Após longa ausência, mais uma edição da coluna sobre cinema do cineasta, crítico e professor Marcelo Ikeda – que pode ser visto no vídeo ao final deste post.

As Cinzas e o Nascituro

O SIGNO DO CAOS e ESTÉTICA DA SOLIDÃO. O que esses dois filmes tão diferentes possuem em comum? O que está por trás desse meu gesto de aproximar esses dois filmes tão estapafúrdios?

De um lado, um filme sobre a consciência do fracasso, sobre a iminência do fim, o último filme de um veterano cineasta brasileiro, atrelado ao grão da película cinematográfica. De outro lado, um filme sobre a possibilidade do começo, um filme adolescente sobre adolescentes, o primeiro filme de um (dois) jovem(ns) realizador(es) brasileiro(s), sob a semente do video.

Dois filmes que dão as costas ao modelo típico de produção do cinema brasileiro de sua época, do cinema do “bom gosto” e da busca pelo profissionalismo, que regeu o cinema da retimada, os discursos sobre o cinema brasileiro da virada do século.

De um lado, um filme sobre o fim, um fime dionisíaco sobre o juízo final. De outro, um filme sobre o início, filme-ensaio apolíneo sobre a gestação de um porvir. As cinzas e o nascituro. Tarde demais, cedo demais.

Me interessa aproximar esses dois filmes tão diferentes porque ambos são filmes-ilha, desconectados de seu tempo, e exatamente por isso me parecem absurdamente contemporâneos, muito mais do que os “filmes da retomada” feitos na sua época. Porque comprovam o texto do Agamben, por dirigirem um facho de luz em nossa direção mas que não conseguimos alcançar. Tenho dificuldade em ver esses filmes, mas essa dificuldade me interessa, porque, acima de tudo, aponta para o gesto desses autores.

Esses filmes me interessam pela pureza de suas intenções e pela radicalidade do seu gesto. Me interessam porque provocam, a partir dos seus deslocamentos, uma ética do autor.

Porque são filmes sobre a liberdade. Porque conseguimos criar, mesmo diante de tudo, diante do sistema e do país, mesmo diante da morte, mesmo asfixiando o artista, mesmo com as picuinhas, pilantragens e traições do cinema brasileiro, mesmo assim a obra continua, permanece, reverbera, o filme de welles ressoa ainda que ele tenha sido destruído, ouroboros. Porque conseguimos criar, mesmo sendo crianças e mesmo sendo sós, mesmo não tendo ninguém a não ser nós mesmos, e mesmo que não consigamos sair do nosso quarto.

Esses realizadores atiraram-se num precipício ao fazerem os seus filmes. Mergulharam num abismo. Um labirinto de espelhos. Ou um castelo de cartas, um jogo de lego. Não importa. “Maturidade” ou “precocidade”, não importa.

Esses artistas não tiveram medo de se lançar de uma maneira frágil. Esses filmes escancaram e potencializam as suas próprias fragilidades, que são tamanhas. Os realizadores ofereceram suas feridas, suas chagas, a céu aberto. E encontraram no próprio processo de realização do filme talvez o único modo de lidar com isso.

Não são filmes exemplares, longe disso, pois não pretendo passar filmes exemplares. Me interessa vê-los como um gesto imperfeito desses autores que escavaram essas fendas como saída (encontro) suicida diante do mundo. Talvez em outros filmes, eles puderam (talvez) desenvolver, aprofundar melhor outras questões, mas isso importa menos. Importa mais ver para o que eles apontam, para o que eles escondem de nós, para o que eles escondem de si mesmos, para o que eles não puderam filmar, para o que eles não puderam ser, e por conta disso assim acabaram sendo, dessa forma, e não de outra.

Com isso, não quero apontar para o que eles não fizeram, mas como essa ausência está incrustada no próprio filme como uma cicatriz que os faz. Como essas impossibilidades se dão a ver no próprio corpo desses filmes, como filmes-faquires. É por isso que defendo não só a existência desses filmes, mas o seu projeto de errância, de incompletude, de fugacidade, de desespero, de incredulidade, de liberdade. Defendo a ínfima possibilidade de que eles possam ser vistos. Esses filmes, mais do que muitos outros, precisam de nós, urgem, nos chamam, e me interessa não propriamente em atender a esse chamado, mas fazer com que ele ecoe um pouco mais, abrindo uma pequena janela desse porão.