Neste domingo, que pra mim começa no Rio e termina em Curitiba, temos mais uma edição da coluna “Orun Ayé”, assinada pelo compositor e publicitário Aloísio Villar.
Hoje ele fala do outro lado das disputas de samba: quando se perde.
“Quando Um Samba Não Vence
Quando a gente faz um samba… pega uma sinopse, monta uma parceria, contrata cantores, músicos, se reúne todas as semanas, tem gastos, stress, fica sem dormir, tudo isso é atrás de uma coisa…
…vencer a disputa.
Mas a primeira coisa que aprendi quando entrei pro mundo do samba é que perdemos mais do que vencemos – é verdade. Tenho orgulho das vinte e quatro vitórias que tenho, mas para chegar nesse número perdi cinquenta e sete sambas.
E não se engane, caro leitor: a derrota é o destino mais provável do seu samba. Até os mega escritórios dos “Compositores S/A” perdem mais que vencem. Fazem dez sambas para ganhar dois ou três – e saem com a fama de vencedores.
Mas tem sambas que suplantam suas derrotas. Não vão ao limbo comum daqueles sambas que perdem as disputas, pois acabam marcando como se fossem sambas vencedores.
O exemplo mais famoso vem de Madureira, do Império Serrano.
No carnaval de 1975 Acyr Pimentel e Cardoso concorreram no Império, que levaria à avenida enredo sobre a vedete Zaquia Jorge. Ele perdeu, mas foi regravado pelo cantor Roberto Ribeiro (acima) e entrou para a história do samba ganhando o nome de “Estrela de Madureira”.
Brilhando
Num imenso cenário
Num turbilhão de luz, de luz
Surge a imagem daquela
Que o meu samba traduz
Ah…
Estrela vai brilhando
Mil paetês salpicando
O chão de poesia
A vedete principal
Do subúrbio da central foi a pioneira
E…
Um trem de luxo parte
Para exaltar a sua arte
Que encantou Madureira
Mesmo com o palco apagado
Apoteose é o infinito
Continua estrela
Brilhando no céu
A música ficou famosa, mais famosa que o samba que venceu, muita gente nem sabe que era um samba-enredo e ainda mais… que perdeu a disputa.
Eu particularmente acho que seria uma grande sacada se um dia o Império reeditasse o enredo sobre Zaquia e usasse esse samba: seria um dos grandes momentos da história do carnaval.
Outros compositores tiveram sambas seus derrotados gravados por artistas da MPB, como Franco da União da Ilha. Martinho da Vila já regravou alguns sambas seus que perderam na Vila Isabel e fora esses sambas que apareceram em algum LP ou CD tem aqueles sambas que não saem de nossas memórias. [N.do.E.: a Portela nos últimos anos tem se especializado em jogar o trigo fora e escolher o joio. Voltarei ao tema]
Seja por frequentar quadra e acompanharmos as eliminatórias ou ouvindo pela grande rede, uma das grandes vantagens do surgimento da internet foi a democratização do samba concorrente: temos sambas que não saem de nossas mentes e eu tenho o meu também.
O que não esqueço surgiu na União da Ilha para o carnaval de 2000. O enredo era “Pra não dizer que falei de flores” falando sobre a resistência cultural à ditadura brasileira de 1964/1985, emespecial operíodo até 1968. Nessa eliminatória surgiu o lindo samba de Djalma Falcão, Dito, Jota Erre e Bicudo defendido por Roger Linhares.
O samba era assim:
Meu Brasil, está em festa
Parabéns
Vem meu bem vamos embora
Quem sabe faz a hora
Eu quero ser feliz também
Vem, ver os sonhos que plantei
Colher nos jardins que andei
Rosas coloridas
Caminhando eu vou contar cantando
Que eu sou o dono dessa terra de ninguém
Pra defendê-la me levanto e grito
Eu vou
Vou seguindo as estrelas
Que brilham nos palcos da vida
Poetas irreverentes
Que deram adeus sem despedidas
Aplausos, para quem pela paz lutou
E fez da flor
As mais lindas canções de amor
Os anjos bordados nas nuvens, no céu
E a Lua num brilho de aluguel
Iluminando lágrimas de emoção
Tô voltando, bate forte coração
Meu bem me dá um beijo de saudade
Liberdade
É a voz do povo, vem com a Ilha sorria
Pra não dizer que não falei de alegria
Bem, o samba era maravilhoso, passava muito bem a cada semana, mas perdeu. E na sua derrota ouviu-se um “silêncio ruidoso” na quadra – que logo ficou vazia.
Foi a derrota de um samba que não era meu, eu tinha nada a ver com ele, mas senti como se eu tivesse composto.
Por falar em sambas compostos por mim também tenho aqueles especiais que perderam. Já perdi sambas de todas as formas, sambas ruins, legais, que achava que merecia perder, achava que não merecia.
Mas três sambas me marcam profundamente, estão no meu top 10 dos sambas que fiz e guardo com o mesmo carinho de sambas que venceram.
No carnaval de 2004 estreei na Beija-Flor, escola considerada com a disputa mais forte hoje do Rio de Janeiro e fui pra lá com Paulo Travassos e Cadinho da Ilha me juntar ao compositor nilopolitano Jackson Braga.
Pedimos ajuda ao Roger Linhares e começamos a fazer o samba que foi ficando muito bom. Djalma Falcão e Mingau viram que estava ficando legal e pediram pra ajudar fazendo a segunda do samba e o refrão final e daí nasceu um dos meus sambas preferidos.
E o toque especial desse samba veio ao convidarem o inesquecível Jackson Martins para defender na quadra. Jackson era um cantor brilhante, cantava com facilidade, sua voz parecia vir da alma. Devia vir mesmo.
Eram 107 sambas, ficamos em 8°, caindo nas quartas de final, isso tudo no nosso primeiro ano na escola. Chegaram até a cogitar sua vitória, mas faltou poder financeiro para colocar torcida na quadra e o samba campeão é muito bom, um dos melhores desse começo de século do carnaval carioca.
Foi o último samba que Jackson Martins defendeu na Beija-Flor, escola que ele surgiu para o samba antes de se tornar cantor da Caprichosos de Pilares.
Ele foi assassinado no dia 8 de agosto de 2004.
E todo esse simbolismo, ter o Jackson conosco em seus últimos momentos, a força do samba fez que ele se tornasse inesquecível pra mim.
Manoa, Manaus, Amazonas
Terra santa que transmite a paz
Faz bem ao corpo, equilibra a alma
Santuário de riquezas naturais
Império de bravos guerreiros
A ganância do homem depertou
Vem a chuva e molha a mata
São as lágrimas dos Deuses
Mãe natureza padece
Em teu seio estão rezando nova prece
Em busca do Eldorado vem de lá
A maldade navegando rio mar
O demônio ficou cego de ambição
E não viu o ouro verde pelo chão
E assim vi reluzir
O amor da mulher guerreira
A dor e o misticismo espalhando proteção
Virá, da luz virá
O fruto, a flor dos deuses, quem provar
Vai gostar, irá por certo dar valor
Ao doce sabor do guaraná
No ar o progresso e a cultura
Como um vendaval vem a civilização
Manaus querem lhe transformar em Paris
Bela cidade raiz, sonha em ser feliz
Vai voar meu beija-flor em liberdade
Planta a semente de amor e paz
Pra colher felicidade
Já no carnaval de 2008 veio o segundo samba derrotado inesquecível e o primeiro que verdadeiramente doeu perder – e dói até hoje.
Quando o Boi da Ilha anunciou seu enredo sobre Gaia (já comentado na coluna anterior) eu quis ousar, fazer um samba sem rimas e cheguei a fazer essa letra diferente – que causou dificuldades em Cadinho da Ilha e Ito Melodia, responsáveis pela melodia.
Junto com Barbieri mexemos na letra, tornando mais fácil que se colocasse melodia; mas ainda muito ousada e foi com esse samba ousado que entramos na disputa.
O samba conquistou a muitos e deu medo em outros que achavam que era samba para o grupo especial e não no Grupo B, onde o Boi se localizava no momento. Mas foi crescendo, crescendo e chegou na final como favorito e eu já havia sido informado que o samba provavelmente venceria. Houve uma reunião três dias antes da final e nela se definiu o possível resultado.
Mas o samba perdeu, aquele que considero uma das melhores letras da minha vida
Quando a humanidade
Ouvir o clamor que vem da mãe Terra
Espero não estar perto do fim
Senhor olhai por nós, tire essa cruz de mim
O ser vivo que moramos está doente
Chora padece, provocando reação
Para impedir o juízo final
Só o juízo afinal
Derrubem fronteiras, todos juntos pra salvar
Vamos dar as mãos, na união apostar
Cidadania é a nossa fé, eu tenho fé
Desenvolver sustentado no ambiente
Nova história, outra maneira de contar
Quero água limpa pra beber, água limpa de viver
Meus netos conhecendo a fauna e a flora
Sonhos de um louco como eu
No meu enredo esse sonho aconteceu
Vai meu samba, vai levar
Nossa voz ao mundo inteiro
Vai meu samba viajar
Seja nosso mensageiro
Gaia quero ver você feliz
Azul mais azul na beleza das cores
Jardim do Éden voltou, obra prima do criador
E a minha escola vem cantando em seu louvor
Basta amor pra preservar, curar
O planeta no pulsar de um coração
Basta amor pra preservar, mudar
Meu carnaval é emoção
O último veio ano passado, Boi da Ilha carnaval 2011. Eu, Cadinho da Ilha, Marcelo Cossito, Tino Ayres, Carlinhos Fuzil e Bujão fizemos o samba em uma tarde. Ele falava sobre a lenda do surgimento do guaraná.
Um samba especial para mim porque no fim fala sobre amor de mãe, de uma certa forma consegui fazer uma homenagem à minha.
Contudo, foi uma disputa complicada, confusa, com o Boi em sérias dificuldades financeiras após cair para o grupo C e perder a sua quadra na Freguesia. Peregrinou por mais duas quadras até conseguir fazer sua final.
Cheguei na quadra já com o papo que o samba perderia e na hora do resultado recebi um sinal do palco confirmando essa derrota. Foi a derrota que me fez licenciar da escola e trouxe muita frustração.
Conta a lenda
Que o pajé se indignou
Vendo a fraqueza do seu povo
Pediu a Deus Tupã pra lhe ajudar
Pra ver de novo a semente da vida brotar
E assim, do seu ventre a bela índia concebeu
Nasceu, o curumim que o amor divino ofereceu
Uniaí ganha a ira dos irmãos
Noçoquém a viu partir sem o perdão
Aguiry belo e forte a castanha quis provar
Aguiry, tome cuidado com os perigos do lugar
Perdido no caminho, o veneno da maldade
A dor, o sofrimento, o choro amargo da saudade
Sob olhar do destino
O velho vira menino
A tecnologia vem desse esplendor
Exportando ao mundo inteiro a delícia do sabor
Amor de mãe gera frutos no pomar
Amor de mãe doce como guaraná
Ecoa meu tambor
Aldeia boiadeira está em festa
Maué Sateré Maué
Vamos brindar Uaraná Cecé
Entre mortos e feridos, vencedores e derrotados o samba prossegue. Não dá pra vencer sempre e muitas vezes de uma derrota vem uma vitória futura, porque essa derrota traz ensinamentos e porque não, orgulho e espírito vitorioso.
As derrotas nos fortalecem. Levantar, sacudir a poeira e prosseguir é o mais importante porque o trem de luxo que encantou Madureira sempre parte e sempre tem um lugar para nós.
Aqueles que não perdem a mania de dar a volta por cima.
Orun Ayé!