Após o recesso pós carnavalesco, a seção “Samba de Terça” finalmente está de volta. Deverá seguir o mesmo calendário do ano passado: quinzenal até dezembro e semanal depois disto.

E na volta de uma das mais tradicionais colunas deste Ouro de Tolo, abriremos a “temporada 2012” com um samba que já esteve aqui, aliás abrindo a série: “Afoxé”, Acadêmicos do Cubango 1979 e depois 2009.

O leitor deve estar se perguntando o porquê da repetição. Simples: quando a coluna foi formatada se limitava ao áudio com a letra, mas depois foi se modificando a fim de contar a história do desfile. E assim faremos.
Depois de seis carnavais seguidos no Grupo de Acesso A, a escola havia sido rebaixada em 2008 para o Acesso B, que corresponde à terceira divisão do samba. Diga-se de passagem, em uma apuração estranha: em que pesem os problemas enfrentados no desfile, causados pela chuva, a escola chegou nos dois últimos quesitos fora da zona de rebaixamento.
Entretanto, mesmo tendo o melhor samba inédito do grupo naquele ano – atrás apenas da reedição de “É Hoje”, da União da Ilha – a escola tomou um estranhíssimo 9,1 neste quesito que decretou o seu rebaixamento. Aliás, este mesmo jurado considerou o samba da escola de Niterói e a reedição insulana – que é simplesmente um dos maiores sambas de enredo da história do carnaval – como os piores sambas do grupo. Vá entender…
Para o carnaval de 2009 a escola completaria seu cinquentenário de fundação. A Acadêmicos do Cubango era uma tradicionalíssima agremiação do carnaval de Niterói, disputando com a Unidos da Viradouro a primazia nos desfiles daquela cidade – que eram considerados inferiores apenas aos da capital carioca.
Talvez como uma resposta aos jurados do ano anterior, a escola decidiu que para 2009 na tentativa de retornar ao Grupo de Acesso A iria reeditar aquele que é considerado um dos dois maiores sambas de sua história: “Afoxé”. O leitor pode ouvir abaixo uma preciosidade: a versão original de 1979, em cortesia da jornalista Paula Ranieri:

Como diz a sinopse – que pode ser lida na íntegra no site Galeria do Samba – a escola niteroiense tinha três objetivos com esta reedição: relembrar o enredo que lhe deu o pentacampeonato no carnaval de Niterói, homenagear o mais popular dos afoxés, o “Filhos de Gandhy”, e, finalmente, celebrar seu próprio cinquentenário de fundação, a se completar em dezembro daquele ano de 2009.

Dizia a introdução da sinopse:

“No carnaval em que celebra seu jubileu de ouro, o G.R.E.S. Acadêmicos do Cubango, reafirmando suas origens e tradições afro-brasileiras, presta justa e merecida homenagem à cultura e religiosidade presentes no trecho ocidental do continente africano, recuperando a temática dos afoxés e reeditando o samba de enredo com os quais a escola dos Morros São Luiz, Mangueirinha, Abacaxi, Serrão e Rala-Côco, sagrou-se pentacampeã do carnaval niteroiense no ano de 1979.
 
Pretende desta maneira, reverenciar e reapresentar ao grande público manifestação inspirada em festejos lúdico-religiosos originários de Lagos, antiga capital da Nigéria, manifestação esta popularizada no Brasil a partir de finais do século XIX, expandida para outras regiões tendo como referência a cidade de Salvador.
 
Os afoxés representam um dos traços de resistência das camadas populares da sociedade brasileira que, através da lapidação espontânea do caldo de cultura, preservam e a todos brindam com parte do vastíssimo legado gestado no continente também chamado de “Berço da Humanidade”.
 
Que este mágico momento para a agremiação do bairro do Cubango e para os afoxés, homenageados nesta ocasião por intermédio da sexagenária “Associação Cultural Recreativa e Carnavalesca Filhos de Gandhy”, possa ser inscrito na história dos desfiles da Marquês de Sapucaí com a marca da alegria, da inventividade e da convivência pacífica, tão características dos grupos étnicos de matriz africana que, decisivamente contribuíram para a formação do povo da terra Brasil.”
(Fonte: Galeria do Samba)
A escola tinha algumas alterações em relação ao ano anterior: o carnavalesco Wagner Gonçalves, que assinara o enredo sobre a bailarina Mercedes Batista, fora substituído pela dupla Leo Morais e Sérgio Silva. O puxador Tiãozinho Cruz foi trocado pelo “prata da casa” Júnior Duarte.
O puxador, a propósito, é sobrinho do grande sambista Mauro Duarte, falecido precocemente em 1989.
Outra mudança importante é que a escola passava a ter um novo “patrono” auxiliando o presidente Olivier Vieira – mais conhecido como “Pelé”. A injeção de recursos em um grupo onde a subvenção naquela época (hoje é um pouco superior, embora insuficiente) tornava absolutamente inviável se fazer um carnaval competitivo fazia a escola ascender automaticamente ao grupo das favoritas.
Comentava-se que a entrada deste novo patrono era uma resposta aos problemas políticos enfrentados pela Viradouro, onde o então presidente Marco Lira era muito questionado por todos aqueles que o cercavam. Verdade ou não, faço o registro aqui.
Além disso, o Acesso B vinha de uma apuração tão ou mais complicada que a do Acesso A no ano anterior, onde a Unidos de Padre Miguel, que havia feito disparado o melhor desfile do grupo incrivelmente não havia conquistado a ascensão ao Grupo A, “ficando” com a terceira colocação – contei esta história aqui.
O Grupo A, que como citei anteriormente também tivera um resultado estranho, tinha uma nova entidade organizando seu desfile em substituição à Associação das Escolas de Samba do Rio de Janeiro: a Lesga – Liga das Escolas de Samba do Grupo de Acesso.
E o que tem a ver isto com o Acesso B? Tudo.
Alegando que “a crise econômica norte americana impediu as escolas de prepararem bons desfiles”, a Lesga decidiu que ninguém cairia do Acesso A naquele ano. A desculpa era uma esfarrapada cascata: na verdade, a Inocentes de Belford Roxo e a Caprichosos de Pilares, escolas do presidente e do vice da entidade estavam com a preparação muito ruim e havia o medo de que uma das duas fosse rebaixada – no final as duas ocuparam as duas últimas colocações.
Com isso, a Lesga decidiu que somente uma escola ascenderia do Acesso B – ainda então organizado pela Aescrj – para o Grupo A. Firmou-se um impasse, pois o regulamento do Grupo B previa que duas escolas subiriam – e a Riotur, órgão da prefeitura que deveria mediar a situação não conseguia fazer com que se chegasse a um acordo.
Para completar o quadro, dizia-se que a Unidos de Padre Miguel, ainda inconformada com o verdadeiro ‘assalto’ que sofrera no resultado do ano anterior – o termo parece forte, leitores, mas não há outro, porque foi caso de Polícia – estava fazendo pressão nos bastidores a respeito do resultado deste ano. Mais uma vez não pode-se afirmar peremptoriamente, mas os acontecimentos posteriores darão razão a esta tese.
A Cubango preparava-se para o carnaval a fim de poder alcançar um resultado que a devolvesse ao Grupo de Acesso A. Com o grande samba escolhido e sem grandes preocupações financeiras, a preocupação era fazer um grande trabalho tanto dentro como fora da pista de desfiles.
O Grupo de Acesso B chegou para seu desfile na noite da “Terça feira Gorda”, 24 de fevereiro, sem uma definição precisa sobre quantas escolas seriam promovidas. A Aescrj dizendo que iriam duas; a Lesga, uma, e a Riotur sem conseguir se impor como entidade reguladora, em última instância, do carnaval.
A Acadêmicos do Cubango foi a décima primeira – em um inchado grupo de catorze escolas na mesma noite – agremiação a desfilar naquela noite.
O seu início de desfile foi arrebatador: as alegorias e fantasias eram das mais luxuosas da noite e o belo samba – o melhor do grupo daquele ano, e me arriscaria a dizer que era o melhor entre todos os grupos da Sapucaí – causou frisson em uma platéia ainda bastante numerosa nas frisas e arquibancadas.
A escola passou bela, motivada e fez um desfile que a credenciava a disputar o título – junto com a Unidos de Padre Miguel e, em um degrau abaixo, Boi da Ilha e Alegria da Zona Sul.
Os dois setores finais da escola estavam inferiores aos dois primeiros – o carro que representava o cinquentenário, como o leitor pode ver na foto que disponibilizo, era bem abaixo dos demais.
O julgamento daquele grupo privilegiava os quesitos plásticos ao juntar em um único quesito Harmonia, Evolução e Conjunto. Por isso, como disse à época em listas de discussão, em que pese a Cubango ter sido a escola que mais havia me agradado, me parecia que Padre Miguel estaria em vantagem no resultado final – apesar do horroroso – e bota horroroso nisso – samba, a escola estava muito bonita plasticamente.
O leitor quer saber mesmo como foi a apuração? Como escrevi no último texto desta série, que trata do mesmo Acesso B de 2009, foi esquisito. Muito esquisito.
Em 2009 o regulamento previa que cada quesito teria cinco notas, de cinco jurados, das quais a menor e maior nota seriam descartadas para cada ítem julgado. As regras também previam que só poderia haver empate na primeira colocação, e se as duas escolas obtivessem notas válidas máximas em todos os quesitos – alcançando o total de pontos máximo possível, 240.
Adivinha o que aconteceu? Acadêmicos do Cubango e Unidos de Padre Miguel “empataram” em primeiro lugar, com… 240 pontos! Com isso as duas conquistaram o título e criaram um fato “consumado” para a Lesga: como não havia desempate, as duas teriam de subir – como efetivamente aconteceu.

Incrível, não? Que coincidência…

Mas ainda tem mais: Boi da Ilha e Alegria da Zona Sul, que seriam as ameaças às duas escolas, foram jogadas lá para baixo – a escola insulana em um incompreensível oitavo lugar, e a agremiação de Copacabana em décimo primeiro, a uma posição do que seria um inacreditável rebaixamento.
Aliás, uma curiosidade desta apuração: se todas as notas fossem válidas a Cubango ficaria apenas na terceira colocação, atrás da já citada Padre Miguel e da União do Parque Curicica.
Sendo bem sincero: parece muito difícil de acreditar que este “empate” veio naturalmente das notas dos jurados, embora não se tenha provas materiais de que houve algum tipo de ajuste no resultado. Ainda mais se tendo o histórico dos anos anteriores, com alguns resultados bastante estranhos – para se dizer o menos.
No final das contas as duas agremiações ascenderam ao Acesso A para 2010, conforme era o objetivo inicial.
Contudo, a Lesga se “vingaria”: as duas tiveram de dividir o valor da subvenção que seria destinada a uma escola (o que não foi grande problema para as agremiações, ambas com patronos endinheirados); e no resultado de 2010 a Padre Miguel foi mandada de volta para o Acesso B e a Cubango só não tomou o mesmo caminho porque a Paraíso do Tuiuti fez um desfile desastroso.
Bom, o que fica para nós sambistas é que a Acadêmicos do Cubango fez um grande desfile com um dos grandes sambas de sua história, resgatado a fim de se tornar mais conhecido pelos sambistas. Hoje,”Afoxé” é o que eu chamo de um de meus “sambas de cabeceira”, pois sempre gosto de ouvir. Ao fim e ao cabo, é isso o que realmente vale nisso tudo.
Vamos à letra, de autoria do grande Heraldo Faria, em parceria com João Belém. Abaixo o leitor pode ouvir a versão de estúdio de 2009 e também a gravada ao vivo durante o desfile.

Estúdio – CD Oficial:

Ao Vivo:

Vamos à letra:
“Afoxé” 
Abrindo o portão imaginário 
Do longínquo solo africano 
A Cubango traz para o cenário 
Afoxé, tema original 
Do reino de Oloxum 
Na festa de Domurixá 
Em homenagem a Oxun 
Deusa da nação Ijexá 
Onde a figura principal 
Era o boneco Babalotim 
Mensageiro da alegria, da força do axé 
Um ídolo menino, levado por menino em sua fé 
E assim teve origem o afoxé 
 
Afoxé lorin, é lorin 
Afoxé loriô, é loriô (BIS) 
 
Nesta festa desfilavam com riquezas 
Os soberanos orientais 
O advinho joga búzios com presteza 
Desvendando o futuro e o que ficou pra traz 
Tem as cortes dos Reis Lobossi e Obá Alaké 
Xangô em seu camelo sagrado 
Esta é a história do afoxé 
Que hoje desfila pelas ruas em rituais 
Louvando os orixás 
 
Ofi la laê, Olê loá 
Ofi la laê, Olê loá (BIS)


 

One Reply to “Samba de Terça – "Afoxé"”

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