Após um longo interregno, está de volta a coluna “Sobretudo” neste sábado, assinada pelo publicitário Affonso Romero. O tema de hoje são as denúncias contra o ex-Ministro da Casa Civil Antonio Palocci – que foi tema de post anterior e, como os leitores verão se clicarem no link, com uma opinião ligeiramente diferente.

Entretanto, vale muito a pena a leitura.

Cara de Palocci, Pinta de Palocci, Roupa de Palocci

O título da coluna de hoje, caro leitor, faz referência a um empolgante sucesso do cantor Miltinho, composição da dupla Haroldo Barbosa / Luiz Reis chamada “Palhaçada”. Os mais antigos certamente se lembrarão, e aos mais jovens apresento alguns dos versos:

“…Cara de palhaço, pinta de palhaço, roupa de palhaço
Foi este o meu amargo fim;
Cara de gaiato, pinta de gaiato, roupa de gaiato,
Foi o que eu arranjei pra mim.

Estavas roxa por um trouxa pra fazer cartaz,
Na tua lista de golpista tem um bobo a mais
Quando a chanchada deu em nada eu até gostei
E a fantasia foi aquela que esperei…”

No clima de samba de gafieira, o cantor desabafava por ter sido feito de palhaço pela mulher que amou. Pouca gente conseguiria relativizar uma situação assim a ponto de assumir que devesse ter uma parcela de culpa por se deixar ter sido feito de palhaço ou ter assumido uma “pinta de gaiato”.

O ex-Ministro Antonio Palocci Filho, cujo sobrenome de ascendência italiana remete por similaridade ao nome dado aos comediantes do picadeiro – sendo desde sempre alvo de piadas e trocadilhos infames neste sentido –  deixou-se fazer de palhaço e gaiato pela segunda vez num prazo de alguns poucos anos.

Por um lado, o currículo de Palocci como homem público chega a ser invejável. Co-fundador do PT, a partir de fins da década de 1980 foi vereador, deputado estadual, prefeito de Ribeirão Preto (uma das cidades de economia mais pujante do interior paulista) e deputado federal. Por sua atuação nesta época, recebeu prêmios e comendas de instituições como a Unicef, o Sebrae e a Câmara Brasileira do Livro (abriu 80 bibliotecas em sua cidade). Depois, coordenou a campanha vencedora de Lula pela Presidência em 2002, substituindo Celso Daniel. Repetiu a vitória coordenando a campanha de Dilma, no ano passado. Mesmo entre opositores, só recolheu elogios por sua atuação como Ministro da Fazenda no início do primeiro Governo Lula, ainda que sua formação acadêmica seja em Medicina.

Por outro lado, sua biografia está repleta de acusações de contradições ideológicas, envolvimento com corrupção e situações mal explicadas. Destaco que acusações, ainda que repetidas à exaustão, são apenas acusações. Por várias vezes, Palocci foi investigado em diversificadas esferas (PF, MP, CPIs) e sempre teve tais investigações arquivadas por falta de indícios que as fizessem ser levadas adiante.

Sobre sua inconstância ideológica, conversaremos depois. Mas sobre sua “ficha criminal”, pode-se chegar a duas conclusões cabais e uma suspeita adicional. A primeira conclusão é a de que Antonio Palocci incomoda muita gente. Considerando o ambiente que frequenta, tanto na política paulista quanto em Brasília, ainda que ele fosse culpado de todas as acusações que lhe fazem, o bombardeio constante que provoca contra si faz crer que, para além de suspeitas ou culpas, há muita gente interessada em sua derrocada. Escândalos muito maiores que os seus são abafados, enquanto suspeitas sobre ele encontram sempre repercussão.

A segunda conclusão, na verdade, é uma equação de hipóteses auto excludentes: ou Palocci é inocente de tudo que lhe imputam, ou sabe se defender muitíssimo bem em esferas diversas, muitas das quais ele não poderia, concomitantemente, ter acesso privilegiado.

Ou seja, da soma destas duas certezas, impõe-se como verdade que Palocci é exaustivamente acusado sem bases consistentes para que seja provado nada além de que ele seja indesejável ao jogo político. Daí, a suspeita inevitável: por que, então, o nariz de palhaço lhe cai tão bem às faces? Por que Palocci se deixa colocar numa posição em que ele tem “cara de palhaço, pinta de palhaço, roupa de palhaço” apesar de alegar não ser palhaço, tampouco ser provado que realmente seja?

Na primeira vez que deixou-se colocar o nariz de palhaço, Palocci ocupava o Ministério da Fazenda de Lula. Como vimos anteriormente, do ponto de vista técnico, era excelente Ministro [N.doE.: há sérias controvérsias sobre este ponto. Sua política foi importante e necessária durante algum tempo, mas a economia deslanchou mesmo após sua saída, com o uso de instrumentos de política econômica com os quais o então Ministro não concordava].

Mas esta competência tornou-o alvo preferencial de uma oposição que anunciara o final dos tempos numa possível política econômica do PT e assistia ao refinamento de um modelo que aliou com sucesso desenvolvimentismo e austeridade fiscal e monetária (coisa que tucanos e aliados sempre declararam impossível). Bem como de aliados que, por teimosia e miopia ideológicas, pretendiam um Estado mais centralizador e sindicalista.

Pipocaram acusações esparsas sobre sua atuação nos tempos de prefeito, a imprensa tratou de engrossar este caldo com a gênese da expressão “República de Ribeirão” e construímos mais um desses “escândalos” nacionais baseados em acusações vazias e disse-me-disses. Tudo seria rechaçado sem dificuldade (como realmente foi) se não tivesse entrado em cena um certo caseiro chamado Francenildo.

Não entro no mérito da culpa de Palocci ou não, nem neste nem em nenhum episódio. Não tenho novos fatos ou provas e quem os teve (Polícia Federal, Ministério Público, CPIs) sempre o inocentou ou arquivou inquéritos por falta de provas. Ainda assim, Palocci pode ser o tipo de culpado que apaga bem os rastros. Nada comprova esta ou aquela hipótese.

Entretanto, no caso do Francenildo, seria o depoimento de um homem, que afirmava ter visto Palocci reunido com outros numa determinada mansão, contra a negativa do próprio Ministro. Ora, a oposição tratou de criar um confronto entre o “homem simples e corajoso” e o “político poderoso encastelado no Planalto”. Não se tratava disso, mas de muito menos: o depoimento de um homem confrontado com o depoimento de outro. Sendo os dois não coincidentes, e sem outras evidências, isso não pode constituir prova, sendo quem fosse quaisquer dos depoentes.

Mas houve um vazamento de dados sigilosos da conta bancária do caseiro, certamente como prova de que ele tinha fundos em suas finanças pessoais muito superiores ao que se espera ter um humilde caseiro. Cabalmente, Francenildo era um laranja, alguém que recebeu dinheiro para forjar um testemunho. Isso era óbvio demais. Como também era óbvio que a grande imprensa inverteria o foco e denunciaria o vazamento das contas, não a conclusão que se pode tirar a partir dele.

Também sobre este crime Palocci foi inocentado, mas é preciso ser muito ingênuo para ignorar que foi um crime de evasão de sigilo bancário praticado por alguém que correu em socorro do Ministro, tendo tido ele ou não como mandante. Ou seja, Palocci deu a cara para que lhe colocassem o nariz de palhaço, e disso certamente ele é culpado. E caiu.

No episódio recente, suas declarações de bens à Receita Federal foram evadidas e apareceram nas páginas do jornal golpista Folha de São Paulo.

(Calma, advogados, guardem suas armas: refiro-me não à suposição tão arraigada entre pessoas inteligentes de que a Folha golpeie seguidamente a democracia brasileira, o que seria uma ilação que poderia ser vista como caluniosa. Mas sim ao fato histórico de que o grupo Folha apoiou a implantação da triste quartelada conhecida como o Golpe de 64. Portanto, posso dizer, sem risco de processo: “…a Folha, aquele jornal golpista…”. E não nego que é com prazer que o faço).

Ora, qual a repercussão que se esperava desta reportagem da Folha? Uma denúncia contra a evasão de documentos fiscais privados do cidadão Antonio Palocci Filho? Claro que não. Como sempre, a chamada grande imprensa tem dois pesos diferentes. Aos aliados, as benesses e a defesa dos direitos; aos inimigos, a sanha das palavras, caluniosas ou não.

As “provas de enriquecimento ilícito” contra Palocci saíram da própria declaração de bens dele. Seria, no mínimo, curioso e novidadeiro que um corrupto declarasse ao fisco o fruto de suas estripulias. Mais incrível ainda que, depois de passar anos em cargos públicos, Palocci tenha deixado para enriquecer através do uso de recursos ilícitos justamente no período em que esteve fora da máquina pública. Seria um caso único de corrupto à posteriori.

Seria, mas apenas se Palocci tivesse se mantido fora desta mesma máquina. Entretanto, Palocci voltou a assumir um cargo de confiança e destaque no Governo Federal no corrente ano. Portanto, depois dos fatos apurados pela imprensa. Se algo está claro neste imbróglio é que Palocci ganhou muito dinheiro enquanto estava fora do Governo, e que tanto é verdade que este dinheiro foi declarado e que há recibos sobre estes ganhos, que a única “prova” apontada contra ele é sua própria declaração de bens.

O cidadão Antonio Palocci tem todo o direito de prestar serviços de consultoria a quem quer que se disponha a pagar o alto preço cobrado e, na condição de consultor, afastado que estava da atividade de homem público, não há obrigatoriedade nenhuma de que viesse a revelar o nome de seus clientes, dizer publicamente quanto recebeu de cada um, a natureza do serviço ou o retorno que este serviço teria dado ao contratante. É uma relação privada entre empresas privadas, chega a ser imoral que alguém lhe pergunte alguma coisa sobre estes negócios.

E, no entanto, Palocci não teve a firmeza e a segurança de vir a público na primeira hora para dizer isso, para defender-se, para mostrar que ele (apesar do passado trotskista) não se encabula com o sucesso na atividade de consultoria privada. Uma atividade, diga-se, que neste ou em outros casos envolve cifras capazes de enrubescer até o mais ferrenho privatista.

O que teria Palocci a esconder? Teria sido ético vender “o mapa da mina” dos atalhos pelos corredores da burocracia de Brasília? Ou repassar informações privilegiadas sobre o Governo no qual atuou? Ou, ainda, assumir que na atividade de “consultoria” cabe um espectro de definições elásticas, tornando-a apropriada para suspeitas de lavagem de dinheiro? Nada disso é ilícito, nem inédito. Os principais economistas tucanos que desenharam e executaram o vitorioso Plano Real vivem até hoje de dar consultorias, e quase todos enriqueceram nisso.

Lula e Fernando Henrique, ex-Presidentes, mantém suas pretensiosas fundações e seu confortável padrão de vida com dinheiro recolhido em palestras e afins. Ex-candidatos, atualmente desempregados, como José Serra, dão lá o seu jeitinho, fazem consultorias e palestras e seguem na ativa. Ninguém questiona este direito, nem faz as contas de quanto cada um enriqueceu fora do poder.

Mas Palocci tem o mau hábito político de fazer inimigos tanto entre opositores quanto entre supostos aliados. Santo ou demônio, é alvo preferencial e enrolou-se pela segunda vez na mesma teia que lhe armaram. No lugar que ocupava recentemente, o de coordenador político do Governo, é prova de incapacidade crônica não conseguir costurar uma rede de apoio nem para si próprio.

Conte a estória que queira contar, parece faltar-lhe convicção. Enquanto aumentava a temperatura de sua fritura, Palocci correu ao camarim, escondeu-se dos holofotes do picadeiro, mas vestiu cada peça de roupa de palhaço que lhe impunham. Por fim, apareceu com pinta de palhaço, cara de palhaço. E caiu novamente, para gargalhadas da plateia.