Como escrevi aqui anteriormente, sou ex-aluno do Colégio Pedro II. Como também sabem, domingo é dia de o Ouro de Tolo reproduzir bons textos publicados durante a semana.
Pois é. Nosso amigo Rodrigo Mattar, dono do blog “A Mil Por Hora”, em post sobre a tradicional feijoada anual do colégio – que se realizou ontem, e infelizmente não pude estar presente – nos brindou com um texto do grande dramaturgo Nélson Rodrigues sobre o colégio.
Pois este é o nosso texto de hoje. Ressalto que originalmente ele foi publicado em 1963 no jornal Diário Carioca.

“Amigos, a manchete é um dos vícios fatais da nossa época. Se um jornal anunciar o fim do mundo em uma coluna, ninguém vai se assustar. Pelo seguinte: – porque o homem só sabe vibrar em oito colunas. E a catástrofe que não venha no alto da página, aberta de fora a fora, perde todo o impacto. É a obsessão da manchete.

E, no entanto, vejam vocês: – a poesia do jornal está, por vezes. Na notícia miúda, no registro pequeno, em tipo liliputiano. Ainda ontem, por exemplo, eu li um simples texto-legenda que é uma preciosidade. Imaginem vocês que o Pedro II ganhou os Jogos da Primavera (N. do blog – evento criado por Mário Filho, um dos irmãos de Nelson Rodrigues e que batiza o Maracanã), a maior olimpíada do mundo! Claro que houve, lá no velho e eterno Colégio, uma euforia brutal.

E o Pedro II resolveu trazer para a rua sua alegria fabulosa. Houve passeata, escarcéu, correrias, o diabo. Amigos, o brasileiro servil teve a reputação de povo triste. E, de fato, o sujeito não dá um passo, aqui, sem esbarrar numa melancolia, sem tropeçar numa depressão. Nas esquinas, nos botecos, há sempre um brasileiro pingando hipocondria. Lembro-me de um turista que perguntava intrigadíssimo: – ‘Quem é que morreu?’

De fato, temos por vezes o ar de quem chora um imaginário defunto. Mas se este povo é triste, há uma imensa, jucunda, deslumbrante exceção: – o aluno do Pedro II. Tenho um amigo meu que vive rosnando: – Nesta terra, até as cadeiras são neuróticas.  Ao que eu responderia: – Menos as cadeiras do Pedro II -. Porque, lá, os móveis também são coniventes no humor dos alunos.

Uma das mágoas que eu tenho na vida é a de não ter sido, na minha infância ou juventude, aluno do Pedro II.  Andei por colégios mais lúgubres do que a casa do Agra. Mas há, em mim, até hoje, a nostalgia de não ter estudado ou fingido que estudava lá. A rigor, não são os professores que me interessam no Pedro II. Nem os seus problemas de ensino. O que me deslumbra no aluno do Pedro II não é o estudante, mas o tipo humano. Ele deve ser um mau aluno (tomara que seja), mas que natureza cálida, que apetite vital, que ferocidade dionisíaca.

Olhem para as nossas ruas. Em cada canto, há alguém conspirando contra a vida. Não o aluno do Pedro II. Há quem diga, e eu concordo, que ele é a única sanidade mental do Brasil. E, realmente, não há por lá os soturnos, os merencórios, os augustos dos anjos. Os outros brasileiros deveriam aprender a rir com os alunos do Pedro II.

Volto ao texto-legenda. Em poucas linhas está descrita a comemoração da vitória. E não se lê, no jornal, uma palavra de simpatia, e pelo contrário: – é evidente a irritação. Quem redigiu a nota está indignado com a euforia total dos estudantes. Mas reparem como o jornal hipocondríaco está sendo bem brasileiro. De fato, nós somos uns ressentidos contra a alegria, e repito: – a alegria ofende e humilha os impotentes do sentimento.

Por fim, o colega chama os meninos de ‘pequenos vândalos’. Não se pode desejar uma incompreensão mais nostálgica. Por que ‘vândalos’? Porque andaram quebrando umas cadeiras e, sobretudo, porque andaram chupando Chicabon sem pagar. Vamos admitir, risonhamente, que é lamentável. Mas nunca houve um 7 de setembro, ou um 14 de junho, sem atropelos inevitáveis. Os apertões cívicos derrubam senhoras, asfixiam menores. E nas procissões há quem bata carteira, ou atropele, ou desmaie. Vamos concluir que os patriotas e os devotos são vândalos?

Numa terra de deprimidos, o alegre devia ser carregado na bandeja como um leitão assado. E devíamos subvencionar o Pedro II para inundar a cidade, diariamente, com a sua alegria total, ululante. E vamos arrancar a máscara de nossa hipocrisia. Pois, no fundo, invejamos amargamente a garotada que lambeu de graça tanto Chicabon.”