Temos uma coluna nova nesta semana do aniversário do Ouro de Tolo. É a “Tou melanje ankò”, do antropólogo e amigo José Renato Baptista. No texto de estreia ele se apresenta, explica o porquê do título e nos conta um Haiti um pouco diferente do que a imprensa divulga. A coluna será quinzenal, normalmente às terças feiras.

Sè tou melanje

Quando o meu amigo, Rubro-negro e Portelense, Pedro Migão me convidou para assinar uma coluna no seu blog, confesso ter ficado um pouco assustado. O convite já tem um tempo e inicialmente, sem recusar, pois de fato o intenso volume de trabalho à época, acabei me desvencilhando da responsabilidade de figurar ao lado dos ótimos colunistas do “Ouro de Tolo”.

Nos conhecemos há alguns anos atrás, um pouco antes do advento das redes sociais, quando as discussões sobre carnaval se limitavam às listas de e-mails. Logo, foi o carnaval que nos aproximou – na época era um dos interesses de pesquisa aos quais me associara, em função do trabalho na UERJ, no Laboratório de Culturas Populares e Folclore do Instituto de Educação Física. O laboratório, então coordenado pela saudosa Profª Maria José Oliveira. Eu ainda lutava para concluir a graduação em Ciências Sociais no IFCS-UFRJ. 

O fim da minha relação com o laboratório implicou, de certa maneira, em um afastamento do tema do carnaval, que era um interesse colateral para mim, que buscava nos rituais e sua relação com a vida social no seu sentido mais amplo, o material de minhas reflexões intelectuais. Olhava o carnaval justamente por este aspecto ritual e sua qualidade de fenômeno social total.

O olhar voltado para os rituais naturalmente me levara a estudar a religião, outro tema que acabou por me aproximar novamente de Pedro, através de convites para cursos de formação em história das religiões, política internacional e palestras sobre religiões de matriz africana para jovens da Igreja Messiânica do Rio de Janeiro. 

A vida, no entanto, me aproximou ainda mais dos temas ligados às religiões afro-americanas, posto que resolvera dar continuidade aos meus estudos cursando o mestrado e o doutorado em Antropologia Social no Museu Nacional/UFRJ, escrevendo um mestrado sobre o sentido social do dinheiro no candomblé, o que gerou uma filiação a Núcleo de Pesquisas em Cultura e Economia, daquela instituição.

O prosseguimento de meus estudos, em nível de doutorado agora, obrigou a busca de uma perspectiva comparativa, que se situasse no campo das religiões afro-americanas, buscando esta interface entre a vida econômica e a vida religiosa. Na verdade, desde o mestrado já percebera uma coisa que se tornou substantiva em minhas pesquisas: a vida social é sempre confusa e misturada. Operamos constantemente separações e classificações que tornem estas misturas algo, pelo menos aparentemente, coerente. Afetos e interesses, paixão e razão estão em permanente tensão na experiência humana. E foi nessa toada que fui parar no Haiti, pela primeira vez em novembro de 2006. 

A descoberta daquele país caribenho foi um momento fascinante na minha história pessoal. Ao desembarcar naquele país pela primeira vez, resolvi, além de produzir os primeiros dos muitos cadernos de campo que viria a fazer, e que foram fundamentais para a minha tese doutoral, pensei em compartilhar algumas das minhas experiências lá através de um blog. O que percebera então era que, apesar de muito se ouvir falar do Haiti, conhecíamos muito pouco ou quase nada de um país tão central na história do Ocidente. Todas as imagens que nos chegavam eram marcadas por estigmas e ideias largamente difundidas que nem sempre correspondiam à realidade daquele país. 

A primeira delas é que o país estava em guerra, o que justificava a presença militar brasileira naquele país. Havia uma situação de grave conflito social, mas que nem de longe se aproximava de uma “guerra”. Para quem vinha de uma cidade onde a música que embalava o sono das pessoas era o som de rajadas de fuzil AR-15, o Haiti não me parecia tão violento assim, como diziam.

Bem como as imagens de pobreza extrema. É claro que é um país pobre e que uma favela haitiana talvez seja um tanto mais precária que as nossas favelas, mas também não se tratava de uma situação, como  pareciam retratar as imagens mais recorrentes, de pobreza absoluta. Havia sim pobreza e havia fome, em estados alarmantes, mas não muito diferentes de muitas regiões mais pobres do Brasil. O Brasil de então não era a “potência emergente” que apareceria alguns anos depois. 

O que percebi era um ambiente complexo, cheio de nuances que não podiam ser enxergadas através da pauta jornalísitica que normalmente era destinada ao Haiti: violência, conflito, pobreza, fome. Mais tarde, quando ocorreria o terremoto de 2010, mesmo depois de ter voltado do país e tentado explicar diversas vezes essa complexidade, veria de novo estas imagens recorrentes do Haiti. 

Uma das minhas mais interessantes descobertas quando cheguei era a questão da língua natal do país. Como é costume, na nossa humilde ignorância (e no mais arraigado etnocentrismo, é claro), tratamos os idiomas de origem europeia como “línguas” no seu sentido forte, e as línguas “nativas” como “dialetos” ou formas inferiores de comunicação.

Embora tenha relativa fluência na língua francesa – faço algumas confusões com os tempos verbais e a falta de prática só aumenta esse problema – logo ao chegar ao Haiti percebi que tinha imensa dificuldade em me fazer entender e de entender o que estava sendo dito. Foi então que, apesar das advertências de interlocutores com os quais falei antes de partir para esta viagem (particularmente os antropólogos Rubem Cesar Fernandes e Omar Ribeiro Thomaz) notei que a língua falada pela maioria dos haitianos era o créole (ou “crioulo”). Aliás, foi do créole que retirei o nome desta coluna: Tou melanje ankò, que quer dizer “tudo misturado ainda” ou “tudo ainda misturado”. 

Embora muitas vezes soasse como se estivéssemos ouvindo francês, o idioma créole é mais ágil, mais sintético, como toda língua nova. Nascido de uma mistura da língua francesa com as línguas origem africana, trazidas pelos escravos traficados desde a África, e dos demais idiomas que haviam numa região de intensa circulação de pessoas e mercadorias. O Caribe era uma espécie de caldeirão onde se misturavam diversas formas sociais: práticas, costumes, religiões, alimentos, línguas, pessoas.

O Haiti era parte deste universo que nos parece comum – um dos mitos de origem de nosso país parte exatamente da ideia de mistura e de encontros culturais. Se o Brasil é muitas vezes encarado como um caldeirão onde se misturaram diversos povos e culturas, o Caribe, em geral, não é muito diferente disto. Não por acaso, algumas das maiores cidades coloniais dos séculos XVIII e XIX eram Havana, Cabo Haitiano, Salvador e Rio de Janeiro. 

E isto me permite fazer uma conexão com a história.

No Haiti, parecia ter encontrado uma surpreendente “permanência da historia”. Os fatos históricos são contados pelos cidadãos comuns em uma temporalidade curiosa, onde a memória dos feitos de Toussaint Louverture, Jean-Jacques Dessalines, Alexandre Pétion e Henri Christophe é contemporânea da crise que derrubou Aristide em 2004, do golpe que já o derrubara antes, em 1991, da ditadura Duvalier, das diversas “intervenções humanitárias” e crises políticas que atravessaram o país, da invasão americana de 1914. Tudo parecia se confundir ou estar em solução de continuidade com os eventos deflagrados em 1792 e que levaram o país ao seu processo de independência. 

Na verdade, a despeito de um dos maiores historiadores de nosso século, Eric Hobsbawn, dedicar pouco mais de uma nota de rodapé à Revolução Haitiana, esta foi uma das mais importantes revoluções a história do ocidente.

Sua principal contribuição foi justamente colocar em xeque a noção de igualdade entre os homens, uma vez que, apesar de todos os debates, nem a inglesa, tampouco as revoluções francesa e americana colocaram tão e evidência a clivagem que existia entre brancos e negros. Ao realizar uma revolução comandada por exércitos formados por ex-escravos, negros e uma minoria mulata, o Haiti promovia uma transformação singular na história do ocidente, além de colocar em questão todo o sistema de produção fundado em mão de obra escrava. 

O Haiti foi, portanto, uma espécie de “obstáculo epistemológico” para a noção de homem que fora veiculada pelo iluminismo e que veria nas teorias raciais e evolucionistas uma espécie de “retorno do recalcado”. Sim, os negros podiam ser humanos, de fato, mas pertenciam a um estágio inferior do desenvolvimento humano, o que justificaria todo tipo de intervenção colonial em suas vidas para que aprendessem com o homem branco europeu os rudimentos da civilização. Não é esse, por fim, o pressuposto que dirige, até hoje, as “intervenções humanitárias” nos diversos lugares do mundo? “Sim, eles não são capazes de se governar sozinhos. Daremos a eles Estado, Democracia e Economia de Mercado e os tornaremos livres”. 

Desta maneira, foi no encontro com um sem número de complexidades que voltei ao Haiti, primeiro em uma segunda viagem exploratória em 2007, para retornar ao país enfim em fevereiro de 2008, quando moraria por lá durante um ano e meio, até julho de 2009, com uma breve interrupção para as festas de fim de ano de 2008, quando passei alguns dias no Brasil. Neste período criei um segundo blog, que ficou ativado durante o período em que estive no país. Alguma coisa produzida neste foi reproduzida no “Ouro” pelo Pedro. 

Portanto, é com imenso prazer que me junto ao time de colunistas do “Ouro”, numa coluna cujo espírito reflete um pouco da ideia do título: melanje (lê-se “melangê”). Misturar coisas: política nacional, política internacional, arte, literatura, música, esporte, futebol, antropologias, economias, religião, racismo, fofoca. Gosto de discutir tudo aquilo que o senso comum diz que não se discute: futebol, política e religião. Visões de mundo. Interessa-me, sobretudo, falar daquilo que é humano. 

Sou negro, antropólogo, rubro-negro, mangueirense e redundamente carioca, filho de Xangô e adoro comer e beber. Toda definição é perigosa, mas acho que se essas coisas ajudam a ter uma ideia do que virá por aqui… 

Bem, acho que isto foi uma breve apresentação. 

(e-mail para o colunista: joserbaptista@pedromigao.com.br)