Hoje, sexta feira, seria dia de “Cinecasulofilia”, não é mesmo ?
Entretanto, hoje teremos uma coluna um pouco diferente. Marcelo Ikeda, crítico de cinema e cineasta, que assina a coluna, além de ilustre torcedor da Acadêmicos de Santa Cruz também gosta de escrever sobre sambas de enredo.
Hoje ele nos brinda com um texto-análise sobre o belo samba da Unidos de Vila Isabel sobre Noel Rosa, de autoria do grande Martinho da Vila (na foto, durante o desfile de 2009). Biscoito finíssimo.
“Houve torcedores criticando o samba do Martinho por causa do “OOOOO”. Claro: hoje é considerado “pouco funcional”, recurso pobre, de “falta de letra”, porque existe um “letrismo” na composição de sambas (o samba precisa descrever todos os aspectos do rocambólico enredo quando na verdade lemos a letra e sequer entendemos que enredo é esse…) em detrimento de um sentimento orgânico entre letra e melodia.
Esse “OOOOO” do Martinho é bem interessante exatamente por isso. Primeiro, porque mostra o que está em jogo, o que o samba defende. Mas tem um outro aspecto ligado à própria estrutura do samba. Esse “OOOOO” nos lembra que uma das coisas com que o samba-enredo dialoga é uma ideia de lamento. O “OOOO” está colocado exatamente no momento da “partida do mestre”, no dissabor: é a mais perfeita descrição de um lamento de dor. O “OOOO” mostra a falência das palavras em transmitir nosso sentimento de dor e de perda. As palavras são pequenas diante da partida do mestre.
Foi um grande chororô
Quando o gênio descansou
Todo o samba lamentou
Ô ô ô
O “OOOO” nos lembra das cantigas de lamento, ligados aos escravos nos tumbeiros, entoando seus lamentos de dor, de distância de saudade da terra africana ou mesmo de seu destino miserável. Um samba que exemplifica isso de forma maravilhosa é o clássico samba da Em Cima da Hora de 1974, o “Festa dos deuses afro-brasileiros “,que acaba com um belíssimo “OOOO”. Para quem não lembra, segue a letra do samba, de autoria de Baianinho, que foi reeditado recentemente:
Desde o tempo do cativeiro
A magia imperou
Os negros vieram da África
Com sofrimento e dor
E chegando à Bahia
Bahia de São Salvador ô ô ô
Os negros pediam aos deuses
Para amenizar a sua dor
Nas noites de lua cheia
Eles cantavam com fervor
Arêrê caô meu pai arêrê (bis)
Nas noites de magia
Pretos velhos festejavam
O grande mestre Oxalá
E a rainha Iemanjá
Num batuque de lamento
A noite inteira sem cessar
Eles festejavam os deuses
Cantando pra não chorar
Ô ô ô ô ô ô ô ô ô ô ô ô ô (bis)”