Agora com novo nome, a coluna “História & Outros Assuntos” – ex “Cacique de Ramos” – do historiador e publicitário Fabrício Gomes, traz um assunto muito evocado e pouco conhecido: o peronismo argentino.
Boa leitura.
Entendendo o Peronismo… Fenômeno social ou movimento político? 1943-1946.

I. O peronismo é uma forma de autoritarismo baseado no poder das massas […]; II. Ideologicamente, o peronismo é inimigo do liberalismo; III. Seus dois braços ao a justiça social (Perón) e a assistência social (Eva) e com eles pretende unir o povo num abraço de justiça e amor; IV. O peronismo não teria existido sem o apoio do Exército, da Igreja e da classe operária, e tampouco sem o desamparo das massas populares argentinas; V. Assemelha-se ao fascismo e mostra semelhanças com o bonapartismo; VI. o proletariado adscrito ao peronismo não é anti-democrático, mas se mantém numa atitude de profunda passividade, feita de nostalgia e espera, acostumado a receber tudo do poder, sem esforço e sem futuro (p. 155-158).1

Poucas palavras permitem referências a uma expressão tão ampla de sentidos quanto o peronismo. Durante certo tempo, explicar o peronismo foi sinônimo de explicar a Argentina.

Uma forma simplista pode afirmar que se tratou de um movimento político nascido em meados da década de 1940, personificado na figura do coronel Juan Domingo Perón, iniciado em 1945 e que culminou em 1955, com a queda do grande líder: os dez anos de seus dois primeiros governos.

Identidade política daqueles que, desde aquela época, invocaram sua figura e a recordação de seus governos para legitimar diferentes posições no campo da política, o adjetivo peronista serviu – e serve, até hoje – para descrever um tipo de governo, uma doutrina política… uma forma de discurso.

Liderança revolucionária, experiência nacional popular, ditadura bonapartista, populismo autoritário ou mera necessidade histórica? Versão argentina do fascismo italiano? Mais do que expressões utilizadas para descrever o que era julgado como uma proposta positiva ou negativa de constituir uma nação, o peronismo foi, ao mesmo tempo, um conceito perverso e progressista de incorporação de novos atores sociais numa Argentina até então segmentada e elitizada, sem espaço para as massas. O peronismo foi também o partido político criado por Perón logo após sua vitória nas eleições de 1946 e que sobrevive até hoje com outras denominações.

Para a esquerda liberal, os peronistas eram nazistas totalitários. Já a esquerda anti-liberal e marxista, associada a grupos trotskistas, reprovava no peronismo a figura de seu líder, vendo nele uma forma bastante rudimentar – embora eficaz – de luta contra o imperialismo; cujo maior defeito era justamente ter sido pouco radical. Para os setores socialmente conservadores, havia ainda duas definições, uma simplista e outra mais complexa. A primeira não enxergava no peronismo senão um pesadelo, um fenômeno de psicologia patológica, diagnosticável como doença. Uma variação complexa da versão conservadora reconhecia, por outro lado, que o peronismo tinha alcançado profunda repercussão na opinião popular; mas fizera-o, por venalidade ou pelo apelo exclusivo aos mais baixos instintos do povo. Por conseguinte, o peronismo não seria nada de bom ou ruim, nada de positivo ou negativo, mas sim o fruto da ignorância, equivalente à superstição.(2)

Não cabe aqui polemizar sobre a natureza deste fenômeno cultural e social, que resultou de ações de agentes sociais distintos – contribuintes para a construção do fenômeno.

Interpretação da realidade ou a própria realidade interpretada, o peronismo nasceu após um golpe de Estado, em 4 de junho de 1943. À medida que o então coronel Juan Perón era naturalmente identificado como o homem forte do regime militar, sua figura tornava-se alvo de uma oposição que agrupava em torno de si a maior parte dos partidos políticos e das elites sócio-econômicas que o combatiam; tanto na esfera da política social e trabalhista quanto na política exterior.

Perón tinha o apoio de grupos de trabalhadores que reconheciam o caráter social de seu plano de reformas, de dirigentes sindicais que procuravam ganhar espaço dentro do campo sindical e também de grupos de intelectuais e políticos nacionalistas, que desejavam reforçar a posição de neutralidade argentina na Segunda Guerra Mundial contra a atitude favorável aos aliados de seus inimigos liberais.

Vitorioso nas eleições de 1946, promoveu a fusão dos agrupamentos políticos que o haviam apoiado num novo partido, posteriormente denominado Partido Peronista. A criação desse partido sintetizou o momento em que o peronismo se ressignificava, ganhando novos contornos. O que antes era apenas debatido através de mobilizações nas ruas, virou uma referência partidária, sucedida por uma política promovida pelo Estado – a doutrina peronista.

“O peronismo procurou apresentar-se como um movimento político baseado numa radical descontinuidade com relação às tradições políticas anteriores. Não era liderado por um político, mas por um militar e reivindicava como principal fonte de legitimação uma força externa ao sistema de partidos: a mobilização das ruas, a relação direta do líder com as massas. O peronismo empenhava-se em transformar o “novo” em seu principal capital político, e o sucesso na consagração dessa representação sobre sua própria constituição foi, sem duvida, uma das mais profundas e duradouras vitorias.”(3)

No âmbito das massas, os agentes sociais não eram apenas os grupos de militantes empenhados em ganhar reconhecimento social ou espaços no âmbito estatal. Eram também novas figuras que vinham ocupar a estrutura burocrática do regime. Classes de trabalhadores, primeiramente sindicalizados e posteriormente não – ajudados pela Fundação Eva Perón -, que se por um lado eram beneficiados com uma legislação social coerente com suas reivindicações, por outro eram conscientes que transformações aconteciam para a base da pirâmide social – jogando por terra a idéia de que eram simplesmente manipulados por um grande líder. Em setembro de 1955 um golpe militar, promovido por forças contrárias ao regime, pôs fim ao segundo governo Perón. A “Revolução Libertadora” inaugurou um período em que a categoria peronismo adquiriu novas tonalidades, cuja elaboração contou com a participação de outros agentes sociais, com outros interesses. Virou discurso de oposição, clandestino e censurado por certo período. O governo revolucionário dissolveu o Partido Peronista, proibindo o uso de todos os seus distintivos, lemas e canções, assim como uma série de termos, relacionados direta ou indiretamente ao peronismo. Apesar do efeito restritivo dessas disposições e de terem sido, na prática, abandonadas antes das eleições de 1958, os membros do Partido Peronista, além do próprio Perón, foram proibidos de se candidatar em eleições até 1973.

Transformou a vida das massas argentinas, fazendo-as emergir no âmbito de uma sociedade onde não havia espaço para representações políticas de classes operárias.

Depois da tentativa de enumerar tantos significados, ao longo desta introdução, tornamos a perguntar:

“O que foi, de fato, o peronismo?”

Referências Bibliográficas:
1FAYT, Carlos S. La natureza del Peronismo. Buenos Aires: Viracocha, 1967.
2AMADEO, Mario. Ayer, Hoy y Mañana. Buenos Aires: Gure, 1956.
3NEIBURG, Federico. Os intelectuais e a invenção do peronismo: estudos de antropologia social e cultural. São Paulo: Edusp, 1997.