Mais um sábado, e mais uma edição da coluna “Sobretudo”, assinada pelo publicitário Affonso Romero. O tema de hoje é uma argumentação insofismável a favor do Programa Bolsa Família, que funciona como um notável indutor de crescimento e de formação de uma mercado interno brasileiro, além de copiado por diversos outros países.

Faço um adendo ao indispensável texto: para ser beneficiário do programa, é necessário que os filhos estejam matriculados na escola. Ou seja, “dá o peixe”, mas ensina a pescar. Também aproveito para fazer uma elegia à memória do professor Antonio Maria da Silveira, criador do programa “Renda Mínima”, depois encampado pelo Senador Eduardo Suplicy; que pode ser encarado como a origem do Bolsa Família.

Capital de Giro e a importância do Bolsa Família

Há poucos dias, recebi da minha esposa um desses emails interessantes que circulam por aí. É uma redução meio simplória do fenômeno econômico, mas eu achei engraçada e ilustrativa. Fala sobre o que seria “capital de giro”. Reproduzo abaixo:

Mês de agosto, às margens do Mar Negro. Chovia muito e o vilarejo estava totalmente abandonado. Eram tempos muito difíceis e todos tinham dívidas e viviam de empréstimos.

De repente, chega ao vilarejo um turista muito rico. Entra no único hotel do vilarejo, coloca sobre o balcão uma nota de 100 euros e sobe as escadas para escolher um quarto. O dono do hotel pega os 100 euros e corre para pagar sua dívida com o açougueiro. O açougueiro pega o dinheiro e corre para pagar o criador de gado. O criador pega o dinheiro e corre para pagar a prostituta do vilarejo, que por conta da crise, trabalhou fiado. A prostituta corre para o hotel e paga o dono pelo quarto que alugou para atender seus clientes.

Nesse instante, o turista desce as escadas após examinar os quartos, pega o dinheiro de volta, diz que não gostou de nenhum dos quartos e abandona o vilarejo. Ninguém lucrou absolutamente nada, mas toda a aldeia vive hoje sem dívidas, otimista por um futuro melhor.’

Minha esposa tem milhões de qualidades, além de ser a mulher que eu amo. Mas nada é perfeito, e ela também é uma tucana de plumagem discreta, mas tucana. O email me motivou a enviá-la uma resposta, que também divido com o amigo leitor. É a razão da coluna de hoje:

“Este é um belo exemplo do que acontece nas cidadezinhas do interior do Nordeste (por exemplo) quando chega o carro-forte com o dinheiro da bolsa-família.

Numa comunidade carente, quando se injeta uma quantia mínima de dinheiro, a economia local recomeça a rodar. Isso cria um ciclo virtuoso centenas de vezes maior do que o dinheiro aplicado inicialmente, principalmente porque devolve autoestima àquela comunidade.

Por exemplo, um pequeno comerciante do interior (ou do bairro de periferia, ou da favela) prospera em seu negócio a partir da bolsa-família-dos-outros, porque passa a ter consumidores, ainda que de serviços e produtos os mais básicos. Ele cresce e passa a dar mais empregos, investe no mobiliário da loja. Isso incrementa os negócios do marceneiro, que compra uma serra nova. Isso incrementa os negócios de uma indústria em outro Estado, que vende mais serras (serra com letra minúscula, bem entendido) e pode construir um novo galpão. A obra dará lucro a uma empreiteira média, isso gerará empregos e a empreiteira terá que contratar um advogado e um contador.

O mercado para profissionais liberais cresce, demandando novas vagas em universidades, interessadas em aproveitar este ciclo econômico formando mais profissionais. Os professores têm mais empregos, salários maiores e passam a pagar mais impostos, porque mudaram de faixa no Imposto de Renda. Estes impostos possibilitam a oferta de mais bolsas-família. E o ciclo aumenta enquanto o nível de formação e empregabilidade real crescem também.

Nenhuma dessas pessoas citadas foi beneficiária direta do bolsa-família, mas “dar dinheiro público a meia dúzia de vagabundos” foi um dos fatores que mais fortemente contribuíram para o Brasil ter colocado 20 milhões de novas pessoas na classe média enquanto o resto do mundo queimava bilhões para salvar seus bancos e financeiras. E foi esta nova classe média que nos salvou da crise mundial de 2008.

Como assim, os beneficiários diretos do bolsa-família viraram classe média? Não, mas muitos não-beneficiários conseguiram empregos, estudo e promoções por conta do ciclo virtuoso iniciado nos programas sociais.

Sabe o que isso tem de socialista? Nada. Esta foi a forma pela qual os Estados Unidos saíram do buraco da grande recessão que se seguiu à Crise da Bolsa de 1929, as bases da política do New Deal.

Havia um outro caminho, o da injeção do dinheiro público na economia através de grandes empresas e projetos. Era (e ainda é, em alguns casos) o bolsa-multinacional, o bolsa-projeto-megalômano, o bolsa-banco-quebrado, o bolsa-empresa-fantasma, o bolsa-férias-na-Europa. Por exemplo, o FAT (Fundo de Apoio ao Trabalhador) é um programa iniciado pelo então Ministro José Serra e divulgado no Programa Eleitoral dele. Atrás de uma boa intenção de criar um fundo de investimentos para projetos geradores de emprego, confisca dinheiro da massa de salários e financia, entre outras coisas, indústrias de capital massivo, automatizadas, que implicam em baixa relação de utilização de mão de obra por capital aplicado. Ou seja, o Fundo do Trabalhador é investido em automação, sob o bom argumento de que grandes parques industriais automatizados têm maior rendimento econômico, não é o máximo? Enquanto isso, o desemprego estrutural se multiplica.

A forma alternativa é quebrar este bola de investimento financiando pequenos projetos locais, iniciativas comunitárias, pequenos agricultores, reaparelhamento e capital de giro para o pequeno comércio. Isso gera poucos empregos para cada projeto, mas pode gerar milhões de projetos e, portanto, gerar milhões de novos empregos.

É mais fácil, vistoso e impactante para os governos mostrar investimentos em mega-projetos, como uma fábrica de automóveis, ou uma usina siderúrgica. Numa só tacada, 1000 ou 2000 empregos diretos, mais os milhares de indiretos. Dá mais trabalho analisar e liberar dinheiro para 2000 projetos, cada um gerando um único emprego. Só que o custo final é bem menor.

Mais fácil ainda colocar dinheiro na ponta final do consumo porque, sem necessidade de acompanhamento e medição, sem ter que pagar salário a centenas de advocados e tecnocratas, se coloca a economia para rodar da mesmíssima forma.

Dá a estranha sensação na classe média já estabelecida e nos ricos (se bem que rico não paga imposto no Brasil) de que o seu dinheirinho confiscado na imensa carga tributária brasileira é colocado de graça no colinho de umas pessoas que não tiveram compromisso com o estudo e o trabalho, que mesmo assim fizeram dezenas de filhos e que isso é simplesmente injusto. Pode-se discutir se é injusto ou não (e eu acho que não é), mas não se pode discutir a eficácia econômica disso. A economia está num ciclo vurtuoso que ocorre “de baixo para cima” nos estratos sociais, e isso se inicia com programas de transferência de renda, exatamente como no New Deal americano.

Mas se a sensação de injustiça e estranhamento permanece, lembra-se de que o confisco que é a carga tributária brasileira não se iniciou para subsidiar programas sociais. Historicamente, o imposto no Brasil financia a própria máquina pública, além de projetos megalômanos e bancos falidos.

Particularmente, eu prefiro ver o dinheiro do meu imposto nas mãos de quem “vai gastar tudo em cachaça”, porque esta cachaça é nacional, o lucro da cachaça vai gerar empregos num alambique nacional, vai ser comprada na vendinha da esquina que no máximo pertence a um português, mas um português que mora aqui e vai gastar aqui. Melhor assim do que o mesmo dinheiro ser usado para salvar o banco de um banquiro que já provou que não sabe administrar o seu próprio negócio e que, uma vez que sua empresa esteja recuperada, vai vender tudo para um banco transnacional e gastar o lucro da operação tomando champgne francês num cassino em Monte Carlo.

No fundo, no fundo, eleição é isso: muita baixaria para o dinheiro do nosso imposto ser disputado entre programas sociais e banqueiros falidos.”