Nesta quarta feira em que respiro os ares do Nordeste- ok, melhor dizer que são os “ares condicionados” de uma sala de reunião, mas ainda assim no Nordeste – a coluna “História & Outros Assuntos”, assinada pelo Mestre em História Fabrício Gomes, conta um pouco da origem de uma tradição brasileiríssima e, especialmente, nordestina: as festas juninas.
São João: a mais brasileira das festas
Antes de iniciar mais um artigo neste Ouro de Tolo, gostaria de mais uma vez parabenizar o idealizador e gestor do blog pela iniciativa de manter esse importante recurso de informação e cultura. Há dois anos, quando fui convidado para escrever neste espaço, não imaginava o tamanho do sucesso que este empreendedorismo seria capaz de ter. 
O blog cresceu e se transformou num veículo de comunicação, com variadas opiniões sobre os mais diversos assuntos. Democracia é isso aí: permitir que todos se manifestem e através do debate civilizado, proporcionar que novos temas sejam levantados, que novas idéias e aprendizados aconteçam. Parabéns ao Ouro de Tolo e ao Pedro Migão, seu criador.
Aproveitando que neste mês de junho irão ocorrer as tradicionais festas juninas nos quatro cantos do nosso país, que tal entendermos o surgimento dessa festividade e mais ainda: entender como ela veio parar no Brasil, se adaptar aos nossos costumes e se tornar uma das mais brasileiras das festas?
“Acende a fogueira, João nasceu!”
Para quem pensa que essa é a ordem pra começar uma festa junina, trata-se apenas do comunicado feito por Isabel, na ocasião que seu filho João nasceu, em 24 de junho. Essa foi a forma que Isabel encontrou para avisar sua prima, Maria, do nascimento de seu filho: o fogo. Maria que, por sinal, também estava grávida e que, em seis meses, também daria a luz a um menino. Mas aí já é outra história.
João era primo de Jesus e o hábito de batizar as pessoas nas águas do Rio Jordão adicionou a ele o nome “Batista”. João Batista.
João Batista ganhou reverências no catolicismo, tanto que hoje, é o único santo a ser lembrado não por sua morte, mas por seu nascimento, compartilhando com Jesus essa primazia. Tanto que o calendário cristão é demarcado justamente pelo nascimento dos dois, exatamente no intervalo de seis meses: Jesus (dezembro-junho) e João Batista (junho-dezembro). 
Mas havia mais explicações por trás dessa divisão. A Igreja vinha se esforçando desde o século XIV para doutrinar a população da Europa Ocidental, ainda muito acostumada a rituais pré-cristãos, como os cultos solares e lunares associados à vida agrícola. Na Europa, a diferença entre as estações é marcada por um contraponto: o solstício de verão – dia com maior duração da luminosidade do sol (21 de junho) –, e seis meses depois, o solstício de inverno – dia menos beneficiado pela luz solar (21 de dezembro). 
Entre os mais importantes cultos solares, registrava-se por todo o continente a queima noturna de fogueiras no solstício de verão, para festejar a vitória da luz e do calor sobre a escuridão e o frio. A Igreja Católica adotou esses marcos cósmicos, atribuindo aos primos João e Jesus dois momentos de honra para seus nascimentos: o primeiro, perto do solstício de verão; o segundo, perto do solstício de inverno. Era uma maneira de dar novo significado às práticas pagãs relativas ao fogo.
Por outro lado, havia resistência às fogueiras, que representavam a perdição, além das festas serem consideradas como libertinagem sexual, sendo perseguidas pelos monges e bispos que desejavam acabar com os ritos pré-cristãos. Estavam todos diante de um desafio: como transpor o simbolismo gerado pelo fogo e sua representatividade carnal?
Foi no Concílio de Trento (1545-1563) que a Igreja chegou a uma solução: as fogueiras do solstício passaram a ser admitidas como “fogos eclesiásticos”. Para isso, as superstições foram eliminadas, e a fogueira, antes a encarnação do pecado, passou a ser sinônimo de purificação – e justamente por isso passou a ser usada nos rituais da inquisição: queimava-se o pecador, acreditando que com isso, ele seria libertado do pecado e das impurezas da alma.
Entretanto, a população européia não associava a festa do fogo e da luz a São João Batista. Mas na América Portuguesa, essa associação vingou, graças ao trabalho dos jesuítas.
Em 1584, Fernão Cardim, em “O Tradado da Gente e da Terra do Brasil”, escreveu que 
“…Três festas celebram estes índios com grande alegria, aplauso e gosto particular. A primeira é as fogueiras de São João, porque suas aldeias ardem em fogos, e para saltarem as fogueiras são os estorva a roupa, ainda que algumas vezes chamusquem o couro”.
Os nativos ficavam em alvoroço com as fogueiras, as luzes e os fogos de artifício. E com isso, o fogo aproximava os índios aos religiosos.
Segundo Frei Vicente de Salvador, em sua “História do Brasil”, escrita em 1627,
“… (os índios) só acodem com muita vontade nas festas em que há alguma cerimônia, porque são mui amigos de novidades, como no dia de São João Batista, por causa das fogueiras e capelas”.
O francês Jean de Léry conheceu os tupinambás no século XVI e acompanhou uma festa na aldeia em que usavam
“uma vara de madeira (…) em cuja extremidade ardia um chumaço de petum (tabaco) e voltavam-na acesa para todos os lados soprando a fumaça contra os selvagens (os caraíbas)”
Nas cidades, a festa de São João atuou como ligação dos principais eixos da vida social: as ruas e as igrejas. Nos dias santos, as cidades se iluminavam e o chão das ruas era decorado. Todos iam às igrejas, para verem e serem vistos, e para conversar. A festa era palco de tensões políticas e sociais. Adivinhações, batismos e casamentos de fogueira desagradavam às autoridades. 
No final do século XVII, o arcebispo da Bahia editou uma versão local das decisões do Concílio de Trento na qual recomendava “aos padres e outras pessoas que cuidam das igrejas” que “elas sejam por ocasião destas noites bem iluminadas, e que eles sejam vigilantes para que no seu interior não haja motivo de escândalo”. Por precaução, as rezas, missas e vigílias de velórios foram suspensas à noite. Tudo passou a ser estritamente vigiado de modo a não permitir excessos.
Os fogos de artifício e as fogueiras estavam proibidos desde 1641, em ordem que seria constantemente renovada, atravessando até mesmo o século XX. E constantemente desrespeitada. Mas volta e meia era tudo desrespeitado.
Em 1769, o Santo Ofício condenou uma mulher à morte por predizer casamentos, em noite de São João, só por olhar contornos do desenho feito pela clara de um ovo quebrado, dentro do copo.
Em 1808, com a chegada da Família Real portuguesa, a festa ganhou novos contornos e um elemento adicional foi trazido: a dança de quadrilha. A Corte trouxe de Portugal hábitos festivos, danças e celebrações urbanas e religiosas. A quadrilha junina foi institucionalizada.
Mas quem pensa que essa se restringia apenas ao mês de junho, está enganado. A quadrilha animava também os carnavais e era apreciada nos círculos sociais da monarquia. D.Pedro II era um habituée dessa dança.
Com a Proclamação da República em 1889, a quadrilha deixou de ser vista nos centros urbanos. E com o crescimento da industrialização e das migrações em massa do interior, nos anos 1950 e 1960, essa dança festiva retornou às cidades. 
Mas vejam só que ironia do destino: ao invés dos nobres de outrora, agora eram os matutos e os caipiras que dançavam! Novos atores sociais povoariam daquela época em diante, o folclore popular da festa. O símbolo do homem do interior, com seus traços, suas roupas e seus trejeitos, assumiu lugar central na festa de São João, mas rotulada pelo olhar das cidades, seguindo uma tradição que vem desde o Jeca Tatu de Monteiro Lobato, esboçada no livro Urupês (1918) e consolidada na propaganda do Biotônico Fontoura. 
Outros personagens reforçariam essa imagem, como o Jeca Tatu dos filmes de Mazzaropi e o Chico Bento, criado em 1961 pelo cartunista Maurício de Souza. Caracterizado com traços positivos de ingenuidade e o bom coração, o homem do interior é considerado “mais puro” que o da capital. Ele representa a nostalgia e a idealização do passado dos migrantes que hoje vivem nas cidades. 
Entretanto, a homenagem não chega a alterar sua posição na estrutura social: depois da festa, ninguém deseja assumir aquela caricatura. É como se a idolatria da caricatura durasse apenas o período junino: no mês de junho, é “da moda” se vestir de caipira, mas passados os trinta dias, reassume a figura urbana e o caipira é novamente confundido com o “atraso”.
Bibliografia recomendada:
CARDIM, Fernão. Tratados da Gente e da Terra do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/ Edusp, 1980.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1988.
CHANCA, Luciana. A festa do interior. Natal: EDUFRN, 2006.
_______________. “Pula a fogueira, João!”. Revista de História da Biblioteca Nacional. 1.06.2009.
DEL PRIORE, Mary. Festas e utopias no Brasil Colonial. São Paulo: Brasiliense, 1994.
MELO MORAES FILHO, Alexandre José de. Festas e Tradições Populares no Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1979.