Em 1983, os desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro eram cada vez mais populares, não só na cidade, como em todo o Brasil. Afinal, com sambas espetaculares que proporcionavam uma venda cada vez maior de discos, e ampla cobertura da televisão, a festa só crescia.

Nesse contexto, as expectativas para mais um Carnaval eram muito grandes. E as polêmicas, também: depois da proibição de figuras vivas nas alegorias e das punições a algumas escolas que desrespeitaram a medida em 1982, houve muito disse-me-disse, e foi decidido que o regulamento voltaria a permitir os destaques nos carros.

Além disso, todos os dez quesitos passariam a valer dez pontos, com Mestre-Sala e Porta-Bandeira e Conjunto, portanto, tendo suas notas máximas aumentadas em cinco pontos.

Alheios aos bastidores, os carnavalescos e compositores proporcionaram uma riquíssima escolha de enredos e sambas para o Carnaval-83. Arrisco dizer que não havia nenhum samba de péssima qualidade entre as 12 agremiações, sendo que algumas escolheram hinos memoráveis.

Uma delas foi o Império Serrano, que tentaria o bicampeonato com o enredo “Mãe, baiana mãe”, novamente sugerido por Fernando Pamplona. A novidade era a contratação do carnavalesco Renato Lage, ex-Unidos da Tijuca. O samba, como no ano anterior, era uma pedrada composta por Beto sem Braço e Aluísio Machado.

Na vice-campeã de 1982, a Portela, os compositores David Corrêa e Jorge Macedo foram derrotados numa acirrada eliminatória por Hilton Veneno e Mazinho da Piedade. O enredo se chamaria “A Ressurreição das Coroas”, lembrando a presença da coroa no folclore brasileiro.

Já a Imperatriz Leopoldinense iria para a pista com um delírio carnavalesco de Arlindo Rodrigues. Ele, digamos, misturaria dois desfiles que já havia desenvolvido no Salgueiro, e o enredo se chamaria “O Rei da Costa do Marfim visita Chica da Silva em Diamantina”.

A Mangueira, que trocou o carnavalesco Fernando Pinto por Max Lopes, faria uma auto-exaltação e homenagearia Cartola. A União da Ilha prometia um enredo divertido sobre as mãos, enquanto a Beija-Flor prestaria tributo a sete negros de grande fama e relevância nacional: Ganga Zumba, José do Patrocínio, Luana, Clementina de Jesus, Pinah, Pelé e Grande Otelo.

Já a Mocidade Independente de Padre Miguel, com Fernando Pinto de volta, apostaria as fichas num enredo crítico à devastação da região do Xingu e ao desabrigo dos índios. Ainda em crise financeira, o Salgueiro tentava reagir com um enredo leve e divertido sobre as caricaturas, com um samba-enredo muito popular na fase pré-carnavalesca.

Depois de três enredos calcados na crítica social, a Unidos da Tijuca levaria para a avenida o artesanato brasileiro do barro. Ameaçada de despejo da quadra, a Unidos de Vila Isabel tentaria se superar com o enredo “Os Imortais” em homenagem a alguns dos mais importantes escritores nacionais.

Completavam o primeiro grupo duas escolas emergentes: a Caprichosos de Pilares, com um enredo sobre a culinária brasileira, e a Unidos da Ponte, que, com um lindo samba, prestaria um tributo a saudosos artistas plásticos brasileiros.

OS DESFILES

Estreante entre as principais escolas do Carnaval do Rio, a Unidos da Ponte chegou de São João de Meriti disposta a mostrar que tinha condições de um bom desfile. O enredo “E Eles Verão a Deus” homenageava gênios como Djanira, Aleijadinho, Heitor dos Prazeres, Di Cavalcanti, Portinari e Mario Cravo.

Pontualmente às 18h, com arquibancadas quase vazias e dia claro, a Ponte iniciou sua apresentação com fantasias e alegorias bastante simples, mas que tentaram reproduzir as obras dos artistas citados.

Lamentavelmente o carro que representaria o arco da Igreja de Congonhas e os 12 profetas de Aleijadinho teve problemas.

O carnavalesco Geraldo Cavalcanti não teve preocupações em respeitar à risca o azul e branco da escola e levou à pista alas multicoloridas. Mas isso até que era pertinente ao enredo, que foi bem dividido.

Os pontos altos da escola foram o extraordinário samba-enredo composto e defendido pelo intérprete Grillo, e a bateria de São Mateus, que naqueles tempos marcava época com uma fantástica cadência.

Com 2 mil componentes, a Ponte teve uma evolução com alguns buracos e os componentes desfilaram com certa timidez. Ademais, pela falta de recursos e por ser a primeira a desfilar, a tarefa de permanecer no primeiro grupo era difícil.

Campeoníssima do Acesso em 1982, a Caprichosos de Pilares gerava boas expectativas para a estreia na elite. Numa continuidade de temática após o desfile sobre as feiras livres, Luiz Fernando Reis desenvolveu o enredo “Um Cardápio à Brasileira”.

A veia crítica e bem-humorada do carnavalesco ficou evidente no desenvolvimento do enredo, que não apenas fez um passeio pela culinária nacional, como lembrou que a fome era um problema sério do país, assim como a inflação.

O desfile começou na alegoria que mostrava uma grande panela de barro e os dizeres “Nós fizemos a feira, agora servimos o cardápio”, lembrando do desfile do ano anterior.

As alegorias não eram grandiosas mas mostravam a proposta do enredo, com destaque para os carros da feijoada e dos bêbados, que tinha garrafas tortas. As alas mostravam comidas típicas como os quitutes baianos, o pato no tucupi e as frutas brasileiras.

O samba-enredo era divertido e foi cantado com a irreverência do intérprete Carlinhos de Pilares, mas a bateria adotou um andamento muito “pra frente” – aliás, a fantasia dos ritmistas era de cozinheiros, com direito a chapéu e tudo.

De qualquer forma, os componentes evoluíam bem, sem hesitações, quando um lamentável episódio prejudicou a apresentação da Azul e Branco.

Às 20h25, uma pane num transmissor da Light causou um apagão em dois terços da avenida, desde o início da pista até o boxe da bateria. Apesar do incidente, a escola continuou evoluindo com ainda mais garra.

O problema foi causado por um cabo trifásico subterrâneo que explodiu na Estação Frei Caneca, responsável por cinco dos oito transformadores usados para iluminar a passarela.

Aos poucos, a luz foi voltando e às 21h a avenida estava novamente toda iluminada. A escola encerrou seu desfile aplaudida pelo público e debaixo dos primeiros pingos de uma típica tempestade de verão.

Terceira escola a desfilar, a Vila Isabel entrou na pista sob chuva para defender o enredo “Os Imortais”, que homenageou Olavo Bilac, Dinah Ferreira de Queiroz, Machado de Assis, José de Alencar, Euclides da Cunha e Jorge Amado.

O problema na iluminação da Sapucaí voltou a atrapalhar, mas apenas nos primeiros metros da avenida. No entanto, logo os operários da Light resolveram definitivamente a questão e a Vila desfilou sem esse percalço.

Só que infelizmente a escola atravessava momentos complicados, com poucos recursos para desenvolver seu desfile. Isso se refletiu num conjunto visual bastante simples desenvolvido pelo carnavalesco Fernando Costa. Para se ter uma ideia, os esqueletos das alegorias foram emprestados pela Imperatriz Leopoldinense.

O abre-alas até que causou bom impacto com a coroa da Vila e outros adereços girando. No mais, um elemento com um arco-íris representava “Iracema”, do autor José de Alencar, e outro, com uma oca, lembrava Peri e Ceci, de José de Alencar.

As fantasias também não se destacaram no conjunto visual, pois não tinham grande luxo e ainda por cima foram afetadas pela chuva no começo do desfile.

O samba-enredo, bastante criticado na fase pré-carnavalesca, até que foi bem cantado pelos componentes mas, de fato, não era dos mais ricos da história da agremiação. A bateria, com um andamento veloz mas adequado, teve bom desempenho.

No entanto, o destaque da mediana exibição da Vila foi o mestre-sala Bira, de apenas 13 anos. Com muita garra e alguns centímetros a menos do que a porta-bandeira Lúcia, ele deu um show na pista.

A Unidos da Tijuca fez uma exibição agradável, porém irregular, com o enredo “Devagar com o andor, que o santo é de barro”, que homenageou o folclore nordestino e o artesanato de barro daquela região do Brasil.

O carnavalesco Yarema Ostrower desenvolveu belas alegorias. O desfile começou com a criação do mundo simbolizada no abre-alas e na sequência os demais carros e tripés representaram muito bem o artesanato brasileiro com belas esculturas.

As cores da escola não foram tão respeitadas assim no conjunto de fantasias, já que o enredo falava sobre o barro. Nesse quesito, embora os figurinos tivessem boa leitura, estes estiveram um degrau abaixo no acabamento em relação às alegorias.

Como já vinha sendo costume na Tijuca daqueles tempos, o samba-enredo era muito bom e o grande cantor Sobrinho deu o recado com a competência costumeira, acompanhado por um coral feminino. A bateria teve ótimo desempenho, com boas viradas e convenções.

No entanto, numa decisão equivocada da direção da escola, os ritmistas deixaram o box muito cedo. Na época, isso era muito ruim dada a ineficácia do sistema de som, então, as alas do meio para trás ficaram com o canto prejudicado.

Diante disso, a Tijuca acabou fazendo uma apresentação mediana, que provavelmente a deixaria na chamada zona da marola, sem grandes aspirações.

A Estação Primeira de Mangueira pisou a Sapucaí com muita energia e isso se refletiu no melhor desfile da Verde e Rosa desde 1978, quando coincidentemente também falou de si mesma.

O enredo “Verde que te quero rosa – semente viva do samba”, do carnavalesco Max Lopes, lembrou a história da escola e os últimos títulos – a Manga não vencia desde 1973, ou seja, completava uma década sem conquistas.

Egresso da União da Ilha, Max fez um belo trabalho na divisão cromática da Mangueira e um desenvolvimento de enredo bastante claro, além de conceber interessantes alegorias e fantasias.

O enredo começou com um pede-passagem trazendo o surdo, símbolo da escola, e a inscrição com o título do enredo. Em seguida, um trem que soltava fumaça, alegoria bastante esperada diga-se de passagem, simbolizou a primeira estação.

Max Lopes utilizou tripés e alegorias de mão para lembrar os títulos da Mangueira em 1961 (“Reminiscências do Rio Antigo”), 1967 (“O mundo encantado de Monteiro Lobato”), 1968 (“Samba, festa de um povo”) e 1973 (“Lendas do Abaeté”).

Alas muito bem vestidas retrataram o Rio antigo do desfile de 1961. Também agradou bastante uma ala lembrando os personagens do Sítio do Picapau Amarelo, grande obra de Monteiro Lobato, este representado numa escultura bem resolvida ladeando um livro.

O campeonato de 1968 foi exaltado em alas com figurinos africanos, enquanto o título de 1973 foi simbolizado pela ala das baianas, afinal a Lagoa do Abaeté fica em Salvador.

Cartola foi homenageado noutra alegoria e Dona Zica, viúva do compositor, passou mal de emoção ao ver a homenagem e acabou nem desfilando – ela viria fantasiada de Tia Anastácia no setor que lembraria Monteiro Lobato.

O samba-enredo da dupla Flavinho Machado/Heraldo Faria – além de Geraldo das Neves – era superior ao de 1982 e foi muito bem cantado pelos componentes ao longo de todo o desfile. A bateria de Mestre Waldomiro esteve com uma marcação impecável, mas os componentes desfilaram sem chapéu, o que poderia resultar na perda de pontos.

No entanto, o desfile da Manga teve problemas de evolução na parte final por causa do excessivo (na época) contingente de 3 mil figurantes. Para não estourar o tempo regulamentar, a direção de Harmonia apertou o passo das alas, que tiveram buracos nos setores finais.

“Os buracos naquela altura do desfile tinham uma razão: as pessoas ficam se exibindo para a televisão. Mas isso não quer dizer nada. Nos últimos cinco anos, a Mangueira nunca desfilou tão bem como agora”, comentou a cantora e compositora Leci Brandão.

Pena, pois a possibilidade de brigar pelo título ficou mais longe. De qualquer forma, uma apresentação que poderia deixar a Mangueira nas primeiras colocações.

Por outro lado, a União da Ilha fez uma apresentação irregular com o enredo “Toma lá, dá cá”, sobre as mãos. O carnavalesco era Wany Araújo, que trabalhara com Joãosinho Trinta na Beija-Flor e impôs um estilo pouco usual à Tricolor.

Na prática, houve muito branco e prata na pista e alegorias espelhadas. Houve ainda uma grande quantidade de esculturas com mãos, que tinham as figas, as mãos segurando bananas e até uma tentativa de fazer bom humor com um tripé representando a mão boba. Houve ainda a mão da liberdade, que representava os escravos e a imprensa.

As fantasias estavam num nível superior de criatividade, até porque a Ilha teve a colaboração do grande Viriato Ferreira, que não foi carnavalesco de nenhuma escola naquele ano.

O samba-enredo até que era divertido, mas não estava no nível dos anos anteriores, já que a Ilha vinha emplacando pedrada atrás de pedrada e em 1983 a qualidade era inegavelmente inferior.

Já a bateria de Mestre Bira foi o grande destaque da apresentação insulana, inclusive com uma arriscada paradinha nos versos “Quem plantou para colher / Vai agora receber / Toma lá dá cá”.

Quem também teve ótima exibição foi o casal formado pela porta-bandeira Adriana e o mestre-sala Peninha, que antes do Carnaval causaram polêmica ao deixar o Salgueiro, segundo se diz, em troca de um cachê maior – fato negado por Peninha.

A Ilha deixou a Sapucaí sem empolgar o público e provavelmente ficaria na chamada zona da marola na apuração. A irritação do cantor Aroldo Melodia ao ter seu microfone desligado antes do fim do desfile foi a imagem final.

Quem também não deixou saudade após o Carnaval-83 foi o Salgueiro. Mesmo com o promissor enredo “Traços e Troças” e um samba-enredo muito agradável, a Vermelho e Branco deixou a desejar.

Isso porque mais uma vez as crises internas não permitiram ao Salgueiro dispor dos recursos de outrora, e não foi possível um desenvolvimento adequado do enredo.

O carnavalesco José Rodrigues deixou a escola ainda na fase pré-carnavalesca e, mesmo com o barracão atrasado, o presidente Régis Cardoso decidiu assumir os trabalhos. Deu no que deu.

O Salgueiro pretendia contar a história da caricatura lembrando os fradinhos de Henfil, as mulatas de Lan (que, aliás, ajudou na confecção de fantasias), a Supermãe de Ziraldo e o Sig de Jaguar. Mas nunca antes na história deste país, como diria o poeta, o Salgueiro passou tão mal em alegorias.

Exceção feita ao abre-alas, que tinha uma reprodução do Pão de Açúcar e um desenho do governador Leonel Brizola, o desfile teve grandes estandartes com reproduções de desenhos e inscrições dos nomes dos principais caricaturistas do país.

Como desgraça pouca é bobagem, muitos intrusos se misturaram às alas e isso claramente atrapalhou o conjunto da escola, que prometera desfilar com 3 mil componentes mas tinha muito mais do que isso. Com os diversos buracos na evolução, o público vaiou.

Ao menos, a bateria do Mestre Louro e a garra dos componentes, que cantaram o samba a plenos pulmões, evitaram um vexame ainda maior. Um ano para o salgueirense esquecer.

A águia portelense bateu asas por volta das 5 da manhã e a segunda colocada de 1982 começou seu desfile disposta a recuperar a coroa, não só a de campeã, mas as coroas que marcavam o nosso país. O enredo “Ressurreição das Coroas – Reisado, Reino, Reinado”, dos carnavalescos Edmundo Braga e Paulino Espírito Santo, homenageou diversos reis consagrados pela nossa cultura e folclore, como os índios, Chico Rei, o Rei Sol e a Rainha Lua, Natal, Chacrinhas, e até Pelé, além, claro de D.Pedro I e D.Pedro II, líderes do país no período do Império.

A tradicional comissão de frente formada pelos integrantes da Velha Guarda abriu o cortejo, seguido por um interessante letreiro com o nome da escola no qual as letras eram erguidas e pousadas. A águia coroada estava lindíssima e muito larga, de forma a ocupar toda a pista e repelir a entrada de invasores, o que acabou funcionando.

Em termos plásticos, a Portela teve figurinos de excelente acabamento e respeitando as cores da escola. No primeiro setor do desfile, foi lembrada a época dos índios, e depois a dos negros e posteriormente o período da Família Real portuguesa.

As alegorias tiveram uma certa irregularidade, mas agradaram os tripés que faziam menção à África (foto ao lado) e uma lindíssima carruagem que exaltou a época da corte imperial.

O samba-enredo de Nilton Veneno e Mazinho da Piedade no começo não teve bom desempenho mas foi crescendo e a bateria de Mestre Marçal esteve inspirada, com um andamento e firmeza impecáveis. O intérprete Silvinho ganharia o Estandarte de Ouro de “O Globo”, mas infelizmente problemas no sistema de som atrapalharam a harmonia da escola em pelo menos dois momentos segundo relatou o “Jornal do Brasil”.

Outro destaque foi a apresentação da jovem porta-bandeira Andréia, filha do compositor imperiano Aluísio Machado e de apenas 13 anos de idade. Na época, isso gerou discussão entre as escolas por uma suposta “traição” à agremiação da Serrinha.

De qualquer forma, a Portela deixou a pista pouco depois do amanhecer com um desfile que cresceu bastante no fim. O que ninguém sabia é que também seria a última participação de Clara Nunes num desfile portelense (foto acima). Ela, que esquentou a escola com o sucesso “Portela na Avenida”, morreu pouco depois do Carnaval – veja mais nas Curiosidades.

Já com o dia totalmente claro, mas sem sol a pino, o Império Serrano despontou na Sapucaí em busca do bicampeonato com o enredo “Mãe, baiana mãe”, do carnavalesco Renato Lage. A ideia era contar a importância da cultura negra no Brasil ao exaltar a mulher baiana.

O desfile foi dividido em sete setores e Renato Lage mostrou cada parte por intermédio de painéis muito bem ornamentados – aliás, esse seria um expediente adotado pelo carnavalesco em outros carnavais com bastante sucesso.

Os quadros eram “A Mãe Negra da Baiana Mãe”, “A Fé Negra da Mãe Baiana”, “O Homem da Mãe Baiana”, “A Comida da Mãe Baiana”, “A Filha da Baiana”, “Baiana, Mãe do Samba” e“A Mãe Nossa da Bahia”. Os setores mostravam as origens africanas, a religiosidade, a culinária e, claro, o samba.

O lindíssimo abre-alas prateado (foto acima) tinha nove metros de largura e simbolizava as escadarias da Igreja de Nosso Senhor do Bomfim, com Dona Ivone Lara como destaque principal vestindo uma maravilhosa fantasia em dourado.

Outra alegoria que mereceu aplausos foi a que mostrou um grande mercado (foto ao lado) no setor dedicado à culinária. Mas talvez o que tenha causado o melhor efeito foi o uso de dezenas de tripés muito bem realizados, sobretudo no momento de abordar o candomblé, e que proporcionaram um lindo conjunto sem comprometer a evolução.

Em figurinos, o Império não deveu em nada à rica exibição da Portela. Renato Lage utilizou bastante dourado e prateado, mas pontuando de forma perfeita o verde e branco da escola. Os componentes utilizaram diversos adereços de mão, também com ótimo resultado.

Assim como em 1982, o samba-enredo foi de autoria dos brilhantes compositores Beto Sem Braço e Aluísio Machado. E a trilha sonora imperiana era considerada a melhor do ano, aliando beleza melódica com uma perfeita tradução do enredo. E o povo cantou com a escola desde que Quinzinho entoou os primeiros versos.

A bateria também teve excelente desempenho, com o naipe de agogôs dando um molho irresistível ao samba. Sob o comando do lendário Mestre Fuleiro, o Império também desfilou com grande correção nos quesitos Evolução e Harmonia, sem hesitações que comprometessem o conjunto.

Depois da passagem de quatro alas de baianas durante todo o desfile, o cortejo foi encerrado com mais uma linda alegoria representando a glorificação da baiana, na qual uma grande escultura de uma baiana vinha ladeada por um enorme resplendor. O Império deixou a pista sob os gritos de “bicampeã” e, dada a correção com a qual se apresentou em todos os quesitos, era candidatíssima ao bicampeonato.

Antepenúltima escola a desfilar, a Imperatriz Leopoldinense rompeu pela Sapucaí exuberante como de costume na defesa do enredo “O Rei da Costa do Marfim Visita Chica da Silva em Diamantina”. Mas como assim? Chica da Silva recebendo o Rei da Costa do Marfim?

Na verdade, Arlindo Rodrigues reeditou dois de seus enredos pelo Salgueiro (“Chica da Silva”, de 1963, e “Festa para um Rei Negro”, de 1971) por intermédio de um fictício encontro entre os personagens principais já citados. E o que se viu foi uma história tão bem contada que parecia ter acontecido de verdade.

O cortejo foi aberto por uma impressionante coroa, o símbolo da escola, e primeira parte do desfile teve as alas vestindo trajes típicos africanos com muita palha e sisal. Depois, outra alegoria mostrou a Costa do Marfim do Rei Negro com um imenso chafariz que jorrava água nas bocas dos leões, e ainda as plantas típicas do local.

Na segunda parte da apresentação, era chegada a vez da luxuosa corte de Chica da Silva, que recebeu a visita do Rei Negro no castelo de palha. Diga-se de passagem, as lindas alegorias não tinham destaques, mas sim manequins. Seria por causa da punição pelas figuras vivas em 1982? Ou uma tentativa de reeditar com sucesso o extraordinário carro do sarau, que tanto agradou no ano anterior? Bem, na prática, em alegorias a escola foi brilhante.

Só que, ao contrário de anos anteriores, a Imperatriz teve alguns senões que poderiam comprometer a busca pelo terceiro título na elite do carnaval do Rio. O primeiro foi em samba, já que, embora não fosse uma obra pavorosa, devia em relação a outras do Carnaval-83 e da própria escola no começo da década – curiosamente, sem Dominguinhos do Estácio, que foi para a São Carlos, quem puxou o samba foram dois tradicionais compositores, o gresilense Tuninho Professor e… David Corrêa, após a derrota nas eliminatórias da Portela.

Além disso, infelizmente a bateria atravessou de forma significativa em dado momento e até parou. Houve ainda importantes falhas de evolução, o que causou vaias do público. De fato, isso poderia ser fatal numa briga que prometia ser intensa com várias escolas pelas primeiras colocações.

Com Fernando Pinto de volta, a Mocidade Independente de Padre Miguel pisou a Sapucaí por volta das 10 horas da manhã de segunda-feira. Mas nem o calor fortíssimo impediu a Verde e Branco de fazer uma apresentação inesquecível com o enredo “Como era verde o meu Xingu”.

A categoria do saudoso carnavalesco ficou patente num desenvolvimento de enredo que se mostrou um dos melhores, senão o melhor, de todo o Carnaval-83. A proposta era bem clara: exaltar o Xingu, sua natureza e os índios que o habitavam, e alertar para a devastação do local.

O cortejo começou com um imponente pede passagem (foto acima) e uma comissão de frente formada por caciques xinguanos. O belíssimo abre-alas iniciava o setor chamado “Quando o Xingu era Xingu”, exaltando a natureza da região, com micos, onças e tatus, além de mulatas com os seios nus representando índias.

Na sequência, o desfile mostrou as diversas tribos do Xingu por intermédio de alas muito bem fantasiadas e placas descritivas – aliás, diga-se de passagem, o verde e o amarelo predominaram em todo o desfile, o que só reforçou o caráter nacionalista do enredo. Agradou muito o carro que mostrava o encontro dos rios, com reproduções de sapos, peixes e garças.

A veia crítica do enredo se mostrou clara no setor “Deu a louca no Xingu”, no qual era evidenciada a influência do homem moderno, com índios usando patins, guiando bicicletas e exibindo placas de trânsito. Genial! Como bem apontava o enredo, a Mãe Natureza se revoltou contra essa invasão do homem, o que foi muito bem simbolizado numa alegoria com a Ave Dourada Malfazeja, que soltava fumaça e tinha como destaque Marlene Paiva (foto abaixo). 

No entanto, quando a Mocidade já se encaminhava para um favoritismo na briga pelo título, infelizmente a harmonia entrou em colapso depois que a bateria chegou ao segundo recuo, com muitos penetras se esgueirando pelas alas. Diversos buracos foram formados na evolução da escola.

Pena, porque a bateria vinha numa cadência impressionante e agradabilíssima, e o samba-enredo, que já caíra no gosto popular, era entoado a plenos pulmões pelos componentes apesar de o sol castigar a Sapucaí.

No último setor, chamado “Que o Xingu seja sempre o Xingu”, Fernando Pinto lançou mão de cinco tripés que exibiam a mensagem “Pela Demarcação das Terras Indígenas”.

Eufórico, o público, que ainda lotava os setores de arquibancada provisórios, recebeu a Mocidade no fim da pista com os gritos de “já ganhou”. Restava apenas saber o quão os problemas de harmonia e evolução poderiam prejudicar a Mocidade numa briga com o Império. De qualquer forma, um lindo momento da história dos desfiles.

Coube à Beija-Flor de Nilópolis a tarefa de encerrar os desfiles de 1983. O enredo “A Grande Constelação das Estrelas Negras”, do carnavalesco Joãozinho Trinta, exaltou as figuras de negros importantes na cultura nacional.

A comissão de frente teve um estilo mais tradicional, com 14 negros esplendidamente trajados de branco apresentando a escola. O abre-alas tinha diversos espelhos e a participação do já antigo destaque Jésus Henrique.

O brilhante casal formado pelos saudosos Juju Maravilha e Élcio PV desfilou logo na cabeça da escola – ao deixar a pista, o mestre-sala desmaiou por causa do calor fortíssimo. A garra e categoria de ambos foi agraciada com o Estandarte de Ouro, de “O Globo”.

Aliás, como já passava das 11 horas da manhã e a temperatura superava os 40 graus, João 30 vestiu a escola em tons claros, principalmente branco, prateado e dourado. No entanto, apesar do inegável luxo dos figurinos, eles pareciam meio genéricos, podendo ser usados em qualquer enredo.

Inexplicavelmente, as alegorias também não traduziam em nada o enredo, sendo apenas suportes para destaques. Entre eles, menos mal, estavam alguns dos homenageados: Clementina de Jesus (foto principal acima), Grande Otelo, Pinah e Luana. Pelé, como de costume digamos assim, não apareceu.

Nos quesitos de pista, porém, a Beija-Flor teve um bom desempenho, com uma evolução sem hesitações apesar da incrível invasão de pista e um bom canto de seus componentes, mesmo com um samba-enredo considerado fraco pela crítica.

Por volta das 12h30, o último componente da Beija-Flor deixou a passarela e o público apoiou a garra dos desfilantes, embora sem o mesmo entusiasmo do que no fim do desfile da Mocidade, segundo os jornais da época, a escola mais aplaudida de 1983.

REPERCUSSÃO E APURAÇÃO

Duas escolas despontaram como favoritas para a conquista do título de 1983: Império Serrano e Mocidade Independente de Padre Miguel, apesar dos problemas desta. O Império teve o desfile considerado de melhor técnica e de beleza inquestionável, além de ter conquistado três prêmios do Estandarte de Ouro, de “O Globo”: Samba-Enredo, Bateria e Personalidade Masculina (Aniceto).

A Mocidade conquistou o estandarte de Melhor Comunicação com o Público, o que equivalia ao prêmio de Melhor Escola, e o de Melhor Enredo. No Estandarte do Povo, do “Jornal do Brasil”, a Portela foi a escola que mais recebeu votos do público (9.830 dos 42 mil), seguida pela Mocidade e pela Mangueira.

Portela e Mangueira, aliás, apenas corriam por fora na disputa pelo título, assim como Imperatriz e Beija-Flor. Mas, pelo que se dizia nos jornais, seria mesmo uma briga entre Império e Mocidade. Bem, não foi exatamente assim…

Mais de três décadas depois, o julgamento dos desfiles de 1983 ainda rende discussões e é considerado um dos mais polêmicos da história do Carnaval. Confusões na abertura dos envelopes e notas incompreensíveis para quem viu as apresentações das escolas marcaram a apuração.

Já no Pavilhão de São Cristóvão, os presidentes das 12 agremiações se reuniram e o presidente da Associação das Escolas de Samba, Antonio Gedey decidiu pelo não-julgamento da Caprichosos e que não haveria rebaixamento para o desfile de 1984. Com isso, o número de escolas desfilantes subiria para 14.

No entanto, o presidente da Caprichosos, Antonio Mair, reclamou pelo fato de a escola não ser julgada: “Hors concours é coisa de Clóvis Bornay”.

Portela, Império Serrano e Beija-Flor dominaram a apuração desde o começo, enquanto Mangueira e Mocidade perderam pontos importantes em Samba-Enredo (surpreendentemente, diga-se) e Enredo, no caso da Verde e Rosa.

Depois de sete dos dez quesitos lidos, a Portela liderava com um ponto de vantagem para Império e Beija-Flor, mas as notas de Alegorias e Adereços mudaram completamente os rumos da apuração.

O jurado Messias Neiva conferiu nota 10 apenas à Beija-Flor, que não esteve inspirada no quesito, enquanto todas as demais escolas tiraram notas menores ou iguais a 8. O Império Serrano, por exemplo, levou 7, enquanto Portela, Mocidade e Mangueira ganharam 6.

Ninguém entendeu, ou entende até hoje, o que motivou essa discrepância tão grande de notas…

Os ânimos se exaltaram, e nos mapas de Mestre-Sala e Porta-Bandeira a jurada Maria Teresa Soldatelli, que havia escrito 10 para a Mangueira e 9 para o Salgueiro, fez um adendo no qual dizia ter trocado as notas. Enfurecidos, os diretores da Mangueira Djalma Arruda e Carlinhos Dória invadiram a mesa apuradora e tentaram rasgar os mapas de notas.

“Safados! Eu vou derrubar todo mundo a tiros! Ladrões! Calhordas! Cambada de vigaristas! São todos uns filhos da p…”, bradou Dória, que depois seria presidente da escola e morreria assassinado no fim de 1988.

A reportagem de “O Globo” flagrou uma conversa entre Djalma Arruda e o presidente da Portela, Carlinhos Maracanã, após a confusão.

“Acho que acabei com a apuração, rasguei tudo. Vão ter que anular o desfile e declarar as 12 escolas campeãs”.

“Que nada, rapaz, tu marcou bobeira. Era para rasgar as notas que ainda não tinham sido lidas. A gente tinha que dar um tiro neles”, disse Carlinhos, que pediu a Arruda para disfarçar quando percebeu que estava sendo ouvido.

Depois de a polícia intervir, foram lidas as notas dos últimos dois quesitos. A Beija-Flor tirou três 10 e um 9, garantindo seu quinto título no Carnaval. A Portela ficou com o vice a três pontos da campeã, enquanto o Império terminou em terceiro, seguido por Imperatriz, Mangueira e Mocidade, surpreendentemente apenas em sexto.

“O surdo já começou a bater em Nilópolis! O resultado foi mais do que justo. O Joãozinho Trinta montou um grande carnaval, esta é que é a verdade. O resto é choro de perdedor”, comemorou o patrono da Beija-Flor, Anísio Abraão David.

De fato, as reclamações de Portela e Império Serrano pelas notas de Messias Neiva foram muitas. Carlinhos Maracanã ameaçou (e não cumpriu) ir atrás do jurado.

“Não me conformo com esse cretino e safado, o tal de Messias Neiva, que julgou Alegorias e Adereços. Não o conheço pessoalmente, mas quando o encontrar na rua vou quebrá-lo todos a tapas e pontapés. Esse cara é um vigarista, safado, ladrão e sem-vergonha!”, xingou.

No Império Serrano, também houve lamentações e acusações.

“Pela vontade popular, nós somos os campeões! Como chega um cara desses e dá nota 7 para as nossas alegorias? Acho que houve armação!”, reclamou o presidente Jamil Cheiroso.

Na Mangueira, Carlinhos Dória denunciou irregularidades na escolha dos jurados:

“Havia ficado combinado que o sorteio dos jurados seria na avenida às 15h, mas duas horas depois chegou o (Luiz) Dale, presidente da Riotur, com todos os nomes puxados do seu colete. Isso é safadeza! Fizeram uma armação em favor da Beija-Flor! Eles têm muito ‘cacau’ para dar e podem comprar esse júri de venais e corruptos!”.

Ex-presidente da Riotur, coronel Aníbal Uzêda, que havia deixado o cargo uma semana antes do Carnaval, corroborou a denúncia de Carlinhos Dória, e disse que a lista de jurados foi mudada depois que ele saiu da presidência.

“Como, em tão curto espaço de tempo, essas dez pessoas puderam ser preparadas para julgar as escolas de samba?”, questionou Uzêda, que, no entanto, tinha escolhido Messias Neiva para o julgamento quando ainda era o presidente da Riotur:

“Admito que possa ter errado na escolha, porque esse rapaz deu notas muito discrepantes”.

Por fim, Uzêda explicou que apenas em três quesitos (Alegorias e Adereços, Harmonia e Enredo) a sua lista original foi respeitada.

Quanto a Messias Neiva, o jornal “O Globo” conseguiu entrevistá-lo no dia seguinte à apuração (imagem acima) – o Migão também transcreveu na íntegra a entrevista no “Samba de Terça” sobre o desfile da Beija-Flor em 1983.

Entre outras declarações inacreditáveis, Neiva disse que não se lembrava dos enredos das escolas, mesmo apenas quatro dias após o desfile, e que deu 10 à Beija-Flor por ter conseguido ver melhor as alegorias com a luz do dia – sendo que Império, Imperatriz e Mocidade também haviam desfilado pela manhã e levado notas estranhamente baixas.

Nada ficou provado e Messias Neiva, que sempre trabalhou como pintor e artista plástico, hoje tem 91 anos. Ele sofre de glaucoma, mas ainda está em atividade como colaborador da Folha de Mangaratiba, município fluminense onde vive com a família. Sem enxergar direito, ele transmite seus pensamentos a colaboradores que redigem uma coluna no jornal local.

RESULTADO FINAL

POS. ESCOLA PONTOS
Beija-Flor de Nilópolis 204
Portela 201
Império Serrano 200
Imperatriz Leopoldinense 198
Estação Primeira de Mangueira 193
Mocidade Independente de Padre Miguel 193
União da Ilha do Governador 190
Acadêmicos do Salgueiro 188
Unidos de Vila Isabel 183
10º Unidos da Tijuca 180
11º Unidos da Ponte 160
Caprichosos de Pilares sem julgamento

 

No Grupo 1B, a Unidos de São Carlos conquistou o título com o enredo “Orfeu do Carnaval” e o reforço de Dominguinhos do Estácio, de volta à escola de origem após quatro carnavais na Imperatriz Leopoldinense.

O belo samba-enredo da São Carlos funcionou muito bem para impulsionar a escola, que desfilou com muita garra para contar a história de um favelado que se apaixonou por Eurídice. Mesmo sem tanto luxo, as fantasias contaram bem o enredo e as cores da escola foram respeitadas.

A São Carlos somou 207 pontos contra 203 do vice-campeão Império da Tijuca, que teve enredo sobre o misticismo da Bahia. Mas o grande samba do ano foi da quarta colocada Unidos do Cabuçu: “A visita de Ony de Ifé ao Obá de Oyó” é considerado o melhor da história da escola.

A Acadêmicos do Engenho da Rainha ficou conquistou a taça no Grupo 2A à frente da vice-campeã São Clemente, enquanto a Mocidade Unida da Cidade de Deus levou o campeonato no Grupo 2B.

CURIOSIDADES

– Infelizmente o Carnaval de 1983 marcou a última vez em que Clara Nunes defendeu a Portela. Vinte dias após o desfile, a cantora foi submetida a uma operação de varizes na Clínica São Vicente, na Gávea, Zona Sul do Rio, mas sofreu uma reação alérgica fortíssima a um componente da anestesia. Clara teve parada cardíaca – que acabou revertida – e ficou longos 28 dias em coma no CTI mas já havia tido morte cerebral imediata devido a um grande edema. Houve uma série de especulações sobre o estado de saúde da cantora, que foram desde erro médico até tentativa de suicídio e tratamento de inseminação artificial (o que seria impossível pela retirada do útero feita por ela em 1979). Fato é que Clara morreu num sábado, dia 2 de abril, segundo a certidão de óbito, por choque anafilático. A Guerreira foi velada na quadra da Portela e cerca de 500 mil pessoas se despediram dela. Hoje o nome da rua em que fica o Portelão tem o nome de Clara Nunes. Foi aberta uma sindicância pelo Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj), mas este não poderia julgar o caso por estar sob intervenção federal. Os documentos, então, foram encaminhados ao conselho baiano (Cremeb), que, em julho de 1983, concluiu não ter havido nenhum erro de procedimento dos médicos ou falha nos equipamentos da Clínica São Vicente. Viúvo de Clara, o compositor Paulo César Pinheiro poderia ter recorrido, mas não o fez.

– Apenas Globo e Bandeirantes transmitiram os desfiles de 1983. A TVE, que havia feito coberturas elogiáveis nos anos anteriores, portanto, não exibiu o Carnaval. Na Globo, seguiam Haroldo Costa, Léo Batista e Hilton Gomes se revezando na narração, enquanto na Band a carnavalesca Maria Augusta seguia no comando na transmissão ao lado de um grande reforço, ninguém menos do que Fernando Pamplona.

– Foi o último desfile da Mangueira com a bateria sob a batuta de Mestre Waldomiro, que morreu em 12 de junho de 1983 aos 81 anos. O lendário diretor de bateria, que havia assumido o comando dos ritmistas em 1935 após vencer um concurso de quem encourava melhor o tamborim, conquistou nove campeonatos pela Verde e Rosa. Waldomiro, aliás, foi o primeiro a usar couro de gato para os tamborins e certa feita, em entrevista à TV Globo, explicou a diferença entre o instrumento com esta composição em relação a outro com nylon e acrílico.

– As tradicionais decorações da passarela do samba apareceram pela última vez no desfile de 1983. Com a construção do sambódromo no ano seguinte, tais ornamentos foram abolidos, segundo Darcy Ribeiro, porque enfeitar uma obra do arquiteto Oscar Niemeyer seria como colocar uma gravata no Cristo Redentor. Apenas no Carnaval de 1988, foram erguidos postes com uma decoração no alto, mas ainda assim muito pouco em relação às lindas decorações que existiam.

– Com a decisão de não julgar a Caprichosos, tampouco rebaixar qualquer escola, o grupo 1A teria 14 agremiações no Carnaval de 1984, o maior número desde 1976. O que não se sabia ainda era que os desfiles passariam a ser divididos em dois dias e tampouco que seria construído o sambódromo, projeto apresentado em setembro e cuja obra terminou apenas 110 dias depois.

– Em 1983, o Desfile das Campeãs, ao contrário do que acontece hoje, teve os campeões dos grupos de acessos e de blocos. Desfilaram, pela ordem, Unidos de Vila Kennedy (vice do desfile o grupo 1A de blocos de enredo), Flor da Mina (campeã entre os blocos), Caprichosos de Pilares (convidada por ter sido prejudicada com o apagão em seu desfile), Império da Tijuca (vice-campeão do Grupo 1B), Unidos de São Carlos (campeã), Portela (vice do Grupo 1A) e Beija-Flor (campeã). A escola de Nilópolis, aliás, foi bastante vaiada antes de se apresentar e o público gritou “é marmelada!”.

– Depois que a Caprichosos desfilou às escuras e não foi julgada, tal fato se repetiria em 1991 durante o desfile da Santa Cruz no Acesso. A diferença é que a escola da Zona Oeste entrou na Justiça para ascender ao Grupo Especial e acabou conseguindo.

– Neguinho da Beija-Flor conquistou seu terceiro e último título pela Beija-Flor com um samba de sua autoria – isso já havia acontecido em 1976 e 1978. Em 1983, Neguinho teve como parceiro o irmão Nêgo, que anos mais tarde também seria um consagrado intérprete do Carnaval carioca.

– Poucos dias depois do Carnaval, Clementina de Jesus, uma das homenageadas pelo desfile campeão da Beija-Flor, sofreu um derrame e ficou meses internada. Ela, que tinha recém-completados 82 anos, se recuperou e retomou a agenda de shows. A cantora faleceu em 1987, depois de outro derrame.

CANTINHO DO EDITOR (por Pedro Migão)

Em entrevista a este blog em 2011, o carnavalesco Luiz Fernando Reis disse que a queda de luz acabou sendo providencial à Caprichosos, pois esta desceria inapelavelmente em uma situação normal.

Chega a ser curioso lembrar que no pré-Carnaval daquele ano havia bastante badalação em cima do Salgueiro. A decepção pós-desfile foi ainda maior.

A Unidos da Ponte reeditaria o samba de 1983 no Acesso B, no ano de 2005.

Amigo da coluna conta que outro jurado, que era um duro, apareceu na semana seguinte ao desfile com um Monza 0km. Virou ex-amigo dele na hora…

O último ato de Clara Nunes na Portela foi convidar Carlos Reis para desfilar na escola. Hoje ele é o primeiro destaque, sempre com fantasias bastante luxuosas. O seu velório, na quadra da Portela, foi uma das maiores manifestações populares da história do subúrbio carioca – estimativas indicam de 50 a 100 mil pessoas em seu velório.

A rua onde fica a quadra da Portela, anteriormente chamada Rua Arruda Câmara, passou a se chamar Rua Clara Nunes. A cantora também seria lembrada diversas vezes não somente pela Portela como por outras escolas. A última foi a Cubango, em seu esquenta deste ano (abaixo).

VÍDEOS

O desfile que deu à Beija-Flor o título de 1983

A Portela vice-campeã na Sapucaí

O excelente desfile do Império Serrano

A injustiçada exibição da Mocidade

O compacto exibido pela TV Globo

Fotos: O Globo, Manchete e reprodução de internet

AGRADECIMENTOS

A série Primórdios do Sambódromo é uma sequência da Histórias do Sambódromo e, antes disso, da Trinta Atos. Como sempre, o principal agradecimento é ao Migão, que cede este espaço e ainda colabora com os textos. Sem ele, claro, não seria possível dividir com vocês essas memórias.

Agradeço também a vocês, leitores, que tanto contribuem com informações adicionais e acompanham cada texto publicado. Nós fazemos este Ouro de Tolo para vocês e estamos sempre dispostos a trocar ideias.

Quem sabe, não levamos adiante essas memórias e transformamos em livro? Quem sabe…

12 Replies to “1983: Estrelas negras superam mãe baiana e índios do Xingu de forma bem polêmica…”

  1. A safadeza teve o mesmo som que o bater das asas de um beija-flor. Era pra ter sido o bi do Império.

  2. Excelente coluna, e excelente série, muito legal saber detalhes de Carnavais anteriores ao Sambódromo, todos históricos, com verdadeiras lendas da folia. Nessa série foi contada a história dos últimos desfiles de Cartola, Mestre Waldomiro, Clara Nunes, Mestre André… E os duelos entre o gênio Joãozinho Trinta, mestre Arlindo Rodrigues ainda em seu auge, um jovem e já genial Fernando Pinto e o clássico Viriato Ferreira? Sensacional! Parabéns ao Fred e ao Pedro pela iniciativa, esperando o que essa dupla vai preparar para o próximo Carnaval!

    Que título polêmico da Beija hein? E Messias Neiva? Má fé ou incompetência mesmo? Só sei que as duas hipóteses são gravíssimas. Uma pena, tirou um bi do Império, ou um possível bi da Portela, que venceria o Domingo em 1984, ou até anteciparia a consagração de Fernando Pinto na Mocidade (que seria novamente injustiçada em 1987…)

    Não acho o samba da Mangueira essas coisas, apenas razoável no máximo, mas o verso “desperta Cartola, vem pra avenida…” me emociona.

    Curiosamente, essa série retratou um período muito difícil para as quatro escolas tradicionais, pois confirmou o domínio da Beija-Flor, a ascensão da Mocidade e a chegada do Luizinho a Imperatriz, chutando a porta. A Portela foi quem melhor se saiu, com belos e injustiçados desfiles, mas na prática só venceu um campeonato, assim como o Império, que antes das excelentes apresentações em 82-83, chegou a cair. Mangueira e Salgueiro, então, vimos que viveram dias bem difíceis. A Manga voltaria aos dias de glória já no ano seguinte, já o Salgueiro sofreria mais alguns anos…

    Infelizmente Fred, acho que você se enganou, Messias Neiva voltou ao Carnaval esse ano, e de forma dupla, julgando alegorias e evolução, não viu?

  3. Em que planeta nasceu mesmo Messias Neiva?

    Com todo o respeito, mas ele foi um brincalhão. Como pôde a Imperatriz não ganhar nota máxima em Alegorias e Adereços e só a Beija-Flor levar 10?

    Me desculpem, mas este é um dos maiores roubos da história do carnaval.

    E o Luis Fernando está coberto de razão. Messias Neiva reviveu em vários jurados na apuração de 2017.

    1. Não vi na época esse carnaval, mas pelo que revi de todos os desfiles e também pelo que li, achei o desfile do Império o mais equilibrado nos quesitos, além de ter tido um excelente enredo e um sambaço. Se a Mocidade não tivesse tido problemas, poderia ter brigado.

        1. Curiosamente, tanto o Globo como o JB criticaram o samba da Portela, o que achei um exagero, embora o do Império fosse o melhor da safra.

  4. A mesma coisa que a Beija-Flor fez em 2014. Reclamou dos jurados após um péssimo desfile, ameaçou não desfilar mais e (à época) a prefeitura abriu as pernas.

    Era Portela na cabeça!!

    Quanto ao livro, Fred, já te passei o link! Tá na última coluna do Trinta Atos! =D

  5. CORREÇÃO- O SAMBA DA UNIDOS DA PONTE É DE AUTORIA DE: MAZINHO BRANCO, AMBROSIO E RENATINHO

  6. CORREÇÃO: O Samba da Unidos da Ponte é de: MAZINHO BRANCO, AMBROSIO e RENATINHO. Obrigado

Comments are closed.