Observe na foto o leitor a manchete da seção “Rio” do jornal O Globo, que coloco em print screen (feito por volta das nove da manhã de hoje) no alto do post.

Veja que uma pessoa inocente, mãe de quatro filhos, assassinada barbaramente a tiros – ainda não se sabe se de bandidos ou da Polícia Militar – e ainda por cima arrastada fora do carro da Polícia em uma inútil e patética tentativa de “socorro” é tratada apenas como “arrastada”.

Este episódio é o retrato acabado de uma salada indigesta a que assistimos nos últimos tempos, misturando uma imprensa cujo último objetivo tem sido a notícia, parcelas da população cada vez mais adeptas da justiça com as próprias mãos e uma vez mais uma Polícia despreparada.

Comecemos pela cobertura da imprensa. Tratar como “arrastada” uma pessoa inocente que foi assassinada barbaramente e com requintes de crueldade é algo que, embora eu não seja jornalista, não deve constar de nenhum manual a ser ensinado. Ainda denota um componente de preconceito social: duvido que se a auxiliar de serviços gerais fosse uma moradora do Leblon ou da Barra da Tijuca seria tratada deste jeito – na verdade, nem haveria operação policial, mas esta é outra história.

É um bom exemplo da decadência a que os veículos da chamada “grande mídia” vem experimentando nos últimos anos. Premidas por cortes de custos por um lado e por uma crescente ideologização e partidarismo do outro, o espaço para bons repórteres e jornalistas tem se estreitado sobremaneira nos últimos anos. Mais importante que a notícia é a conclusão preestabelecida – muitas vezes para atender a interesses políticos ou, em menor escala, comerciais – e isto impacta diretamente na forma como é apresentado o noticiário.

constantinoPor outro lado, os cortes de custos impostos pela queda nas vendagens – em um círculo vicioso – diminuem não somente o investimento na formação dos jornalistas como o próprio salário real destes. Menor salário, profissionais menos qualificados. Profissionais menos qualificados, menor qualidade. Menor qualidade, menor vendagem.

Então passamos ao segundo aspecto, que de certa forma tem relação com o primeiro: os leitores de O Globo são, hoje, basicamente o extrato conservador da cidade, morador em áreas da Zonas Sul e da Barra da Tijuca. Além do preconceito social – “pobre não é gente” – este segmento é um onde mais ressoam ideias como as defendidas pela apresentadora Rachel Sheherazade, o inclassificável Rodrigo Constantino (foto) e outros, de “justiceiros” cometendo crimes em nome de um “bem maior” e coisas semelhantes.

Ou seja, o “arrastada” para o público alvo do jornal é algo “natural”: ela é pobre e, como tal, não é gente.

Continuando, a partir do momento em que se incentiva o justiçamento com as próprias mãos isto é entendido como um sinal tácito para a Polícia e órgãos paramilitares responderem a este chamado. Para que prender e passar por toda a burocracia de um inquérito quando se pode “resolver o problema” com dois ou três tiros?

Pois é. Só que se assassinou uma inocente. Você, leitor, que defende criminosos sendo acorrentados e execuções sumárias, também é culpado pela morte desta auxiliar de serviços gerais.

Até porque incentivar a justiça com as próprias mãos é apologia ao crime, como já disse em artigo anterior. Lugar de bandido é na cadeia, ponto. No caso em questão se assassinou uma inocente. Assassinou-se duas vezes: com o tiro que a levou a óbito e, depois, com a sua dignidade se esvaindo no asfalto das ruas enquanto era arrastada como um bicho.

13mar2014---base-movel-do-bope-e-montada-em-uma-localidade-da-vila-kennedy-conhecida-como-campo-da-vila-onde-a-tropa-de-elite-da-pm-fixou-sua-base-o-equipamento-recebe-imagens-em-tempo-real-via-1394707220533_956x500Finalizando esta salada indigesta, não se pode deixar de considerar o despreparo da Polícia. Mal paga, mal treinada, mal formada, sujeita a pressão tanto dos governos como da sociedade e refém de uma política de segurança inadequada, só sabe atuar com a truculência e o despreparo habituais. Mais: é incentivada a isso. A Polícia que temos é que a população deseja, ou pelo menos a que os segmentos formadores de opinião exigem.

Uma Polícia bem treinada, voltada menos ao militarismo e mais ao policiamento, que só utilize a força em último caso e que aplique a lei. Seria este o ideal, mas custa caro, né? Além disso, para quê tratar bem pobres, negros e “vagabundos”? O importante é UPP para que o morro “não desça” – e, antes que me acusem, já escrevi sobre o assunto em outras oportunidades.

Só que neste caso esta receita de bolo deu errado. Matou-se uma inocente, sem nem oportunidade de se plantar armas e drogas a fim de justificar a execução (como em inúmeros outros casos) ou forjar um “auto de resistência”. Sob o aplauso de parte da população por baixo de uma fingida indignação. Como dizem os médicos, “efeito colateral”.

Olha que nem escrevo aqui sobre despautérios como os ouvidos nas últimas semanas, que “quem defende a aplicação da lei defende direitos de bandidos”, “está com pena, leva para casa” e coisas correlatas. Uma sociedade onde há anomia é uma sociedade com o pior tipo de anarquia possível. Hobbes em estado puro, infelizmente.

E ao mesmo tempo vemos bandidos endinheirados sendo glorificados em outras esferas da convivência humana… Ética bastante flexível esta – mas é outra história.

Uma salada para lá de indigesta.

(Imagens: Print Screen, Google e Uol)

13 Replies to “A “arrastada”, o jornalismo e a apologia do crime: uma salada indigesta”

  1. Excelente! Só um adendo ao segundo parágrafo: há muitos testemunhos de que os tiros saíram da polícia.

  2. Não vejo problema na fraseologia da manchete, já que ela de fato foi arrastada e isso também causa impacto negativo no leitor. Como você diz, ainda não se sabe as condições exatas em que ocorreu o fato, se ela foi baleada pelos traficantes ou pela PM, acidentalmente (já que não me passa pela cabeça que tenha sido proposital). Se foi um socorro mal feito com final trágico, isso tem que ser cobrado severamente, mas vejo que todos se adiantam em fazer julgamentos mesmo sem aguardar a conclusão de qualquer perícia. Enfim, isso parece ser o normal no Brasil …
    Suponhamos – apenas por um minuto – que por alguma preocupação com a vida de uma senhora baleada, talvez pelos traficantes (aqui assumo que o confronto seria com eles) eles tentaram um socorro desastrado, que terminou com a morte da senhora. Não estou reduzindo o fato a um ‘socorro desastrado’, mas esse pode ter sido o contexto real, ou isso é impossível?

    1. Mariana, era uma pessoa e um mínimo de dignidade há que se respeitar. Chamar de “Arrastada” é de uma falta de respeito assustadora – fora as outras considerações que já faço no texto.

      Quanto ao ítem 2, acho bem impossível, porque seguiu o mesmo ritual de inúmeros outros assassinatos perpetrados pela PM

  3. Pedro, desculpe, mas não tenho como concordar com esse texto que vi na timeline de um amigo.
    Primeiro, por que manchetes são, e tem que ser, curtas. Dentro da sua de dignidade e respeito que ela merece, então teríamos a seguinte manchete “Família de auxiliar de serviços, mãe de família e vítima da violência urbana, que depois de ser alvejada numa troca de tiros entre bandidos e policiais foi brutalmente arrastada por policiais numa viatura durante trajeto ao hospital, vai se reunir com Cabral”. Além de ser ridículo jornalisticamente, o corpo do texto existe pra isso. Chamada de texto, manchete, tem que ser curta!
    Segundo, você usa seu espaço pra dizer que “Zona Sul e Leblon é lugar onde “pobre não é gente” e “onde mais ressoam ideias como as defendidas pela apresentadora Rachel Sheherazade, o inclassificável Rodrigo Constantino (foto) e outros, de “justiceiros””. Veja como você também estereotipa as pessoas desse lugar, apenas por serem de lá, fazendo a mesma coisa que, segundo você dá a entender, os ricos privilegiados fazem: julgar.
    Texto com muito mimimi e vontade de alvoroço.

    1. Prezado Leandro, boa tarde

      Sei que uma manchete precisa ser curta, mas se referir a uma pessoa como “arrastada” é, no mínimo, uma tremenda falta de respeito. Se você acha correto e válido, só me resta discordar. Quanto ao item 2, usei o termo “basicamente” justamente para evitar generalização, mas ao que parece esta tua defesa desta classe social reafirma exatamente o que escrevi originalmente.

      Se você fosse leitor habitual do blog teria visto que o que menos ocorre aqui é “mimimi”

      1. Pedro,

        Não vou mais entrar no mérito da primeira parte. Só não vejo como se referir àquela mulher de outra forma numa manchete. Consegue dar uma chamada melhor? Pergunto com sinceridade, pois não consigo achar nada melhor pra caber naquele espaço.
        Na segunda parte, me desculpe, mas quando você usa o “basicamente”, você está se referindo à base, à maior parte, à parte que sustenta o resto. Então, sim, você está estereotipando aquela classe como “preconceituosa”, o que me leva a acreditar que você ou precisa entender melhor a semântica dessa palavra ou é mais um preconceituoso (de pré conceito, está tendo um conceito -que pode estar certo ou errado- antes de saber o que de fato é).

  4. Díficil não concordar com o artigo, especialmente quanto ao último parágrafo (que, por fim, acaba tendo uma enorme correlação com o resto do problema da sociedade “formadora de opinião”).

  5. Apesar de discordar de pequenos pontos, seu texto está brilhante, Pedro!!

    Só penso que os “justiceiros” existem porque a população cansou de ver bandidos saírem impunes de crimes – em todas as esferas, desde o assaltante que atira na vítima rendida até o político que desvia dinheiro público.

    Só que, infelizmente, o mote e a direção dos protestos e “justiças” está muito equivocado. Exemplo que ouvi esses dias e até concordo, em parte: “Por que os black blocs destroem patrimônio público? Por que eles não cercam, exemplo, o Palácio dos Bandeirantes e de lá não deixam ninguém sair de dentro, tal qual fizeram na Argentina?”.

    Como disse, o direcionamento dos protestos e da impunidade não tem vencedores. Mas há perdedores: os mesmos de sempre, os trabalhadores que, nas mãos de vermelhos ou azuis, são os mais prejudicados.

    Mas isso é outra história.

    Mais uma vez: perfeito texto, mesmo sem concordar 100%!

Comments are closed.