Neste sábado, mais uma edição da coluna de contos do compositor Aloisio Villar.

O Servo de Deus

Cela úmida, um gotejar que incomoda a quem não está acostumado, mas a Ezequiel não. Ratos passeiam pelo local para cima e para baixo como se fossem os donos dali, os únicos com direito a liberdade e naquele lugar super lotado em que as pessoas se revezam para dormir e aproveitando o pouco de luz que entra Ezequiel lê a Bíblia. Ezequiel lê o livro sagrado todos os dias, quando acorda e antes de dormir. Reflete sobre a vida, os ensinamentos de Cristo e a diferença que os mandamentos fizeram em sua vida.

Mas nem sempre foi assim…

Ezequiel nasceu no inferno e foi criado como filho do diabo. Nascido e criado em Goiás Ezequiel era o mais velho de quatro irmãos tendo uma mãe crente e um pai bêbado. Muito menino conheceu a violência. O pai violento era na verdade um grande inimigo da família. Gostava de bater na mãe com cinto, madeira, o que encontrasse na frente e foi capaz de cegar um dos filhos que tentou defendê-la em uma briga.

De tanto apanhar a mulher um dia não aguentou e foi embora de casa com os filhos indo para a casa de uma irmã. O homem não se conformou e rondou a casa, perseguia a esposa e fazia ameaças para que ela voltasse. A mulher deu queixa na polícia e o pai de Ezequiel sofreu uma medida cautelar em que não podia se aproximar a menos de duzentos metros da esposa.

Mas ele não quis saber de ordem judicial, policial, de nada. Apareceu armado na casa da tia de Ezequiel disposto a matar a esposa.

Aproveitou que ela estava sozinha em casa e surrou a mulher. No fim, ela encharcada de sangue caída no chão viu o marido tirar a arma da cintura e apontar. Ezequiel chegou em casa e viu toda a cena entrando em desespero não sabendo como salvar a mãe. Enquanto o pai engatilhava a arma Ezequiel achou uma barra de ferro e viu o pai dar um tiro no peito da mãe.
Quando ele apontou para a cabeça da mulher pronto para dar o tiro fatal Ezequiel não pensou duas vezes e deu com a barra nas costas do pai. O homem caiu e Ezequiel cego pelo ódio partiu para cima do homem batendo com o ferro.

Ezequiel não conseguia parar, parecia com o diabo no corpo e espancou o pai até a morte. A polícia chegou e encontrou Ezequiel batendo em seu pai já completamente desfigurado e lhe conteve. O garoto queria bater mais e foi algemado, enquanto médicos chegavam pra tentar salvar a mulher.

Ezequiel foi levado para um centro de reabilitação e no local descobriu que sua mãe não resistira e morrera. Não esboçou nenhuma reação com seu olhar tomado pelo ódio. No mesmo instante descobriu também que matara o pai e apenas respondeu “que ele esteja no inferno”.

Ezequiel com apenas quatorze anos de idade já era um assassino.

Ficou algum tempo no centro de reabilitação e lá aprendeu a ser bandido. Era matar ou morrer tendo que aprender a se defender pra manter sua integridade física e aos poucos se tornou um líder dos jovens delinquentes. Matou um rival a facadas e deixou pendurado no gol em que jogavam futebol, para mostrar sua força.

Com um ano de internado no lugar, a surpresa. Ele foi liberado.

Nem o próprio Ezequiel acreditou. Ele andava até a porta da casa quando viu o diretor do instituto conversando com um homem com chapéu de couro, o diretor espantado perguntava “O senhor tem certeza que levará esse moleque? Ele é o cão”. O homem fumava um charuto e respondeu “é desse tipo que eu preciso”.

Ezequiel se aproximou e o diretor contou que ele iria embora com o coronel Viriato, o coronel estendeu a mão para que Ezequiel beijasse e ele respondeu cheio de ódio: “não beijo mão de ninguém nesse mundo”. O diretor dava broncas em Ezequiel pela audácia enquanto o coronel dava sua baforada e gargalhava: era exatamente o que ele queria. Coronel Viriato era o homem mais poderoso da região, o mais rico, mais temido e maior detentor de terras.

Levou Ezequiel para sua casa e lá o menino perguntou o que o homem queria com ele. Viriato olhou bem para Ezequiel e respondeu “você já conhece bem a morte, sabe matar um homem como se mata um passarinho”. O menino respondeu que a morte era sua companheira e Viriato contou que também seria sua fonte de renda.

Ezequiel fora tirado do centro de reabilitação para matar. Tornou-se assassino profissional, tirando do caminho todos os inimigos do coronel, seja outro fazendeiro, policial, bandido ou algum sindicalista, sem terra… Não poupava ninguém e ninguém era louco de contestar o coronel, que ganhava passe livre para seus desmandos. Ezequiel tornava-se uma pessoa temida mesmo tão jovem.

Mas um dia o coronel morreu em um infarto fulminante e Ezequiel se viu sem seu escudo a mercê dos inimigos que criou ao longo do tempo. Não teve outro jeito e fugiu para o Rio de Janeiro. Na capital carioca continuou com seu ofício trabalhando para banqueiros do jogo do bicho. Mas mesmo com todo o poder que os bicheiros tem eles não tinham as costas largas como o coronel e um dia Ezequiel foi pego, sendo condenado a mais de trezentos anos de cadeia.

O começo na prisão foi bem complicado e como no centro de reabilitação Ezequiel teve que usar toda a violência que aprendeu para sobreviver até que um dia lhe convidaram para um culto – e nesse culto sua vida mudou.

Conheceu Jesus, sua palavra e transformou-se naquele homem que ilustrava o começo da história. Ezequiel finalmente conheceu a paz, a serenidade, dava conselhos aos mais jovens e a eles passava os ensinamentos do senhor. Faltava conhecer o amor e até isso ele conheceu.

Graziela era uma estudante de serviço social e fazia estágio na prisão onde gostava de conversar com os presos e saber seus problemas, mas ela não era apenas isso. Graziela era uma das mais atuantes membros de uma ONG a favor dos direitos humanos que incomodava muito políticos, juristas e policiais corruptos por suas denúncias e manifestações.

Um dia parou para conversar com Ezequiel e ouvir sua história. Ezequiel era apenas um pouco mais velho que ela e com sua intensa história de vida e sua boa e articulada oratória Graziela surpreendeu-se e se comoveu com o que ouviu. Voltou para casa pensando em tudo que escutara e ficava repetindo a gravação que fez.

Tornou-se amiga de Ezequiel e acabou ajudando o homem em seus cultos. Com a ajuda da ONG e concordância do diretor do presídio montou uma biblioteca na penitenciária e foi uma das coordenadoras das festividades de dia das crianças quando os presos puderam passar a data com seus filhos.

Ezequiel não tinha filhos e ficou em um canto isolado de todos. Graziela chegou para perguntar o que ele tinha e o homem contou do sonho de ser pai e de ser um pai diferente do que teve, queria transmitir a seus filhos todo amor que nunca recebeu.

O homem começou a chorar e Graziela comovida fez carinho em seu cabelo. Ezequiel levantou a cabeça e olhou nos olhos de Graziela passando a mão em seu rosto. Graziela pediu que ele não fizesse o que estava pensando, mas não teve jeito. Ezequiel deu um beijo em Graziela, que retribuiu.

Começaram um caso com a mulher se apaixonando completamente por ele. Os comentários já eram muitos e não teve outro jeito para Graziela senão se transferir para outro presídio. Mas começou a aparecer no horário de visitas para ver o amado, faziam planos de casamento e tudo ia bem até que um dia Graziela encontrou o amado tenso.

Ezequiel contou que sofria ameaças de morte e precisava dar um jeito de sair dali. Graziela pedia para o amado ter calma, mas Ezequiel desesperado pedia ajudar para sair da cadeia senão morreria, pediu ajuda para Graziela que respondeu que não poderia fazer nada, era contra seus princípios.

O homem desolado pediu à Graziela que ela fosse embora, precisava ficar sozinho.

Ela foi e atormentada não tirava Ezequiel apavorado pedindo ajuda da cabeça, ela mesma sofria muitas ameaças de morte e sabia o quanto àquilo era terrível, mas sua ética não permitia ajudar Ezequiel. Até que um dia ela recebeu a informação que Ezequiel estava internado em um hospital. Fora envenenado.

Graziela desesperada foi até o hospital e encontrou Ezequiel algemado a uma cama. Chorando perguntou se ele estava bem e Ezequiel devolveu perguntando se agora ela acreditava que ele corria riscos. Graziela apenas chorava e Ezequiel com esforço levantou a cabeça e falou em seu ouvido “não me deixe morrer”. Graziela deu um beijo em sua testa e disse que lhe ajudaria. Arrumou disfarce para Ezequiel de enfermeiro e subornou o guarda que tomava conta do quarto. Saíram pela porta da frente sem ninguém desconfiar.

Ezequiel estava livre e o casal foi para um hotelzinho enquanto a poeira abaixava. Ezequiel fechou a porta do quarto e deu um beijo apaixonado em sua amada, pela primeira vez fizeram amor. No fim Graziela feliz olhava pela janela do quarto e Ezequiel chegou por trás dando um beijo em seu pescoço. Graziela disse que se sentia a mulher mais feliz do mundo e Ezequiel respondeu que ela ainda não vira nada.

Graziela se virou para beijar Ezequiel e enquanto se beijavam um estampido foi ouvido. Graziela caiu no chão sangrando na barriga e assustada olhou para Ezequiel que friamente se aproximou e atirou em sua cabeça, matando a moça. Logo depois pegou o celular de Graziela e telefonou, quando atenderam do outro lado disse:

– “Serviço feito”.

Servo de Deus, filho do diabo.