Hoje um pouco mais cedo, nossa coluna sobre cinema, parceria com o blog Cinecasulofilia, do amigo e cineasta Marcelo Ikeda, abrindo a sexta feira cultural no Ouro de Tolo.

Vamos ao texto de hoje:

Jean Charles
de Henrique Goldman

“Preciso escrever alguma coisa sobre Jean Charles, ainda que atabalhoadamente, já que é um filme que está sendo pouco comentado e acredito tratar-se de um filme importante dentro do cenário do atual cinema brasileiro.

Jean Charles é a primeira co-produção entre Brasil e Inglaterra. Nunca antes foi feito nenhum filme co-produzido entre esses dois países. A co-produção internacional está virando uma espécie de moda para os produtores nativos. Mas o que significa isso de fato, associar-se a uma produtora estrangeira para contar uma história? No caso de Jean Charles, isso é natural, já que é um “docudrama” de um brasileiro que foi viver na Inglaterra. Acontece que no caso de vários filmes brasileiros recentes, a co-produção internacional serve essencialmente como forma de se projetar para o mundo, meio para participar de festivais internacionais de renome, meio para superar “o obscurantismo e o subdesenvolvimento do cinema brasileiro” e ter contato com ”uma realidade de primeiro mundo”. Nesse sentido, Jean Charles é o antípoda de uma co-produção internacional como Budapeste, uma co-produção entre o Brasil e a Hungria (??!!), que acabou fracassando em seu propósito em se inserir em um grande festival internacional. Henrique Goldman, diretor de Jean Charles, não quis fazer “o filme da sua vida”, ou ainda, “um filme para a competitiva de Cannes”, ele simplesmente quis fazer um filme, mais um filme, um filme como tantos outros disponíveis no mercado internacional.

Jean Charles é um filme precário. Feito numa espécie de 16mm granulado, com uma decupagem simples, o filme não tem entre seus méritos a habilidade na condução dos elementos da linguagem cinematográfica, mesmo em se tratando de um filme de narrativa convencional. O que o torna interessante é a abordagem da narrativa, é a possibilidade de fazer o filme desta forma, é sua posição dentro do cinema brasileiro de hoje.

Jean Charles já começa anunciando-se como uma grande farsa, ou ainda, sem a pretensão de ser um documentário, um “retrato imparcial” sobre a condição dos imigrantes que trabalham no “primeiro mundo”. Jean Charles é o antípoda de um filme como Pão e Rosas, de Ken Loach. Loach mostra didaticamente personagens que representam tipos fechados e homogêneos, sem ambigüidades, construídos para comprovar sua tese, a priori de todo o filme, cujo objetivo último é “conscientizar o espectador”. Os imigrantes são vítimas dos empregadores, que são vilões que representam o grande capital que os trata como semi-escravos. Em Jean Charles, ninguém é ingênuo, todos sabem as regras do jogo. E ainda assim é possível construir um mundo humano. Ao final da obra, o empregador – também um imigrante – faz uma festa e traz mulheres para comemorar com os pedreiros. Pois acima de tudo, Jean Charles – um filme sobre uma tragédia – é um filme sobre a possibilidade da celebração da vida e da liberdade de ir e vir.

Mas como ia dizendo, o filme começa como uma grande mentira. Jean Charles comove os oficiais da alfândega para que sua prima, Vanessa Giácomo, possa entrar no Brasil. Logo após ele ridiculariza os oficiais ingleses, mostrando que seu “chororô” como pobre-coitado era um mero artifício para conseguir entrar na tão sonhada Inglaterra. É como se o próprio Henrique Goldman estivesse nos dizendo que todo o enredo em torno de Jean Charles fosse uma espécie de pretexto para poder fazer cinema na Inglaterra!

Henrique Goldman não quer ser Ken Loach: não quer passar no Festival de Cannes, não quer fazer mensagem politicamente correta sobre a vitimização dos imigrantes estrangeiros, não quer fazer cinema de decupagem cheio de virtuosismos de câmera. Jean Charles é exemplar pela forma humana e honesta com que assume a sua precariedade, daí que se trata de um dos filmes mais dignos do cinema brasileiro em muito tempo. Assume a sua precariedade como brasileiro, isto é, com a consciência de que o cinema brasileiro entrando na Inglaterra nunca vai ser cinema inglês, sempre vai ser um cinema do terceiro mundo. Numa cena, Vanessa Giácomo trabalha como garçonete numa festa num barco, e ao final da festa seu pretendente a namorado ucraniano mostra a ela que eles estão no mesmo barco, vendo a mesma vista e tomando o mesmo champagne (no final de festa eles bebem o que sobrou das garrafas) dos gringos ingleses milionários. É o Brasil entrando no cinema globalizado mesmo que seja pela porta dos fundos!!!! Da mesma forma, quando Goldman vai filmar uma festa de música brasileira, ele não escolhe bossa nova, samba, chorinho ou nada do tipo, e sim simplesmente o Sidney Magal!!!

Ainda, no final do filme, Goldman se concentra na tragédia, do bárbaro assassinato de Jean Charles. Mas o que poderia ser um retrato raivoso do contato com o estrangeiro, é visto com certa serenidade, até um final bonito, bonito de verdade. Em vez de apontar para o ressentimento em relação ao assassinato, Goldman prefere apontar para uma expectativa de esperança, apontar para um legado de Jean Charles: como dissemos, uma possibilidade da celebração da vida e da liberdade de ir e vir. A personagem de Giácomo não vai mais trabalhar de 9 às 9 para juntar dinheiro e voltar para o Brasil, mas arruma uma mochila e resolve viajar na aventura de conhecer o mundo. O filme se encerra – SPOILER!!!! – com ela simplesmente entra no metrô, mesmo local onde Jean Charles foi brutalmente assassinado. Ou seja, no lugar do ressentimento, a possibilidade de voltar a entrar nesse metrô, o que encerra de forma coerente o belamente precário Jean Charles.