Mais um domingo, pós carnaval, e mais uma coluna “Sobretudo”, de autoria do publicitário Affonso Romero.

Rodolfo e o Antimomo em Pinheiros

Dizem que o tango nasceu em San Telmo, antigo bairro boêmio de Buenos Aires. Os uruguaios, provocativos, dizem que o tango nasceu na outra margem do Rio da Prata e só se tornou argentino aos olhos do mundo porque foram os portenhos que deram fama à música dançada nos cabarés portuários por casais masculinos de marujos atracados em ambas os lados do grande rio.

Seja como for, além da versão uruguaia – em que até Gardel teria nascido em Montevideo – há umas trezentas lendas argentinas para a gênese do tango. Muitas, provavelmente a maioria delas, apontam para o bairro de San Telmo e suas vielas, seu casario baixo e sua iluminação fugidia.

San Telmo tem a aparência pouco mudada desde então. Mesmo o colorido turístico dos domingos de sol na feirinha de antiguidades da Plaza Dorego mal esconde a história sépia que escorre dos becos do bairro.

Sabe o que é velho tango, amigo? O tango, aquele que está presente nos gastos ecos que cruzaram as décadas desde antes de Gardel, desde muito antes de ter atravessado o Atlântico até Paris e voltar triunfante a Baires; o tango sem letra, pura melodia tocada por poucos instrumentos rústicos; a cançoneta francesa do bandoneón criollo que se encontrou com o espírito marcial e heróico dos pampas, cruzando com o trágico, o melancólico e o fatídico hispânico; aquele que se encantou com as redondilhas e afrescos da herança moura e traduziu em si a alma de uma cidade, tem seu retrato perfeito nas sombras de San Telmo.

E digo mais: o velho tango está impresso na poeira que se esconde entre os paralelepípedos das estreitas e abandonadas ruas que cruzam a Calle Defensa. Enquanto isso, Piazzolla e o neo-tango levitam na fumaça dos carros que passam céleres pela Nove de Julio, a avenida superlativa, símbolo de uma Argentina que nem chegou a ser, e que rasgou em dois o antigo San Telmo, cruzando o Centro e arrastando até o Retiro o pó do casario decadente da primeira metade do século XX.

Esta é a diferença do antigo para o novo em Buenos Aires, onde o novo também já virou passado e o pós-moderno brota nos paredões de vidro da novíssima arquitetura de Puerto Madero ao som do eletro-tango.

A Argentina se reinventa há tempos, com maior ou menor fracasso, aceitando-se mal entre o antigo, o novo e o novíssimo e, no fim, ímpar e única aos olhos atentos de um forasteiro. Talvez mesmo por isso, foram sempre os estrangeiros que redescobriram a cultura portenha e a devolveram aos argentinos em forma de algo aceitável e referendado pelo “bom gosto” alheio. Conseguem ser, os argentinos, dubiamente, mais atávicos, orgulhosos, megalômanos e… colonizados do que nós, brasileiros. E também donos, apesar de tudo (ou, quem sabe, por conta disso) de uma cultura forte, farta, única, bela e surpreendente. Como um tango: mais que um estilo musical, um estilo de vida, um sentimento, uma maneira particular de ser.

Buenos Aires também é como um tango. Além das relações óbvias, como a melancolia latente até no sorriso e no afeto, Baires é hoje multifacetada, ainda que singular, como igualmente o tango enveredou por tantos caminhos, e continua a ser tango.

Pensava nisso tudo na quinta-feita, antevéspera de Carnaval. Em São Paulo, precisamente, véspera, porque aqui as Escolas de Samba chegaram depois, mas desfilam antes. Antimomo que sou, gosto dos dias em casa, do descanso, e sou incapaz de me imaginar de dedinhos levantados ao céu, pulando, sambando ou desfilando. Já contei isso aqui, e não vou estragar seu espírito carnavalesco com argumentos tão pessoais, afinal.

Mas permita-me contar que, bem na véspera do carnaval, pensava em tango, ouvia tango, sonhava acordado tangos e mais tangos, na companhia da minha esposa, de uma grande platéia brasileira, uma notável orquestra brasileira e um de meus músicos favoritos, um ídolo, um sujeito capaz de me revirar por dentro de emoção com sua arte: o bandeolonista Rodolfo Mederos.

O concerto deu-se no teatro Paulo Autran, do SESC Pinheiros. A Orquestra Municipal de São Paulo, sob regência do maestro Marcelo Ghelfi, recebeu o músico argentino para homenagear os 90 anos de nascimento de Astor Piazzolla com um programa inteiramente dedicado ao compositor e músico falecido em 1992.

Foi Piazzolla quem primeiro quebrou com o tradicionalismo do tango. Músico prodígio, estudou na Europa e, na volta, adicionou elementos da música erudita e do jazz ao seu trabalho, recebendo uma saraivada de críticas em sua terra, sendo popular demais para ser aceito entre os acadêmicos e, ao mesmo tempo, sofisticado demais para ser aceito nas rádios e casas noturnas. Sem espaço, refugiou-se novamente no exterior, de onde seu retumbante sucesso repercutiu na cultura argentina. De certa forma, como já acontecera antes com Gardel e o tango-canção.

Mas Piazzolla foi mais longe na inovação e eu me permitiria a ousadia de dizer que a aceitação do tango como grande música, entre audiófilos e musicistas de todo o mundo, se dá pelas suas mãos mais do que pela colaboração de qualquer outro tangueiro, tradicional ou não.

Além do mais, numa visão muito pessoal, Adiós Nonino é a partitura mais emocionante jamais escrita, e o que tem me ajudado a me curar da estranha mania de chorar a cada vez que eu a ouço – não importando a ocasião ou lugar – é a renovação emocional que sinto a cada vez que “descubro” (na verdade, passo a dar atenção especial, sou tocado) uma “nova” canção do Piazzolla. Já passei pelas fases do Invierno Porteno, da Balada do Loco e, agora, estou parado em Oblivion. Cada uma dessas músicas, em determinada fase, ocupa o lugar de “som-que-faz-o-Affonso-chorar-à-tôa-sem-aparente-razão” em substituição provisória a Nonino.

Rodolfo Mederos tocou com Piazzolla e cruzou com diversas sonoridades do tango até voltar às origens do ritmo na fase atual de sua carreira. É o maior músico vivo do tango. Curiosamente, não é um nome conhecido por qualquer popular nas ruas da Argentina. O tango, tão recusado pela elite portenha num primeiro momento, a música portuária que as boas famílias fingiam não ouvir, é hoje uma música rara nas rádios e televisões, mas aclamada e louvada nas salas de concerto. Vá entender…

Mederos é uma espécie de símbolo, um último bastião do tango, e tem dedicado grande parte de seu tempo à formação de novas gerações de músicos, na gestação de novas orquestras tradicionais e no estudo e divulgação da música portenha. Para quem o ouve, principalmente em apresentações ao vivo, ele é uma estrela que pulsa emoção, lirismo e perfeição técnica. Eu poderia dizer por mim mesmo, mas digo pela expressão estampada nos olhos das platéias: Rodolfo Mederos arrebata os corações com sua música.

Isso sem falar em sua gentileza, sua elegância e na graça de suas histórias e gags pessoais, como a aversão a beber água (“isso oxida navios, o que fará com meu estômago”), a versão para o que sua mãe falou dos novos arranjos para velhos tangos (“como asi, estaban desarranglados?”) ou sua motivação para dedicar-se ao bandoneón desde os 5 anos de idade (“não foram os arpejos, escalas e exercícios que me trouxeram até aqui, foram aqueles tangos que eu ouvia no rádio, e que tentava reproduzir de uma forma selvagem”).

Aos 70 anos de idade (às vésperas de completar 71), Mederos tem o mesmo brilho nos olhos que devia ter aos 5 e, por isso mesmo, faz brilhar os corações daqueles que o escutam. Sua música é visual, não há como não ver nele cada paisagem de Buenos Aires. E foi em meio disso tudo que eu me peguei pensando em tudo aquilo que escrevi nos primeiros parágrafos desta coluna. Não porque me fugisse a atenção, mas porque cada nota de cada obra me mergulhava mais e mais nestes sentimentos caleidoscópicos que só mais tarde, na volta para casa, eu pude racionalizar.

O programa teve Fuga y Misterio, Oblivion, Luz y Sombra, Milonga del Angel, Concerto Aconcagua para Bandoneon e Orquestra (inteiro, em 3 movimentos), Adios Nonino e Revirado (duo de piano e bandoneon nestas duas últimas). No bis, Por Uma Cabeza (a única da noite não composta por Piazzolla) e, mais uma vez, Oblivion e o terceiro movimento do Aconcagua. A noite não acabou sem uma terceira interpretação de Oblivion.

No breve intervalo entre a primeira parte da apresentação e o bis, Marcelo Ghelfi se viu obrigado a explicar a atual situação da Orquestra Municipal de São Paulo, da qual ele se despedia naquela noite. Uma calamidade regada a descaso com a cultura, incompetência administrativa, falta de visão artística, politicagem e desrespeito aos músicos, ao público, aos contribuintes e à história da Orquestra e do Teatro Municipal, a casa que a hospeda. Seria uma nota triste, não fosse também a raríssima oportunidade de ouvir um maestro, em cena aberta, na corajosa defesa da cultura e dos músicos sob seu comando. Bravo, Marcelo!

Para coroar a grande noite, Mederos autografou no foyer do teatro os CDs que estavam ali à venda. Comprei “Eterno Buenos Aires” (com conjunto tradicional, de 1999) e “Tangos” (duo de bandoneon com o violão de Nicolas Brizuela, de 2000) que eu voltei ouvindo no carro, e é excelente.

Carnaval? Bem, o mesmo SESC Pinheiros promoveu uma série de shows de jazz durante estes dias. Mas eu preferi descansar em minha cama. Quem sabe, escrever outras colunas, para ter uma sobra e deixar menos furos com o Migão e com o amigo leitor [N.doE.: continuo esperando]. E voltei à toda na quinta-feira “de cinzas”, que é o primeiro dia de uma série de quatro shows até hoje para os quais eu já tinha ingressos, e que devo comentar aqui logo em seguida. Até lá.