Neste sábado, mais uma edição da coluna de contos sambistas do compositor Aloisio Villar.

Na passarela do teu coração

A história era boa e eu nunca imaginei que uma disputa de samba-enredo fosse assim. Sempre imaginei que o melhor samba fosse escolhido. Doce ilusão.

Minha ex mandou que eu descesse e fosse comprar refrigerante. Desci até o barzinho da esquina, comprei refrigerante, cerveja e encontrei alguns conhecidos de meu pai que lamentaram o ocorrido. É uma sensação meio chata quando ocorre isso, porque as pessoas que querem dar pêsames não tem muito que falar e nós que sofremos a perda não temos muito a dizer em resposta.

Panguá, sempre ele, quebrou o clima e perguntou se era verdade que o velho Jair estava dando uns “amassos” na jararaca de minha ex-sogra. Todos riram e respondi que dona Elza não era tão ruim assim.

A rapaziada soltou um “ohhh” no bar. Nunca me viram falar bem da mulher e me chamaram pra beber uma cerveja com eles. Respondi que não dava, porque a Bia estava terminando o almoço e ficaram mais espantados ainda. Panguá assustando comentou “Que te deu? Você nunca foi de largar a cervejinha com a galera por almoço com a família”.

Agradeci, respondi que não dava e voltei ao apartamento pensando naquelas palavras. Será que o errado da história era eu?

O almoço ficou pronto e Bia nos chamou à mesa. Não sei como, porque não tinha quase nada em casa, mas ela fez uma macarronada maravilhosa, vermelha, com carne moída, presunto, queijo que só de imaginar agora dá água na boca. Almoçamos em um clima feliz (como de família de comercial de margarina), mesmo eu não esquecendo a dor da ausência de meu pai.

De tarde Julinha dormiu e Bia e eu ficamos bebendo cerveja no sofá. Ficamos um tempo em silêncio e perguntei se eu era muito ausente. Bia perguntou porque eu queria saber justo naquele momento e contei a história do bar. Minha ex respondeu que quando eu estava com elas era maravilhoso, pena que não era por muito tempo. Naquele momento percebi que era verdade.

Continuou falando que eu não nascera pra ser casado, ter uma família. Dedicava-me mais ao trabalho, aos amigos, a cerveja com conversa jogada fora, mas que isso não era um defeito e sim uma característica minha. Eu funcionava mais como ex e ficando com a Julinha de vez em quando. Perguntei se o Zé era diferente e a Bia respondeu que sim. Era companheiro, amigo e estava sempre presente.

Tomei coragem e perguntei se ela o amava, pois ser amigo e companheiro não era suficiente para uma relação. Bia não respondeu, olhou o relógio e comentou que estava na hora de ir embora. Peguei nossa filha no colo e desci com ela até a garagem colocando no banco de trás do carro. Eu e Bia nos despedimos com um “selinho” e só depois nos demos conta do que fizemos. Pedi desculpas e ela entrou no carro.

Agradeci pela tarde que tivemos e minha ex comentou que também tinha gostado, tempo que não tínhamos uma tarde assim os três e falou que se precisasse era para que eu ligasse. Dessa forma Bia partiu e tantas coisas ficaram na minha garganta e não foram ditas.

Voltei para aquele apartamento vazio e tão cheio de lembranças e abri o caderno para assim ler mais uma história que meu pai tinha para contar. Sentei no sofá, abri uma cerveja para ler a história do cantor do conto anterior.

História de Rogério Guanabara.

Rogério, pelo sobrenome dá pra perceber, é cria da Acadêmicos da Guanabara, escola da Zona Norte do Rio de Janeiro. A escola é uma das mais tradicionais do carnaval carioca, a maior campeã, mas já vivia um jejum que durava trinta anos!! Era muita coisa para uma escola tão tradicional e querida, um incômodo que já incomodava não só sua torcida, mas todos os foliões em geral.

Rogério era filho do mestre Graveto, o mestre de bateria nota 10 da agremiação. Criador de várias bossas e paradinhas que ganharam o carnaval lhe fazendo famoso. Graveto foi vinte e três anos mestre de bateria da Guanabara e nunca tirou nota menor que dez, tornando-se uma figura lendária.

Rogério cresceu nesse ambiente. Vendo o pai ensinando os ritmistas o que fazer. Todo garboso colocando a roupa de mestre e ganhando um beijo da esposa que lhe desejava boa sorte antes do desfile. Os louros da vitória e o carinho do Chico de Andrade.

Chico de Andrade era o patrono da agremiação. Bicheiro popular da cidade. Figura controversa e acusada de vários crimes Chico também era carismático e popular, conseguindo o amor de sua comunidade e até mesmo de pessoas influentes.

Com Rogério não era diferente, tratando bem desde moleque. Rogério sempre gostou de cantar e cantava em casa enquanto tomava banho e depois no quintal fingindo ser cantor da Guanabara. Incentivado pelo pai começou a cantar na agremiação e quando via o “Dr.Chico” entrando na quadra corria para o palco e cantava o samba exaltação feito em homenagem ao patrono. Chico, evidente, adorava a homenagem e quando Rogério descia do palco lhe dava um agrado em dinheiro, que servia para comprar balas e bolinhas de gude.

Dessa forma Rogério descobriu um dom e assim resolveu que cantar seria seu futuro. Cantou na escola mirim da Guanabara e começou defendendo sambas na agremiação. Chico Andrade morreu e seu filho Chiquinho passou a comandar a escola. Homem considerado mais violento que o pai, sem o carisma do velho tratava tudo com mão firme e por coincidência, nesse momento o jejum de títulos se iniciou.

Alguns outros fatores ocorreram nessa época para aumentar o drama da Acadêmicos da Guanabara. Um racha dentro da agremiação fez surgir a Soberana Carioca. Escola comandada por ex diretores da Guanabara que rapidamente chegou ao grupo especial e se tornou campeã do carnaval. Escola poderosa, endinheirada que contrastava com a decadência da “escola mãe”.

Também veio a morte do mestre Graveto com um infarto fulminante dentro do banheiro da agremiação em uma final de samba-enredo. Um baque não só para a escola como pra Rogério que se via seu sem o ídolo e melhor amigo.

Sem o pai por perto, sem espaço na escola e pensando no crescimento de sua carreira Rogério saiu da agremiação, aceitando convites de escolas menores. Rodou por várias pequenas, tornou-se cantor oficial da Unidos da Vila Kennedy e com o Boi da Ilha fez uma apresentação arrebatadora no grupo de acesso, ganhando o prêmio Samba-Net de melhor cantor do grupo de acesso.

A Acadêmicos da Guanabara, sem muito dinheiro, perdeu seu cantor Wando Maravilha para a rival Soberana Carioca. Sentiu o baque, acusou o cantor de traição, mas não tinha muito a fazer. Sem alternativas Chiquinho pensou em um nome que pudesse agradar a comunidade e diminuir o baque. Pensou em Rogério Guanabara.

Era o grande sonho da vida do cantor, que imediatamente aceitou. Uma festa foi organizada para sua apresentação e lá estava Rogério com uma calça branca e blusa azul emocionado recebendo o rufar da bateria e sendo apresentado como novo cantor da escola. Rogério subiu ao palco e cantou o samba exaltação do antigo patrono. Cantou mais alguns sambas enquanto outros contratados novos da agremiação eram apresentados como Gabriela, a nova coreógrafa da comissão de frente.

Rogério de cara se encantou com a mulher. Graciosa, Gabriela comandava o show da comissão de frente na frente do palco e Rogério só tinha olhos para ela. Um dos cantores de apoio notou e sorrindo mandou o homem se concentrar na música.

Deco era o nome desse cantor e depois da apresentação, no camarote destinado ao cantor, disse a Rogério, seu amigo de infância, que tomasse cuidado, pois a moça era “lanchinho” do Chiquinho Andrade. Mas Rogério já estava completamente enfeitiçado e não havia mais nada a fazer. Rogério pegou o carro no fim do ensaio e saiu. Andou apenas alguns metros e viu um carro parado com uma moça tentando trocar o pneu. Era Gabriela. O cantor parou o carro e foi até a moça perguntando se poderia ajudar. Ela explicou o problema e Rogério pôs a mão na massa para ajudá-la.

No fim Gabriela agradeceu e Rogério contou que tinha um posto de conveniência ali perto perguntando se ela não queria lanchar. A moça confirmou que estava com fome, pensou um pouco e aceitou o convite. Foram até o local, lancharam e bateram papo. Um contou um pouco sobre sua vida ao outro até que Rogério arriscou e deu um beijo na coreógrafa que correspondeu. Logo após Gabriela disse que aquilo era errado, pois era compromissada.

Rogério perguntou se era com Chiquinho. A moça se assustou e perguntou como ele sabia e Rogério pediu que confirmasse. Ela confirmou e o cantor comentou que o patrono era casado. Gabriela perguntou se lhe julgaria por isso e o cantor respondeu que não. Disse apenas que por ele ser casado aquilo não caracterizaria traição beijando novamente a coreógrafa.

Rogério era audacioso. A fama de Chiquinho era péssima, de matador, mas mesmo assim ele não desistiu de Gabriela e eles começaram um caso as escondidas. Acontece que mesmo essas coisas feitas na encolha acabam provocando burburinho, papos e chegou em Chiquinho que chamou o rapaz pra conversar e foi direto dizendo que se descobrisse ser verdade mandaria Rogério conversar pessoalmente mais cedo com o pai.

Mas logo depois da ameaça Chiquinho foi preso, o que fez o casal se tranquilizar e deixar o caso mais escancarado. Mesmo com o problema da prisão do patrono o carnaval continuou a todo vapor e a Acadêmicos da Guanabara tinha a esperança de finalmente encerrar o jejum.

A Soberana desfilou primeiro, comandada por Wando Maravilha. Luxuosa, a escola que desde que chegara ao grupo especial do Rio já vencera dez vezes fez um desfile técnico perfeito, mesmo sem empolgar e partia firme para seu inédito tricampeonato.

No dia seguinte era a vez da Guanabara desfilar. Wando foi até a concentração da ex-escola desejar sorte aos amigos da agremiação e deu um abraço em Rogério Guanabara passando a mão em sua cabeça. Rogério era supersticioso e ficou gelado com o ato. Mas engoliu em seco e se dirigiu ao carro de som.

No carro recebeu o abraço de todos, inclusive de Gabriela que lhe deu um beijo e desejou boa sorte antes de ir para a sua posição. Rogério respirou fundo, olhou para o céu e pediu proteção de seu pai e de Chico Andrade. Depois abriu o vozeirão dando o grito de guerra e iniciando o desfile.

 A Acadêmicos da Guanabara fez um desfile de arrepiar. A maior campeã do carnaval carioca pisou na avenida como há muitos anos não fazia. Seus carros não eram grandiosos, suas fantasias mais simples, mas a escola tinha coração, tinha alma.

Seus desfilantes pareciam numa guerra, mas uma guerra onde o importante era ser feliz. Não cantavam o samba: berravam. Chão perfeito da agremiação. Bateria dando show, casal de mestre-sala e porta bandeira dançando divinamente, a comissão de frente de Gabriela nota dez e Rogério Guanabara cantando o lindo samba-enredo com maestria.

A campeã havia retornado depois de tantos anos adormecida. O público da Sapucaí, emocionado, cantava junto o samba-enredo. Um desfile sem plástica da rival, mas com todos os fundamentos do samba ali presentes. Magistral, apoteótica, carnaval na essência.

Ao fim do desfile Rogério saía feliz abraçado com Gabriela da avenida aos gritos de campeão vindo do público. Tinha a certeza do trabalho bem sucedido, tinha a realização do sonho e encontrado o amor, não precisava de mais nada. Mas tinha um problema, Chiquinho Andrade fora libertado e esperava o casal do lado de fora.

O casal deu de cara com ele. Gabriela apenas balbuciou “Chiquinho” e antes que Rogério dissesse algo o homem se aproximou e disse “eu avisei” dando um tiro no coração do cantor.

Rogério caiu fulminado. O sangue vermelho que saía de seu corpo contrastava com o azul da camisa. Gabriela deu um grito desesperado que chamou a atenção de toda a escola que se aproximou de seu cantor morto no chão. A polícia chegou e prendeu Chiquinho. A tragédia estava consumada.

Rogério Guanabara ganhou postumamente o estandarte de ouro de melhor cantor e na quarta-feira de cinzas Acadêmicos da Guanabara e Soberana Carioca disputaram acirradamente o título. No fim a apuração acabou empatada. A Soberana conquistava seu tricampeonato tão sonhado e a Guanabara voltava a ser campeã, encerrando o jejum.

No sábado das campeãs as duas escolas não festejaram. Desfilaram juntas sem alegorias e fantasias. Só os desfilantes passando juntos ao som de um surdo. Na frente das duas agremiações uma faixa mostrava toda a dor que lhes tomava.

“Saudades Rogério Guanabara”.