa do Inter. Entrementes, amigos negros da moça vieram a público testemunhar que ela não seria racista.

O que podemos pensar de toda essa história?

Creio que qualquer discussão que pretenda chegar a algum lugar deve estabelecer a diferença entre “racismo” e “manifestações racistas”. As manifestações são individuais; o racismo é uma cultura – portanto, coletiva. As manifestações alimentam a cultura racista; a cultura perpetua as manifestações.

depoimentoEis por que a distinção é importante: Patricia foi convincente ao falar de “embalo”. Sua manifestação racista individual é perfeitamente compreensível para os que já experimentaram o êxtase coletivo tão comum numa arquibancada de estádio de futebol. Pode-se punir Patricia e quantos outros sejam flagrados pelas câmeras, mas isso não necessariamente mudará a cultura de tolerância ao racismo que levou a moça “no embalo”, e que ainda levará muitos mais.

Pessoas devem ser punidas por seus atos, mas se o que se pretende é coibir o racismo (entendido como cultura coletiva), a sanção é tão só uma medida educativa entre muitas outras que precisam ser tomadas. Transformá-la em bode expiatório leva à ilusória sensação de que só o que há são manifestações racistas isoladas que recebem pronta reprovação social, e não – de jeito nenhum! – uma cultura racista.

Em Racismo no Futebol (2006), Carlos Alberto F. da Silva e Sebastião J. Votre dedicam um capítulo ao caso Grafite-De Sábato. Como alguns se recordam, num jogo da Copa Libertadores um argentino malvado ofendeu um altivo negro brasileiro e recebeu uma lição, sendo preso em flagrante e trucidado moralmente por toda a nação, unida em seu repúdio e no propósito de mostrar ao mundo como nossa sociedade é civilizada e progressista. O trecho a seguir explica como se dá a dinâmica social de negação do racismo como fenômeno coletivo:

“O processo é mimético. Todos querem ser politicamente corretos nesse momento. Mídia e população se projetam nos jogadores. O racismo tem gerado insatisfação em grande parte da comunidade futebolística. (…) À insatisfação se associa o ódio e se ameaça o equilíbrio social. O equilíbrio é restabelecido mediante o sacrifício de alguém. Esse rito ao mesmo tempo encobre e reproduz uma violência.

A mimese nos leva a oprimir, pois constantemente somos oprimidos, pela coerção, persuasão ou sedução. (…) No começo, todos nos juntamos contra a vítima, mas de repente, após a sua crucificação, alguns se arrependem, e aí nos conscientizamos de nossa própria fraqueza e de onde escondemos o nosso racismo.”

No caso de Patricia, submetida a um linchamento público desproporcional à sua responsabilidade individual, o “arrependimento de alguns” começou a se revelar quando a imprensa passou a referir-se a ela como uma “menina” – apesar de já ter 23 anos de idade.

Continua segunda-feira.

Imagens: O Globo e Globoesporte.com