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(Foto: Rede Globo)

Nesta sábado, mais uma edição da coluna de contos do compositor Aloisio Villar, a “Buraco da Fechadura”.

Olhos de Tigre

“Olhos de Tigre”, para quem não se lembra, é o nome em português da música “Eyes of The Tiger”, música tema de Rocky Balboa.

Diria que um dos heróis desse conto não tinha olhos de tigre e sim olhos de jumento. Barbosinha nasceu no interior da Bahia. Comeu o pão que o diabo amassou no sertão e seu pai, não agüentando mais a miséria, mudou com a família de mala e cuia para o Rio de Janeiro.

Trabalhou como pedreiro ajudando seu pai e com o trabalho braçal ganhou músculos. Brigão, exalando fúria, uma vez meteu-se numa confusão em um baile funk e na saída do local seis homens esperavam por ele prontos para lhe baterem até dizer chega.

Barbosinha não se fez de rogado e caminhou em direção ao ponto de ônibus ignorando os valentões. Os homens andavam atrás e xingavam de todas as formas; ele quieto prosseguia a caminhada até que gritaram…

“Comedor de calango”.

Eles não deviam ter feito isso…

Se havia algo que ele odiava era ser chamado assim. Barbosinha virou o bicho da coleira preta. Quis nem saber que eram seis do outro lado e avançou em cima dos caras sem dó nem piedade. Parecia aqueles filmes do Bruce Lee, Chuck Norris ou Renato Aragão que eles sozinhos derrubavam um a um dos inimigos.  

No fim os seis foram nocauteados e Barbosinha limpou a roupa suja de sangue dos adversários, voltando a andar para o ponto de ônibus, quando um homem lhe parou.

O homem entusiasmado contou que poucas vezes na vida tinha visto um exemplo tão forte de força, brutalidade e macheza. Barbosinha mandou que o homem parasse, pois, gostava de mulher;  o homem riu entregando um cartão ao rapaz.

No cartão estava seu nome: Dick Volatto, treinador de boxe. Barbosinha perguntou se aquilo era alguma brincadeira e Dick mandou que ele comparecesse ao local no dia seguinte para ter certeza.

Barbosinha apareceu e comprovou que era mesmo um centro de treinamento de boxe. Dick apareceu e perguntou se o rapaz queria aprender a ser um boxeador. Barbosinha respondeu que sim e assim começou sua história na nobre, arte com Dick lhe dando o nome de “Sugar Ray Barbosinha”.

Na mesma academia treinava o Robertinho. O rapaz foi criado em uma favela perto da academia e muito cedo se meteu em coisas erradas. Cometia pequenos furtos aqui e ali até que foi expulso de casa.

Foi morar com um tio e lá começou a se envolver com torcidas organizadas de futebol. No começo era tudo festa e diversão. Ajudava a fazer as bandeiras, chegava cedo aos estádios para preparar toda a festa e puxava os cânticos na hora do jogo.

Só que com o tempo começou a se envolver com o lado errado. Juntou-se a um pessoal barra pesada e se envolveu em brigas. Essas brigas muitas vezes eram marcadas pela internet e nem precisavam ser em dia de jogos: só precisava a vontade de brigar.

E Robertinho brigava bem. Voltava machucado à sua casa para desespero do tio, mas os inimigos voltavam muito mais. O tio aconselhava que aquilo não era vida e que ele largasse porque um dia poderia se dar mal, mas o rapaz não dava ouvidos: queria botar pra fora a fúria que sentia.  

E um dia se deu mal mesmo. Saindo de um estádio sozinho, foi cercado por mais de quinze homens e barbaramente espancado.  Foi para o hospital e ficou entre a vida e a morte, mas acabou milagrosamente escapando sem seqüelas.

O susto valeu a pena e Robertinho não quis mais saber de torcidas organizadas. O tio, amigo de Dick, teve a idéia então de levar Robertinho até a academia para assim jogar sua fúria em um esporte.

Dick fez um teste com Robertinho e viu que seu soco era mesmo potente, deu nome a ele de “Robertinho Tyson”. Dessa forma Dick virou treinador de Robertinho Tyson e Sugar Ray Barbosinha e eles viraram amigos.

Não só amigos, mas os melhores amigos. Robertinho deu as boas vindas a Barbosinha e foi o primeiro a simular uma luta com ele. Foram ao ringue e Barbosinha mostrou ao adversário o poder do seu soco. No fim Robertinho elogiou o oponente, disse que ele tinha futuro e lhe convidou para jantar em sua casa.

Robertinho apresentou Barbosinha ao tio e o papo no jantar foi apenas sobre boxe, depois se sentaram na sala para assistir vídeos de lutas antigas de Mike Tyson, Joe Frazier, George Foreman e Muhamad Ali.

Um ajudava o outro nos treinamentos, jantavam um na casa do outro. Barbosinha morava sozinho e relevou-se ótimo cozinheiro e quando as lutas começaram sempre era um no ringue e outro na platéia torcendo.

Os dois mostraram talento e ganharam suas lutas iniciais mostrando que Dick Volatto tinha olho clínico. Mas os meninos estavam na flor da idade, com hormônios em ebulição – queriam conhecer garotas. Robertinho conheceu uma, Barbosinha outra e os dois amigos resolveram marcar uma saída em quatro para assim um conhecer a namorada do outro.

Marcaram em um restaurante e qual não foi a surpresa quando Barbosinha chegou com Cleide, a irmã de Robertinho e Robertinho com Janice, a irmã de Barbosinha. Os amigos boxeadores riram da situação e perceberam que, mais que amigos, eles agora fariam parte da mesma família. 

Os namoros eram sérios tanto que acabaram em casamento e para mostrar a amizade forte entre eles os amigos boxeadores decidiram se casar na mesma igreja, no mesmo dia. Igreja entupida, uma grande festa e os dois unidos para sempre.

E unidos nas vitórias também. Seguiam invictos com vitórias convincentes e cada vez mais próximos do cinturão de campeão brasileiro. Surgia um problema: os dois eram da mesma categoria e se quisessem o título uma hora teriam que se enfrentar.

O título ficou vago porque o detentor do cinturão mudou de categoria no momento que Barbosinha era número um e Robertinho número dois do ranking, não tinha jeito: chegara a hora do enfrentamento.

Não podiam treinar mais juntos e Dick dividiu sua comissão técnica para que treinassem os dois para o confronto. O cinturão era o sonho dos dois lutadores e mesmo assim a amizade deles não foi abalada. As pessoas tinham dúvidas se seria uma luta de qualidade e curiosas esperavam o combate.

Normalmente um confronto por cinturão brasileiro não tinha tanta repercussão, mas esperava-se que ali saísse um campeão mundial.

No dia da luta o ginásio estava cheio. Os dois lutadores se concentravam nos vestiários enquanto os torcedores enlouquecidos urravam nas arquibancadas. As bolsas recebiam apostas de forma frenética, com dinheiro muito forte para quem acertasse o vencedor. O embate era tão equilibrado que mesmo nas bolsas não havia preferência por um deles.

Chegou a hora do confronto. Os dois lutadores surgiram no ginásio sob gritos da platéia. Foram apresentados seus cartéis e o árbitro passou as regras aos oponentes. No fim eles se abraçaram e disseram um ao outro que a amizade era mais importante que tudo.

A luta começou e de forma profissional os dois foram ao embate. O começo foi estudado até que Robertinho deu um soco que atingiu em cheio Barbosinha levando a lona. O lutador levantou percebendo que a luta era séria e partiu pra cima do amigo.

E o que seria uma luta entre dois profissionais que levavam a amizade acima de tudo virou uma batalha sangrenta, com quedas para todos os lados, platéia assistindo de pé gritando e recorde de audiência na tv. A amizade há muito deixada de lado, os lutadores enfurecidos um com o outro se provocavam e continuavam lutando mesmo depois do gongo tocado.

Foram até o último round exautos, se socando. Até que o último gongo tocou e os dois lutadores foram aplaudidos pelo país.

Robertinho e Barbosinha arrebentados se olhavam com cara de pouquíssimos amigos, ninguém podia prever quem vencera o combate até que o juiz deu o resultado. Empate.

Ouviu-se uma vaia na platéia e sorrisos felizes dos investidores: teríamos uma revanche pelo título vago. Os dois pararam em hospital e tentaram brigar ali mesmo com médicos e enfermeiras tendo que intervir: a amizade estava devidamente abalada.

Barbosinha deixou a academia e foi treinar em uma rival, os dois pararam de se falar e o clima era bem tenso todas as vezes que se encontravam. Era tudo que os investidores queriam: transformar a revanche em guerra.

Mas não contavam com um fator novo.

Um dia Barbosinha treinava e um homem chegou à academia e convidou para uma conversa: marcaram em um bar à noite. O boxeador apareceu e tinha uns homens mal encarados querendo conversar com ele. Um deles, o chefe, foi direto ao assunto e disse que queria que Barbosinha perdesse.

O boxeador riu e falou que o assunto tinha começado muito mal e tentou levantar.  Neste momento o homem ofereceu um milhão de reais para que ele perdesse: daria quinhentos mil antes da luta e mais quinhentos depois da derrota sacramentada.

Barbosinha assustou-se com a quantia e perguntou o porquê do interesse em sua derrota. O homem respondeu: “apostas”. Tinha apostado pesado na vitória de Robertinho e ganharia muito dinheiro, milhões se Barbosinha fosse nocauteado no terceiro assalto.

Barbosinha ficou pensativo e homem tentou convencê-lo que era um ótimo negócio para um rapaz que nasceu na pobreza, um milhão no bolso para garantir sua independência financeira, de sua família e nada impedia que ele fosse campeão mais para frente.

O boxeador pediu vinte e quatro horas pra pensar e foi embora.

Barbosinha mal conseguiu treinar direito no dia seguinte e decidiu ir embora mais cedo da academia. Era vizinho de Robertinho e quando chegou à frente de sua casa para entrar viu o rival fazendo o mesmo. Decidiu cumprimentar o ex-amigo, que devolveu o cumprimento. Robertinho entrou e Barbosinha pensou, ganharia um milhão e ainda veria seu amigo campeão. Valia a pena.

Encontrou os homens e topou a proposta. Recebeu um cheque de quinhentos mil reais com a promessa que receberia mais quinhentos no vestiário logo após a luta.

O boxeador estava concentrado em seu vestiário pensando em tudo que teria que fazer quando Robertinho lhe fez uma visita. Barbosinha se surpreendeu com sua entrada e Robertinho lhe deu um abraço pedindo desculpas por tudo. Barbosinha retribuiu o abraço dizendo que gostava muito dele e se o amigo fosse campeão seria como se ele também fosse. Robertinho disse o mesmo.

A luta parou o Brasil sendo primeiro lugar de audiência no país e o ginásio inteiro berrava querendo sangue quando os lutadores foram ao ringue. O árbitro fez as recomendações de praxe e a luta começou.

Diferente da batalha sangrenta da luta anterior eles não acertaram um soco um no outro tomando vaias da platéia. Chegaram assim ao terceiro round sem uma troca de golpes, como se um fugisse do outro.

No terceiro round Barbosinha sabia que tinha que cair e se preocupava por Robertinho não lhe socar, não entendia o respeito exagerado do amigo. Em determinado momento Robertinho falou “me bate”, Barbosinha não entendeu e perguntou o que o amigo dissera e ele falou novamente “me bate”.

Sob imensas vaias os dois decidiram ao mesmo tempo dar pelo menos um soco pra aplacar a fúria do público e quando encostaram de leve um no rosto do outro os dois desabaram.

Ninguém entendeu nada, o ginásio e o país ficaram em silêncio com os dois caídos no ringue como desmaiados. O árbitro olhava o chão sem saber o que fazer até que declarou empate sob vaias ensurdecedoras e gritos de armação.

Bandidos armados até os dentes entraram nos vestiários dos dois boxeadores dispostos a fazer deles carne moída, mas em vão: os vestiários estavam vazios. O homem que deu quinhentos mil a Barbosinha apontou um fuzil para o teto e gritou que caçaria os safados até sua morte.

Em um resort na Polinésia Francesa Cleide e Janice se esbaldavam na piscina com os filhos dos casais enquanto Robertinho e Barbosinha se bronzeavam nas areias perto do mar transparente. Barbosinha ria da situação, principalmente do fato de outro grupo de bandidos ter subornado Robertinho para que perdesse também no terceiro round.

O único fator que irritava Barbosinha era que fora prometido dois milhões a Robertinho, ele recebeu um milhão antes e receberia um milhão depois. Perguntou o porquê da diferença e Robertinho respondeu que era evidente: ele tinha vencido o primeiro combate.

Barbosinha riu e falou que tinha feito da cara de Robertinho purê de batatas naquela luta e nunca que ele teria vencido. Robertinho insistiu que era mais lutador e Barbosinha propôs uma aposta.

Uma luta ali na areia só os dois e quem vencesse ficaria com todo o dinheiro dos subornos. Robertinho concordou e os dois ficaram de pé.

Olharam-se por um tempo e começaram a se socar como numa luta de boxe tendo como testemunhas apenas o Sol, a areia branquinha e o mar. 

Quem venceu? Isso é o que menos importa.

O que importa é lutar.