Retomando o assunto interrompido ontem, além dos casos que apenas ficaram na promessa, em vários outros a velha tendência da nossa sociedade para atrasos (e aqui o problema transcende a esfera governamental) impediu que as obras prometidas fossem entregues em tempo para a Copa. Essas duas situações geraram mais uma vez um sentimento no eleitor de “promessa de político não cumprida”.

Não obstante, as obras nesse segundo tópico saíram do papel e, mesmo que parcialmente, já estarão disponíveis para a Copa. São obras que sem um motivo externo muito forte para liberar o financiamento e forçar os governos a trabalharem, não sairiam. Como não reconhecê-las como legado da Copa?

vlt cuiabáOu alguém acha que se não fosse a Copa o VLT de Cuiabá seria construído (apesar das minhas dúvidas quanto a sua viabilidade econômica)? Ou o aeromóvel (um sistema de trilhos aéreos muito interessante) seria construído em Porto Alegre ligando o Aeroporto ao trem? Ainda temos uma série de obras projetadas e prometidas há muito tempo que só saíram com o empurrão do fato de sediarmos a Copa.

Nesse caso, os dois exemplos mais ululantes ficam no Rio de Janeiro. Finalmente a Transcarioca (a linha de BRT mais primordial da cidade) saiu do papel e, mesmo que incompleta, já funcionará na Copa.

Para quem não sabe, o nome que a Transcarioca tinha antigamente era “Corredor T5” e foi a solução mais barata que encontraram para substituir a linha 3 do Metrô do “projeto-modelo” urbano da cidade, feito ainda na gestão de Carlos Lacerda (contemporâneo e rival de Getúlio e JK), que, se já tinha preços proibitivos antigamente, agora com a área já densamente urbanizada chega a ser inimaginável.

O Corredor T5 era um sonho antigo da região de Jacarepaguá e foi a primeira promessa da carreira política do atual prefeito Eduardo Paes, feita quando o mesmo assumiu seu primeiro cargo público, no caso o de subprefeito da Barra e Jacarepaguá, ainda no longínquo ano de 1995, no primeiro mandato de Cesar Maia (que ainda teve mais dois mandatos após isso, lembrando que Paes já está no meio do seu segundo mandato).

O próprio Paes assumiu em uma entrevista recente que quando ele prometeu isso na coletiva de apresentação como subprefeito ele não fazia a menor ideia do que seria esse “tal Corredor T5” e muito menos do trabalho que esse lhe daria 20 anos depois. Ele prometeu isso apenas por prometer já que não fazia a menor ideia do que falar naquela coletiva e isso fora uma “dica” dada pelo Cesar Maia quando Paes lhe disse que não sabia o que falar.

Se isso não for Legado, não sei mais o que seria.

Mas as mentes ranzinzas ainda falarão que a Transcarioca só saiu por causa dos Jogos Olímpicos e não por causa da Copa. Então darei outro exemplo que não estava previsto no projeto olímpico apresentado ao COI em 2009.

As estações de trem e metrô do Maracanã ficam na mesma reta, separadas entre si por não mais do que 150m. A estação de trem é exatamente em frente ao portão do Maracanã do lado da UERJ, já a do metrô é um pouco mais afastada do estádio. Mas pasmem: as duas estações funcionavam de maneira completamente independente. Caso se quisesse “pular” de uma para outra se teria que sair de uma delas, ir para a rua, andar por uma calçada estreita e um tanto assustadora para vencer esses 150m na rua.

A interligação entre as duas estações, uma obra ridícula de tão simples, era uma dessas facilidades óbvias que ninguém se interessava em fazer alegando que a integração já existente em São Cristóvão, estação anterior, era suficiente.

O mais incrível é que apesar do Maracanã ser um gigante que comportava 90 mil pessoas antes da reforma, a única plataforma de trem existente na estação não era grande e só atendia a trens paradores, ferrando a vida do “geraldino” que morava longe. Como diria um samba clássico sobre os trens do Rio: “Imagine quem vem lá de Japeri”.

Parêntese: para quem não conhece o Rio, Japeri é uma cidade da Região Metropolitana conhecida por ser o terminal da principal linha de trem que leva a Baixada Fluminense.

Bastaram dois gritos da FIFA e finalmente a integração está sendo construída, com direito a uma mega ampliação das plataformas de trem que passarão a atender aos trens diretos.

Nessa situação de obras já planejadas mas impulsionadas pela Copa posso também incluir os Corredores BRT de Belo Horizonte e a duplicação da Avenida Beira-Rio em Porto Alegre.

Quando visitei Belo Horizonte, ainda em 2008 ou 2009, a cidade já estava um canteiro de obras para a construção do primeiro BRT da cidade. Lá fui informado que o projeto ainda contemplaria mais dois corredores, mas que nem se sabia exatamente quando o primeiro ficaria pronto.

move-acMesmo não estando completamente construído, hoje o BRT de Belo Horizonte compreende dois corredores em gradual implantação, mais uma região da área central que não é exatamente um corredor, mas funciona como. O problema é que o Corredor mais esperado, o da Av. D. Pedro II, que desemboca na Pampulha, não sairá a tempo da Copa por causa de pressões sofridas pela prefeitura, o que acabou atrasando seu projeto em pouco mais de um ano.

Vale lembrar que a Lagoa da Pampulha, obra de Juscelino Kubitschek quando ainda era prefeito de Belo Horizonte na época do Estado Novo de Vargas, é uma região ligeiramente afastada da zona planejada de Belo Horizonte (zona central), mas que concentra os principais pontos turísticos da cidade, muitos deles projetados por Oscar Niemeyer, além do Aeroporto da Pampulha e do próprio Mineirão, palco dos jogos da Copa.

Também escuto sobre a necessidade de duplicar a Av. Beira-Rio para facilitar a chegada ao estádio homônimo em Porto Alegre há 10 anos. Não conheço a capital gaúcha, mas em tese, obras de duplicação não costumam ser dor de cabeça, salvo em áreas altamente urbanizadas. Mas nunca se cogitou realizá-la.

Não é que, em um passe de mágica, a Copa já contará com a Av. Beira-Rio duplicada! E Porto Alegre ainda terá um BRT implementado, que entra na lista de obras originadas por causa da Copa que não ficaram prontas a tempo (mas ficará logo após o evento).

Ainda temos a questão de hotelaria. Este é outro calo que assola as principais cidades brasileiras, e que não adianta o governo tentar fazer (acho que ninguém acredite que seja correto e necessário a criação de uma “Hotelbras” ou “Embrahotel”) porque são investimentos privados.

A exceção de São Paulo, todas as cidades brasileiras, sejam turísticas ou de negócios, estavam com déficit de quartos para atender as suas demandas. Mesmo assim, não estava havendo a criação de novos quartos. Ao menos, não na mesma velocidade com que cresciam as necessidades. Mesmo o Rio de Janeiro, que além de porta de entrada do turismo de lazer internacional no Brasil é uma grande cidade de negócios, não estava bem no quesito.

Aliás, estava muito mal. Tão mal, que o projeto olímpico teve que prever uma reforma completa do nosso porto para que o mesmo pudesse suportar quatro super transatlânticos ancorados ao mesmo tempo para que eles pudessem servir como 15 mil quartos temporários durante os jogos.

Como já deve ser de conhecimento de todos, a reforma do ancoradouro do porto ainda não saiu e nem sairá por divergências técnicas, econômicas e ambientais. Ao mesmo tempo, percebam que ninguém está se importando muito com isso; nem o COI que já perdeu completamente a paciência com a cidade.

Por que essa calmaria? Porque os hotéis no Rio de Janeiro estão se multiplicando, atraindo inclusive multinacionais conhecidas por seu padrão de excelência que, inexplicavelmente, ainda não tinham aterrissado na cidade. Assim estão sendo criados mais de 17 mil quartos no Rio de Janeiro em 85 hotéis diferentes.

Sabendo-se que não existe a tal “Hotelbras”, o que motivou a iniciativa privada a investir na criação dos quartos? Que grande coincidência que eles tenham sido criados justamente nessa época que o Brasil irá sediar uma Copa (e o Rio uma edição dos Jogos Olímpicos)…

Esse fenômeno não se restringiu ao Rio de Janeiro, mas atingiu praticamente todas as cidades-sede (com a exceção de Cuiabá e Manaus, talvez), especialmente Belo Horizonte, que era a cidade mais preocupante nesse ponto em 2009. Deixo de colocar números exatos aqui porque achá-los fora de São Paulo e Rio de Janeiro é tarefa hercúlea. Apenas para o leitor ter uma ideia, a última (talvez única) pesquisa do IBGE sobre número de quartos data de 2011, ou seja, muito antes dos empreendimentos puxados pela Copa ficarem prontos.

Além desses 3 pontos críticos, ainda temos um legado intangível, especialmente na propaganda “grátis” que as sedes ganham graças à grande exposição delas e das belezas turísticas da cidade. Na África do Sul houve após a Copa de 2010 um aumento substancial no afluxo de turistas, seja para a Cidade do Cabo seja para os Safáris no interior do país. Este aumento tem se mostrado sustentável e até o momento, 4 anos após, o patamar se mantém acima do que estava antes da Copa de 2010.

Muitas vezes é esta promoção que os governos buscam escolhendo certas cidades-sede.

Exterior_view_of_Mbombela_Stadium-1Na África do Sul, Nelspruit não tinha condições de sustentar um moderníssimo estádio para 30 mil pessoas, em uma cidade que não passa de 250 mil habitantes. Porém ela é a base para começar os safáris pelo parque Kruger (aquele conhecido pelos elefantes e rinocerontes) e por isso foi incluída na Copa, mesmo que cidade tenha ficado como um elefante branco após o evento.

Aqui no Brasil, o exemplo mais próximo desse é Cuiabá, que foi incluída justamente por ser a porta de entrada para o turismo pantaneiro. Acredito que a escolha de Manaus sobre Belém também levou essa variável em consideração em relação a floresta amazônica.

De qualquer forma, temos belíssimas cidades sediando a Copa, como Rio, Salvador, Fortaleza, Natal e Recife. Todas essas com um potencial turístico muito maior do que o explorado atualmente. Inclusive o Rio de Janeiro pode receber muito mais turistas do que recebe hoje. Mesmo que já seja o maior do Brasil, ao menos para o turismo de lazer, o Rio tem potencial para ser uma das cidades top no nível mundial, o que ainda está longe.

Se nosso estado paquidérmico não atrapalhar, esperem um crescimento considerável no turismo dessas cidades. Elas “se vendem” sozinhas, só precisam de um espaço para isso e a Copa é o 2° melhor evento para criar essa vitrine.

Não pensem que o setor hoteleiro investiu tanto dinheiro nas cidades-sede apenas para construir “hotéis temporários” para a Copa. Eles estão acreditando que a Copa deixará um legado em turismo que tornarão esses novos negócios sustentáveis a longo prazo.

Em suma, dizer que a Copa não deixará legados é leviandade ou atestado de desinformação. Pode-se não ter feito toda a maravilha que foi prometida quando de seu planejamento e deve-se reclamar disso, mas a culpa não é da Copa nem foi a FIFA que gerou essa expectativa no povo, logo as críticas não deverão ser dirigidas a quem não criou a situação.

Impedir sua realização, além de não ser inteligente, na situação atual, também não resolverá nenhum problema.

Imagens: Trivela, O Globo e reprodução de internet