Hoje o tema é o novo filme do cineasta Clint Eastwood. Como sempre, texto de autoria do cineasta, crítico, professor de cinema e torcedor da Acadêmicos de Santa Cruz Marcelo Ikeda.
Além da Vida
de Clint Eastwood
“Há algo bonito sob a superfície do projeto deste irregular Além da Vida. É curioso como Clint Eastwood faz, em seguida, dois filmes mais brasileiros que os feitos no Brasil (ou ainda, filmes sobre o brasil): se Invictus era a melhor análise já feita sobre o Governo Lula, Além da Vida é um filme não apenas sobre o movimento do espiritualismo no cinema brasileiro mas também sobre a insistência de alguns diretores na narrativa paralela. Além da Vida é – claramente, notadamente – um filme de concessões: repleto de merchandisings (google, apple, serviços de correio, etc.) e com concessões ao espetáculo (a célere cena do tsunami, a produção executiva de Steven Spielberg). Mas para além de tudo isso, o filme é, acima de tudo, um projeto de continuidade na filmografia desse mestre do cinema americano atual (numa certa medida, Além da Vida pode ser comparado com o novo filme do Woody Allen, mas não vou entrar nisso aqui).
Mas como estava dizendo, e quero ir direto ao assunto, há algo bonito sob a superfície do projeto deste irregular Além da Vida. É muito curioso perceber que esse carrancudo diretor e ator de westerns tem se tornado cada vez mais um romântico diretor de melodramas, ainda que seus filmes tenham a austeridade e a secura de um certo cinema americano. Há um comentário sobre o papel de Eastwood quando Matt Damon tem uma admiração por Charles Dickens. Dickens, escritor popular, pouco avesso a arroubos de inovação de linguagem, mas um grande observador de sua época e fino prosador, pode ser visto como um dos ícones de uma linguagem clássica – há um belo texto do Eisenstein sobre isso, chamado “Dickens, Griffith e nós”.
Esse “pára-institucional do espiritismo” se transforma nas mãos de Eastwood num filme de continuidade, com algumas cenas memoráveis. Uma delas é quando, de olhos fechados, Dammon conhece melhor Bryce Dallas Howard, combinando confidências, cegueira e paladar. Ver além, ou ainda, não querer ver – um belo tema para um filme. Há um campo-contracampo estranho, progressivamente cada vez mais fechado, com diversas quebras de eixo.
Mas estou me perdendo um pouco. O que quero dizer é que, para além dos itens de institucional do espiritismo, do veículo para alguns atores, do cinema-espetáculo, do mershandising discarado, Além da Vida dá continudade ao cinema recente de Clint Eastwood porque é essencialmente um filme sobre a importância do encontro. O encontro: este também era o grande tema de Invictus. As melhores cenas de Invictus não são as do jogo (o espectáculo) mas sim quando os personagens se encontram (Morgan Freeman se encontrando com sua equipe e os demais funcionários logo após assume o cargo, e especialmente o primeiro encontro entre Dammon e Freeman, filmado num elegante campo-contracampo de tirar o fôlego). O que mais o cinema pode querer filmar, “dickenseanamente”, a não ser duas pessoas que se encontram?
Com oitenta anos completados, mais perto da morte do que da vida, Eastwood se interessa muito pouco pelo que há “além da vida”, e sim no que há agora, “nesta vida”. Como Manoel de Oliveira, Eastwood olha para o futuro, muito mais do que para o passado. Um dom ou uma maldição? O que há de belo em Além da Vida é como Eastwood se interessa muito mais pela vida e pelo futuro do que pela morte e pelo passado. Esse projeto afirmativo é apresentado aqui num filme com poucas possibilidades, muito mais irregular que seus filmes anteriores, mas a sobriedade das opções de Eastwood, vide o belo final em que há um flashforward (ou apenas um desejo) –, o que me lembrou de leve do final de Não Amarás – garante o interesse de Hereafter.
Outra forma de ver a filmografia de Eastwood é pensar como ele vem deixando de lado ser um cineasta do corpo para se tornar um músico.”