No segundo artigo da série sobre os 50 anos do Golpe Militar, o advogado Gustavo Cardoso fala da tortura e faz um histórico destas práticas.

Notas sobre a Tortura

Neste segundo artigo de uma pequena série sobre a ditadura brasileira vista de hoje, abordo um dos temas mais incômodos relacionados àquele regime: a tortura. Tão incômodo que os defensores do regime costumam se refugiar em chavões (“era uma guerra”) ou dizendo que, quando foi dado o golpe, ninguém podia prever que o Estado degeneraria num aparato nazi-terrorista. E por que continuaram a apoiar o governo quando a ditadura ficou escancarada? “Ninguém tinha certeza na época, corriam boatos sobre isso e aquilo…” – é o tipo de resposta que ainda temos de ouvir.

Mas há uma terceira linha de defesa, mais instigante, que foi utilizada por Célio Borja numa entrevista recente à Folha (http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/03/1430339-nao-era-ditadura-diz-presidente-da-camara-no-governo-geisel.shtml). Como pôde um jurista como Borja servir a uma ditadura? Para perplexidade geral, ele afirma que o regime “nunca foi uma ditadura”. Sobre isso, nem adianta debater.

E quanto às torturas? Fala Borja: “Sempre houve no Brasil. Sou advogado. A coisa mais triste é uma delegacia de polícia. Estar lá era o equivalente a ser torturado, sofrer maus tratos. O pau de arara não foi invenção de 1964. Ninguém se importava com a miséria do preso comum. A coisa só começou a chamar atenção quando os presos políticos foram submetidos ao mesmo tratamento.”

Esta é uma meia-verdade. De fato, sempre houve tortura policial no Brasil, continua havendo, e isso não desperta tanta indignação quanto a tortura política. Mas é falso que “ninguém” se importasse ou se importe com o que acontece com o preso comum. Vale dizer, aqueles que ainda defendem a ditadura de 64 realmente não se importam, como ficou claro na recente apologia da barbárie feita por Rachel Sheherazade, e no apoio que ela recebeu na sociedade. Os que levantam a bandeira dos direitos humanos são exatamente os que combatiam a ditadura, e seus sucessores ideológicos.

presidioHá uma boa razão para a tortura de presos políticos parecer mais chocante que a de presos comuns. No segundo caso, pode-se mais naturalmente falar em desvio do agente repressor. Não é usual um governador orientar sua polícia a torturar criminosos, e quando surgem denúncias, às vezes acontece de haver apuração e afastamento dos policiais. A tortura política é a quintessência da ditadura: pessoas são torturadas por se oporem ao governo estabelecido, de modo que a selvageria é um instrumento do Estado em sua própria defesa contra os cidadãos, não podendo ser tomada como um malfeito individual. Por esta razão, não se espera que o Estado se “corrigirá” internamente, porque não há propriamente desvio, mas a execução de uma política de governo.

Além disso, há outra diferença importante, pelo menos no caso brasileiro. O terror dos anos 60 e 70 foi sofisticado por consultores em tortura da CIA (Dan Mitrione foi apenas o mais famoso) e veteranos franceses da Guerra da Argélia, como o adido militar Paul Aussaresses. Isto levou a ditadura a um refinamento do sadismo que não encontra paralelo com o que acontecia antes, nem com o que ainda acontece diariamente nas delegacias brasileiras.

Tome-se o caso do casal Maria Amélia e Cesar Teles. Após prendê-los e torturá-los juntos, os agentes do DOI-Codi prenderam a irmã de Amélia, grávida de 8 meses, e a torturaram com choques na barriga. Insatisfeitos, sequestraram também os filhos do casal, de 4 e 5 anos, e os trancaram num quarto no qual podiam ouvir sessões de espancamento. Numa ocasião em que César acabava de se restabelecer de um coma, e Amélia estava presa na “cadeira do dragão”, em estado lastimável e suja de sangue, vômito e urina, o Coronel Brilhante Ustra trouxe as crianças à masmorra, para que pudessem ver seus pais sendo torturados ao vivo. O mais novo perguntou por que o pai estava verde e a mãe, azul.

12aOu, tome-se o caso de Eduardo Collen Leite, preso aos 25 anos pelo Delegado Sérgio Fleury. No segundo dia de prisão, quando recebeu a visita da esposa grávida, já tinha o corpo desfigurado e totalmente coberto de queimaduras e hematomas. No quarto dia, perdeu o movimento das pernas. Passaria os dois meses seguintes sendo seviciado, quando ficou sabendo que os jornais noticiaram sua “fuga”, o que significava que não sairia dali com vida. Mas as torturas seguiram por mais 40 dias (foram 109 no total), e quando seu corpo foi entregue à família, tinha dezenas de cortes, escoriações, vários dentes arrancados, olhos vazados, orelhas decepadas e quatro tiros no peito e na cabeça.

Isto nos leva a um tema histórico mais amplo: teria havido um retrocesso civilizatório ao longo do século XX?

Eric Hobsbawm (“Barbarism: A User’s Guide”) assinalava que de 1782 aos anos 1930 houve sucessivos avanços na eliminação formal da tortura dos procedimentos judiciais dos países civilizados, e que os principais avanços técnicos nesse campo, após um longo interregno, foram desenvolvidos pela Alemanha Nazista e pela URSS sob Stálin. Hobsbawm apontou que os países ocidentais mais avançados se inspiraram no modelo nazista para aprimorar sua própria tecnologia de tortura depois da II Guerra, e eu mesmo já toquei nesse assunto aqui (http://www.pedromigao.com.br/ourodetolo/2013/10/pitaco-seculo-monstruoso-parte-i/).

Eu não gosto de utilizar o termo “retrocesso” para falar de fatos históricos. Para o bem ou para o mal, o progresso nas técnicas de “interrogatório” seguiu o avanço tecnológico geral pelo qual a sociedade passou no mesmo período. E os eventos políticos que conduziram à banalização cada vez maior das atrocidades se deram numa sequência lógica de eventos. A lição que devemos tirar é a de que o avanço da ciência não implica, necessariamente, em mudanças para o bem da humanidade.

Além disso, é difícil atribuir a Hitler e Stálin a culpa de todas os horrores que aconteceram no mundo no século passado. Os franceses podem ter-se tornado mais civilizados em casa a partir da Revolução, mas é amplamente documentado que a tortura na Argélia, longe de ter sido introduzida na Guerra de Independência, foi sempre umalexis_de_tocqueville instrumento banal de repressão desde o início da colonização, nos anos 1830. Tocqueville, tido como um campeão da democracia, defendeu abertamente o uso de práticas terroristas, “inclusive contra homens desarmados, mulheres e crianças”, porque “os turcos serão sempre mais bárbaros que nós, já que eles são bárbaros muçulmanos”.

A máquina de tortura por choque elétrico foi inventada nos EUA em 1908, e amplamente utilizada na Ásia durante a II Guerra. Após, americanos e franceses compartilharam seu uso em suas respectivas guerras na Indochina, e foi dessa experiência fundamental que evoluíram as chamadas “escola americana” e “escola francesa” de tortura. A  americana consolidou sua “ciência”, a partir de 1963, em manuais que já estão desclassificados e acessíveis a qualquer consulente. A Escola das Américas deu aulas práticas a uma dinastia de ditadores latino-americanos.

No século XXI, 54 países, entre eles Suécia, Dinamarca, Islândia, Bélgica, Canadá, Austrália e Alemanha, participaram do programa da CIA de “Secret Detention and Extraordinary Rendition” (http://www.opensocietyfoundations.org/projects/globalizing-torture). A novidade é que nenhum país da América Latina tomou parte. Trata-se de um programa de tortura, assassinatos, prisões ilegais, sequestros e deportações secretas, e que tem como alvo, basicamente, árabes. O “avanço civilizatório” nunca valeu para as raças inferiores, e assim continua a ser.