A quarta coluna da série “Sambódromo em Trinta Atos”, do jornalista esportivo Fred Sabino, relembra o desfile de 1987, marcado por excelentes apresentações de muitas escolas, mas um polêmico resultado que deu o campeonato à Estação Primeira de Mangueira, o que surpreendeu até mesmo os próprios componentes e torcedores.

1987: Equilíbrio incrível e bicampeonato injusto

Em meio a uma enorme crise deflagrada pelo fracasso do Plano Cruzado, as escolas de samba do Rio de Janeiro se desdobravam para confeccionar um Carnaval digno para o ano de 1987.

A inflação galopante dificultava muito o trabalho dos carnavalescos, já que os materiais para fantasias e alegorias alcançavam preços caríssimos e estavam em falta, enquanto as receitas das agremiações não conseguiam acompanhar esse ritmo.

Esse infeliz quadro seria retratado, por exemplo, no enredo da Caprichosos de Pilares, que, depois do decepcionante desfile de 1986, tentaria voltar a brilhar apostando numa crítica aos políticos brasileiros com o singelo título “Eu prometo (ajoelhou, tem de rezar)”. O Migão já escreveu sobre este desfile. Crítica também era a São Clemente, que abordava a gravíssima questão dos menores abandonados. O samba, em tom menor, não tinha meias-palavras.

Já a Mocidade Independente de Padre Miguel tinha o gênio Fernando Pinto de volta, com mais uma de suas invenções maravilhosas em forma de enredo: “Tupinicópolis” seria a retratação da cidade perfeita para os índios, mas com aspectos modernos, e bem “tupiniquins”.

“E por que não?”, questionava o Salgueiro de Renato Lage e Lílian Rabello. Por que não era possível um mundo com paz, harmonia e felicidade, com todos nós irmanados no objetivo da felicidade suprema?

Paz também pedia a Portela, com um enredo inspirado num poema de Walmir Ayala. “Adelaide, a pomba da paz” abordava a preservação das espécies na natureza. E com um sambão daqueles típicos da Majestade do Samba.

Poética também vinha a campeã Estação Primeira de Mangueira, numa homenagem ao inesquecível Carlos Drummond de Andrade. Já sem condições, o poeta não desfilaria (ele morreria naquele mesmo ano), mas a expectativa era grande, mesmo com críticas ao samba escolhido.

Se o poeta homenageado pela Mangueira não desfilaria, o mais brilhante autor da Unidos de Vila Isabel estaria lá firme e forte. Afinal, Martinho da Vila escrevera um samba antológico sem rimas para o instigante enredo “Raízes”, no qual Max Lopes retrataria como teriam surgido as estações do ano sob a ótica de uma lenda indígena.

Outras escolas também prometiam, como a Beija-Flor falando sobre o teatro, o Império Serrano com seu enredo homenageando Chacrinha e a comunicação, a Estácio de Sá com o “Tititi do Sapoti” já explodindo nas rádios antes do desfile e a Unidos do Cabuçu exaltando o Rei Roberto Carlos.

Apesar das limitações econômicas já citadas, o Carnaval de 87 acabou sendo um dos mais nivelados por cima vistos no sambódromo. As escolas proporcionaram belo espetáculo ao público, umas mais, outras menos.

OS DESFILES

O desfile de domingo começou com o Unidos do Jacarezinho, que fez uma homenagem ao grande compositor Lupicínio Rodrigues. Mas na sua estreia na elite do Carnaval a escola teve um punhado de problemas.

Uma alegoria que representava as irmãs Batista – famosas intérpretes das canções dor-de-cotovelo de Lupicínio – teve a queda de uma das esculturas no meio da pista. Outro carro quebrou logo na altura do Setor 1 e uma cratera se formou na evolução. Outro que deu voz às letras de Lupicínio, Jamelão desfilou numa alegoria e se viu numa escultura acima dele: “Nossa, não sou tão feio assim…”

Apesar da cadência da bateria, o samba-enredo não rendeu e os componentes cantaram sem empolgação. Com um conjunto visual sem impacto, afora os problemas, a Alvirrosa era candidata ao rebaixamento de cara. “Mesmo final dos amores sofridos de Lupicínio”, decretou o Jornal do Brasil.

O Império da Tijuca também teve muitas complicações. Para começar, os componentes ainda estavam de luto pela morte do compositor Marinho da Muda, um dos autores do bom samba para o enredo “Viva o Povo Brasileiro – ele foi enterrado na véspera do desfile e houve um minuto de silêncio na concentração.

A proposta era basear o cortejo no romance de João Ubaldo Ribeiro do mesmo nome, no qual se dizia que, apesar da Independência, o Brasil  de fato não era independente por ainda sofrer com fome e doenças, mas que o povo poderia com sua força alcançar a justiça social e a liberdade.

Mesmo com o cronômetro em andamento, a escola só começou o desfile efetivamente com 22 minutos por ter tido problemas na armação. Além disso, uma das alegorias teve um pneu furado e só passou pela pista rebocado. De qualquer forma, o conjunto visual não foi dos melhores, exceto uns bons momentos em alegorias, mas a divisão cromática não agradou pois havia muitas cores.

Como dizem por aí, “não há nada ruim que não possa piorar”, e nem com uma evolução apressada foi possível evitar o estouro dos 90 minutos regulamentares. Isso fatalmente renderia punições na apuração, portanto o rebaixamento era iminente.

Em compensação, a Estácio de Sá confirmou as boas expectativas da fase pré-carnavalesca. O samba – ou marcha, como alguns disseram à época – rendeu muitíssimo bem e a proposta das carnavalescas Rosa Magalhães e Lícia Lacerda foi apresentada com correção.

No desfile, a Vermelho e Branco passeou por diversos países onde o fruto sapoti era apreciado, como por exemplo na Índia, com uma alegoria apresentando reproduções de elefantes muito bem realizadas esteticamente.

Nos Estados Unidos, o sapoti virou goma de mascar e isso foi retratado de forma bem-humorada no abre-alas com o leão símbolo da escola associado ao da distribuidora americana de filmes Metro Goldwyn Mayer. Havia também uma criativa ala cujos componentes estavam fantasiados com uma malha rosa e uma bola de plástico também rosa na cabeça, simbolizando goma de mascar.

O intérprete Dominguinhos conduziu com animação o samba, que proporcionou evolução vibrante e harmônica até o fim. Sem dúvida, o melhor desfile estaciano desde a inauguração do sambódromo.

Em seguida, entrou na avenida a Caprichosos de Pilares. A preparação foi complicada, com divergências entre os carnavalescos Luiz Fernando Reis e seu auxiliar Wany Araújo. Para o primeiro, as alegorias deveriam estar preocupadas em contar o enredo. Para o segundo, que havia trabalhado com Joãozinho Trinta na Beija-Flor, os elementos deveriam servir como plataforma para destaques como mulatas.

Fato é que a escola apostou mais uma vez na crítica política escrachada e a Caprichosos, mesmo melhor do que em 1986 em diversos quesitos, não teve um conjunto visual dos mais auspiciosos. Um dos poucos destaques foi o abre-alas com um político que discursava para a burguesia e ficava de costas para o povo.

Também chamou a atenção a comissão de frente formada por componentes fantasiados do político Justo Veríssimo, personagem de Chico Anysio que detestava o povo. A crítica também foi contundente em diversos setores, como uma ala que representava o Estado Novo de Getúlio Vargas e tinha fantasias com a suástica nazista.

Mesmo assim foi um desfile frio porque o samba-enredo, popular na fase pré-carnavalesca, foi cantado num tom abaixo (ou seja, menos animado) do que se ouvia no disco, e não explodiu. A bateria, que teve Luma de Oliveira à frente dos ritmistas, esteve cadenciada e fez boa exibição.

salgueiro 1987A aguardada apresentação do Salgueiro acabou concretizando as expectativas. Na estreia do extraordinário intérprete Rixxa como cantor principal num desfile, o samba dos lendários Didi, Bala e Cezar Veneno conduziu maravilhosamente o desfile da Vermelho e Branco, amparada pela cadenciada e deliciosa bateria de Mestre Louro.

Aliás, o mestre teve sua família envolvida num grave incidente nos dias que antecederam o desfile. Louro, que era irmão do grande cantor Almir Guineto, teve o sobrinho Robson assassinado, segundo a Polícia, a mando do famoso traficante Pedro Marreco, chamado pelos jornais da época de “dono do morro” e com quem a família tinha uma antiga rixa. Como Louro havia sido procurado pelos assassinos de Robson no mesmo dia do crime, ou seja, também era alvo, ele desfilou com proteção policial e a presença do presidente Miro ao seu lado. Não houve incidentes no desfile e Marreco seria morto pela polícia quatro meses depois do Carnaval…

Mas voltando à paz desejada pelos carnavalescos, eles foram extremamente felizes no desenvolvimento do enredo, tanto em fantasias como alegorias. Pensavam eles que o mundo só seria melhor se sonhássemos alto.  Então, as guerras poderiam finalmente acabar e poderíamos finalmente ter paz, harmonia e boa convivência.

Uma das criativas alegorias tinha os presidentes José Sarney e Ronald Reagan presos nos tentáculos de um polvo, o que traduzia a vontade de o povo estar no poder. Outro pertinente elemento tinha um tanque de guerra com o cano do canhão fechado por um nó.

Como dizia o samba, o homem poderia virar “um passarinho e transformar o mundo, por que não,  num belo ninho”. Pena que 26 anos depois, as coisas só pioraram e não vivemos “de amar”… Para fechar brilhantemente o desfile, o Salgueiro passou com uma enorme pomba da paz no seu último carro alegórico. Era, sem dúvida, o melhor desfile até então, com boa vantagem sobre as demais escolas.

Sempre forte, a Beija-Flor vinha de dois vice-campeonatos e depositava suas esperanças no interessante enredo “As mágicas luzes da ribalta” sobre o teatro e cujo título era inspirado em um filme de Charles Chaplin. Com um visual bonito apesar de menos portentoso do que em anos anteriores, a escola nilopolitana não teve uma de suas apresentações mais vibrantes.

Isso porque o samba-enredo, apesar de bem escrito, era frio e ainda por cima deixaram a voz do conjunto vocal As Gatas (que sempre desfilava pela agremiação) muito alta, por vezes abafando o grande Neguinho da Beija-Flor.

Sem apelar para o uso de adereços de mão, João 30 depositou as esperanças nos carros. Os mais impactantes eram sobre o teatro medieval e a peça “O Rei da Vela”, de Oswald de Andrade. No primeiro, anões diabólicos saracoteavam num grande caldeirão, enquanto no segundo, os burgueses decadentes da peça apareceram muito bem fantasiados.

A Beija-Flor relembrou também o Teatro de Revista, numa bela alegoria que tinha Pinah como destaque. Peças mais densas como as de Nelson Rodrigues e leves como as de Maria Clara Machado também foram mencionadas, esta última na alegoria “Pluft, o Fantasminha”, que também tinha os personagens de um circo e as esculturas foram substituídas por bonecos infláveis.

Com a assinatura do grande Viriato Ferreira, os figurinos a meu ver foram o ponto alto do lindo desfile da Beija-Flor, que provavelmente alcançaria uma boa posição, mas ficou abaixo da apresentação do Salgueiro.

Já com dia claro, a Imperatriz Leopoldinense pisou na pista para pagar tributo a Dalva de Oliveira. A Rainha de Ramos voltava a ter o imortal Arlindo Rodrigues na concepção visual do desfile, que, no entanto, acabou prejudicado por falhas de evolução e harmonia.

Mas ainda assim foi um belo cortejo. A começar pela comissão de frente, que tinha grandes cantoras do nosso país como Beth Carvalho, Alcione, Elizeth Cardoso, Ellen de Lima, Marisa Gata Mansa e Célia, ricamente fantasiadas como Dalva estava vestida quando foi eleita Rainha do Rádio em 1951 – no entanto, essa opção de Arlindo não caiu bem para os tradicionais componentes da comissão…

O samba dos grandes Zé Katimba, Guga, Niltinho Tristeza e Bil Amizade era curtinho e facilitava o canto. A bateria esteve muito bem com o clássico naipe de tamborins “falando” alto. No carro de som, a escola teve o reforço do grande Rico Medeiros para auxiliar Alexandre da Imperatriz.

Apesar da boa concepção das alegorias (que na sua maioria tinham manequins, e não destaques), houve falhas de acabamento, já que a Imperatriz ainda não havia se recuperado das dificuldades financeiras que vivia.

A divisão do enredo foi feita em ordem cronológica, desde o nascimento da cantora, passando pela infância e adolescência, quando começou a cantar serenatas com o pai, e o casamento com Herivelto Martins e as famosas excursões no exterior.

Filhos de Dalva, Pery Ribeiro e Ubiratan participaram do desfile, que teve ainda a presença Lila, irmã da grande cantora e muito parecida com ela. Agradou muito a ala de baianas, que desfilou com bandeiras brancas representando a clássica marchinha interpretada por Dalva. Foi um desfile bastante agradável, mas irregular.

mangueira1987Quase às 8 da manhã de segunda-feira, encerraria o primeiro dia de desfiles a campeã de 1986 Mangueira, com a homenagem a Drummond. O enredo foi dividido em 12 quadros que representavam poemas de Drummond, como “A Procura”, “A Fazenda”, “Passeios na Ilha”, “Quixote e Sancho”, “Brincando de Brincar”, “O Elefante”, “Carnaval 1970”, entre outros. A sinopse foi aprovada pelo próprio poeta, que, no entanto, não desfilou por estar com 85 anos – ele morreria meses depois do Carnaval.

O samba, que havia sido criticado na fase pré-carnavalesca e realmente era inferior aos dos anos anteriores, cresceu muito no desfile em mais uma brilhante interpretação de Jamelão e também pela atuação da bateria de Mestre Taranta, com os componentes o cantando a plenos pulmões.

Mas alguns problemas atrapalharam a Verde e Rosa. O primeiro, fato até incomum no sambódromo, foi a invasão de pista. Uma horda gigantesca de penetras se colocou à frente da comissão de frente – que diga-se de passagem tinha Chico Buarque de Hollanda (foto ao lado) e outros poetas como Carlos Cachaça, Nelson Sargento, Hermínio Bello de Carvalho e João Nogueira. Isso amarrou a evolução, levando os diretores de harmonia à loucura e a bateria a ficar parada por alguns minutos antes da entrada no box.

O segundo, e mais complicado problema, era o conjunto visual da escola. Havia problemas de acabamento em algumas alegorias, que eram menores do que as de outras escolas. O saudoso carnavalesco Júlio Matos (foto abaixo), a despeito de sua característica de simplificar o conjunto visual para dar espaço ao sambista, foi menos inspirado do que em 1986, e a Mangueira continuava sem patrono a injetar recursos no barracão.

juliomatosAs fantasias estavam superiores aos carros e a divisão cromática até fugiu ao verde e rosa em diversos momentos, como numa ala toda em preto lembrando Charles Chaplin e o poema “Vida de cachorro”. Foi um desfile valente, com boa receptividade do público apesar do calor. Mas, diante do equilíbrio entre as escolas, a Mangueira parecia fora da briga pelo bicampeonato. Parecia…

A segunda-feira começou com uma boa apresentação da São Clemente. O título do enredo “Capitães de Asfalto” era um trocadilho com o clássico “Capitães da Areia” de Jorge Amado e a escola deu bem o recado crítico, clamando por um tratamento melhor às nossas crianças.

Visualmente a escola não passou tão bem, com destaque apenas para o abre-alas, com a representação de uma praça em que menores abandonados ficavam largados.

Por outro lado, numa pitada de bom humor, uma ala com travestis caricatos representava as babás dos menores de classe alta abandonados pelos pais. O enredo estava bem dividido e alas representavam empregos de menores de rua como catadores de lixo, entregadores de jornais e vendedores de frutas.

Com um samba-enredo contundente, a São Clemente teve uma boa harmonia e uma evolução correta. Por isso, apesar da irregularidade nas alegorias, a permanência no primeiro grupo estava praticamente certa, o que era o objetivo da escola.

Outro desfile bastante digno foi o da Unidos da Ponte: “G.R.E.S. Saudade”, uma homenagem aos antigos sambistas. O samba era curtinho e de boa melodia, e sou fã incondicional da clássica cadência da bateria de São Mateus naquela época.

Mas, é claro, a escola não tinha os mesmos recursos de outras. Havia apenas quatro carros alegóricos, com destaque para o abre-alas com esculturas de baianas. A escola preferiu depositar seus cruzados em tripés, no que acertou.

Apesar de não ter sido um desfile empolgante, a Ponte evoluiu bem e o objetivo de ficar na elite era bem plausível, já que duas escolas seriam rebaixadas e Jacarezinho e Império da Tijuca haviam tido muitos problemas.

cabucu1987Em seguida, desfilou a Unidos do Cabuçu, que homenageou Roberto Carlos. O enredo foi muito bem dividido, com carros e fantasias fazendo um passeio pelos sucessos do Rei.

Outra escola sem grandes recursos, a Cabuçu fez o que podia nas alegorias, com destaque para o abre-alas, em que cavalos alados, segundo o samba, levava uma carruagem em que “Apolo dedilhava sua lira e soavam notas que tocaram a tez de um mortal”.

Outro elemento que funcionou bem tinha o calhambeque da famosa canção do Rei, com Jerry Adriani e Wanderley Cardoso, e uma associação aos antigos corsos, com pierrôs e colombinas.

Roberto Carlos desfilou no alto da última alegoria esbanjando alegria e simpatia. Lady Laura e Erasmo Carlos também abrilhantaram o desfile e o samba teve boa aceitação por componentes e público. A permanência no primeiro grupo era mais do que certa naquele momento.

Dali em diante a briga pelas primeiras colocações seria indigesta.  O Império Serrano pisou com força na avenida com o enredo “Com a Boca no Mundo, Quem Não se Comunica se Trumbica”, sugerido por Fernando Pamplona e desenvolvido por Ney Ayan.

O samba dos brilhantes compositores Beto sem Braço e Aluísio Machado era coloquial e vibrante, e, como sempre, foi bem cantado pelo intérprete Quinzinho. A bateria imperiana voltou a dar show com seu conhecido naipe de agogôs e um andamento perfeito.

Mas a concepção alegórica acabou sendo um tanto irregular. Houve bons momentos como o do carro que representava a imprensa, com grandes rotativas e pilhas de jornais, e o carro da televisão, com muitas antenas. Mas o elemento do correio aéreo acabou destoando.

Os figurinos das baianas também eram criativos, com as saias tendo folhas de jornais e revistas. Com isso, a história da comunicação foi bem apresentada e a homenagem a Chacrinha no fim do desfile, um ano e meio antes da morte do comunicador, foi emocionante.

vila1987Logo depois do Império, um extraordinário desfile da Vila Isabel. Como dizia a lenda indígena – e o grande samba de Martinho, Ovídio Bessa e Azo -,  o Deus Maíra era o criador do universo e morava nas montanhas.

Ele era pai de Arapiá, que vivia com sete deusas de pedra e acabou se apaixonando por uma delas, Numiá, que se tornou Mãe dos Peixes, e ambos foram para o mar.

Lá tiveram Primavera, Verão, Outono e Inverno, seus quatro filhos. Em seguida, Maíra chamava Arapiá e Numiá para o céu e ambos viravam o sol e a lua, e cada um dos netos do deus comandaria o mundo por três meses. Dali, portanto, nasciam as estações do ano como conhecemos.

Para passar ao público essa lenda, o carnavalesco Max Lopes foi brilhante na concepção de fantasias e alegorias, formando um visual colorido e de ótimo gosto. Materiais como palha tinham o contraponto de plumas e a divisão cromática foi perfeita, no melhor estilo Max Lopes.

O samba-enredo sem rimas, mas de melodia encantadora, contava perfeitamente um enredo teoricamente difícil, e a sempre competente bateria deu sustentação à harmonia da escola.

Com as presenças de Paulo Brazão, um dos fundadores da escola, numa cadeira de rodas após um infarto, e Martinho da Vila, a Azul e Branco foi muito bem nos quesitos de pista e acabaria ganhando o Estandarte de Ouro de Melhor Escola.

A antepenúltima a entrar na pista foi a União da Ilha, com o enredo “Extra! Extra!”, sobre a história da imprensa. Muito inchada, a escola demorou a evoluir e teve de correr para não estourar o tempo.

Mesmo com um samba-enredo alegre cantado pelo imortal Aroldo Melodia, a Ilha não esteve tão bem como no ano anterior, apesar da ótima bateria de Mestre Paulão.

O enredo até que foi bem dividido pelo carnavalesco Alexandre Louzada, que lembrou dos classificados de um jornal, do caderno de Esportes, e até das páginas policiais e de previsões zodiacais. Mas a divisão cromática tinha um excesso de cores, o que pesou a escola.

Se o conjunto de fantasias foi irregular, os figurinos do grande casal de mestre-sala e porta-bandeira Bagdá e Juju Maravilha eram brilhantes, com muito cinza e prata. Mas foi aquele clássico desfile de meio de tabela.

A Águia branca da Portela adentrou o sambódromo pouco antes do amanhecer e a Azul e Branco foi outra escola que confirmou as expectativas. Mesmo desfalcada do intérprete Silvinho do Pandeiro e de Mestre Marçal (este comandando a bateria da Unidos da Tijuca no Grupo 1B), a Majestade do Samba fez uma das melhores apresentações do ano.

A agremiação surpreendeu ao desfilar multicolorida (para alguns, um exagero), mas, a meu ver, isso era pertinente ao enredo, que clamava pela preservação das nossas espécies e da natureza; esta, cá entre nós, é mesmo cheia de cores. Já as alegorias tinham um conjunto irregular.

Dizia o poema que serviu de inspiração ao enredo que a pomba Adelaide se perdia na floresta e, ao descobrir o significado da palavra amor, se tornava mensageira da paz.

O samba era lindo e foi muito bem cantado pelos componentes, que desfilaram à altura das tradições portelenses. Especialmente os trechos “Voa, voa, voa…/Deixa a tristeza de lado/Voa, voa, voa…/Vai levar o seu recado” e “Ilumina  a escuridão/E faz feliz um coração/De qualquer sofredor” são emocionantes.

Com uma evolução contínua e sem sobressaltos, a Portela chegou à Apoteose sob aplausos do público, que atirava para o alto suas ventarolas no refrão citado. A Azul e Branco estava bem cotada para a apuração, embora o conjunto visual não tenha sido perfeito.

mocidade+87+2A última apresentação do Carnaval-87 para mim foi a melhor. Sob sol forte, entravam em cena a metrópole indígena idealizada por Fernando Pinto e a Mocidade Independente de Padre Miguel. E realmente foi o ponto alto daquele ano – o Migão também já escreveu sobre esse desfile no blog.

Não faltou nada na cidade dos sonhos do povo indígena, havia moeda, indústria, comércio e lazer. O Shopping Boitatá trazia todos os artigos para o consumo dos tupinicopolitanos. As Forças Armadas eram representadas pelo “Tatu Guerreiro” (Exército, foto); o “Marreco Bélico” (Marinha) e o “Aero Gaviavião” (Aeronáutica).mocidade87_1

Do começo ao fim, Fernando Pinto brindou o público com uma surpresa atrás da outra. E, claro, com as cores brasileiras predominando, sem que, entretanto, outros tons deixassem de ser usados em alegorias e fantasias. Havia também ironias como a de que 1 guarani valia mais do que 500 cruzados, a moeda do Brasil vigente à época.

mocidade87Bira, Jorjão e Léo comandaram a Bateria Nota 10 (era assim naquele tempo), que foi mais uma vez impecável e Ney Vianna conduziu muito bem o samba ao lado de David do Pandeiro. O samba, aliás, foi considerado um dos poucos senões da Mocidade em 1987. Embora alegre e com boa leitura sobre o enredo, devia a outros em riqueza melódica.mocidade87c

Outro problema, levantado por Fernando Pamplona na transmissão da TV Manchete, foi o fato de o casal de mestre-sala e porta-bandeira Roxinho e Irinéa ter desfilado sem chapéu, o que poderia custar pontos preciosos.

Com o público empolgadíssimo apesar do calor, a Mocidade terminou seu desfile com o chamado arrastão da alegria.

REPERCUSSÃO E APURAÇÃO

Apesar do incrível equilíbrio entre as escolas, que fizeram apresentações muito boas, o sentimento entre os amantes do Carnaval era o de que dificilmente outra escola tiraria a vitória da Mocidade, tamanho o impacto e brilhantismo de sua exibição.

Mas um fator poderia embolar a apuração. Ao contrário de outros anos, não seriam adotados critérios de desempate e existia o temor de que várias escolas terminassem iguais porque haveria o descarte da pior nota em cada quesito. Isso acabou se confirmando, mas não da forma como se esperava…

Quem me conhece, sabe que torço pela Mangueira e não vejo o desfile de 1987, nem o samba, com tanto pessimismo, embora com claras ressalvas. Mas novamente escrevo com convicção depois de voltar a ver diversos desfiles daquele Carnaval que a vitória da Verde e Rosa foi absolutamente injusta. Pelo menos, por baixo, Mocidade, Vila Isabel, Salgueiro, Portela e Império Serrano tiveram desfiles superiores no conjunto.

No fim, a Mangueira terminou com 224 pontos, um a mais do que a Mocidade. Os temidos empates viriam a seguir, com Império e Portela em terceiro, Beija-Flor (injustamente) e Estácio em quarto, Salgueiro e Vila Isabel (esta absurdamente) em quinto.

RESULTADO OFICIAL

POS. ESCOLA PONTOS
Estação Primeira de Mangueira 224
Mocidade Independente de Padre Miguel 223
Império Serrano 221
Portela 221
Beija-Flor de Nilópolis 219
Estácio de Sá 219
Acadêmicos do Salgueiro 216
Unidos de Vila Isabel 216
Imperatriz Leopoldinense 203
São Clemente 197
Unidos do Cabuçu 197
Caprichosos de Pilares 196
União da Ilha do Governador 190
10º Unidos da Ponte 188
11º Unidos do Jacarezinho 170 (rebaixada)
12º Império da Tijuca 152 (rebaixada)

O resultado foi tão surpreendente que a quadra da Mangueira estava vazia na hora da vitória, ao contrário do que ocorrera nos anos anteriores em que a escola brigou pelo título, e até mesmo os mangueirenses que estavam na apuração no Maracanãzinho levavam faixas de apoio à Vila Isabel.

Na época, falaram em julgamento de cartas marcadas e o governador Leonel Brizola foi acusado de orquestrar a vitória de uma escola popular como a Mangueira para ter apoio político do povo.

Fato é que no Desfile das Campeãs o público vaiou a Mangueira e a invasão de pista foi ainda mais acentuada do que na apresentação oficial, o que irritou Jamelão.

Se o título mangueirense foi mesmo manipulado, não dá para provar, sem contar que o objetivo da coluna é outro. Mas que foi injusto, isso foi…

CURIOSIDADES

– A equipe da TV Manchete naquele Carnaval tinha a ilustre presença de João Saldanha entre os comentaristas. Seria a única vez que isso aconteceria. Sem papas na língua, Saldanha soltou uma pérola no desfile da Mangueira: “Vem aí a Mangueira, vem aí o Jamelão pulando que nem um potrinho (…) quando passou uma escolinha aí, fui dormir um pouco, agora tô aqui fresquinho!”

– Na parte de trás da concentração era possível ver dois enormes logotipos em neon da Globo e da Manchete, que novamente fizeram um pool para transmitir os desfiles.

– Foi o último Carnaval de dois dos grandes carnavalescos da história: Fernando Pinto e Arlindo Rodrigues, que morreriam ainda em 1987. O primeiro terminou com dois títulos (1972, pelo Império Serrano, e 1985, pela Mocidade) e o segundo com oito (1960, 1963, 1965, 1969, 1971, pelo Salgueiro, 1979, pela Mocidade, 1980 e 1981, pela Imperatriz Leopoldinense).

– Pela primeira vez na história, Martinho da Vila gravava um samba-enredo de sua autoria no disco oficial – em 1984, em outro samba dele, Martinho gravou o grito de guerra e alguns cacos. Na histórica gravação, sua voz se revezava com a do intérprete Gera.

– No segundo grupo, a vitória ficou com a Unidos da Tijuca, mas o destaque absoluto foi o vice-campeonato da Tradição, que, pela primeira vez, conseguia subir para a elite, três anos após a fundação. O samba “Sonhos de Natal”, de João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro, era sensacional.

CANTINHO DO EDITOR (por Pedro Migão)

Este ano houve o famoso caso da jurada Marina Montini, que deu notas 5 e 6 a todas as escolas e 10 à Mocidade. De acordo com amigo que estava na Coordenação dos Jurados aquele ano, o quesito Conjunto era julgado através de dois subitens: SEQÜÊNCIA (notas de 3 a 6) e UNIDADE (notas de 2 a 4). Por infelicidade para a jurada, a Seqüência estava na pág. 27, enquanto que a Unidade estava na pág. 28… Montini NÃO virou a página; ou seja, ficou só na página 27, dando notas de 3 a 6. E assim foi.

Na Mocidade, última escola, ela deixou em branco. Na justificativa, escreveu que o desfile foi fantástico e disse que merecia nota máxima. Só que para ela, a nota máxima era 6, mas o locutor ao ver nota em branco e ler que merece nota máxima, disse… DEZ, nota DEZ! Nas entrevistas após essa confusão, ela dizia que não lembrava de ter dado 10, e realmente não deu.

A preparação do desfile da Caprichosos foi prejudicada por uma divergência conceitual entre o carnavalesco Luiz Fernando Reis e seu assistente Wany Araújo. Tal divergência acabaria resultando no afastamento do carnavalesco após o desfile.

Unidos da Tijuca e Tradição empataram com 203 pontos na apuração do Grupo 1B, mas a escola tijucana se sagrou campeã no desempate. O curioso é que o samba da Unidos sobre o Plano Cruzado está claramente datado, enquanto “Sonhos de Natal” é um dos grandes sambas da história – e um dos poucos a escapar da “sanha reeditória” recente da escola de Campinho.

Drummond não merecia um samba que rimava “achei” com “imaginei” em seu refrão principal…

Como já escrevi na coluna sobre este desfile, “Tupinicópolis” acabou sendo o canto do cisne de Fernando Pinto. Ele faleceu em novembro deste mesmo ano em um acidente de carro após um ensaio da escola.

Links

O especial da Globo com os desfiles de 1987

O desfile campeão da Mangueira em 1987

A grande apresentação da Mocidade

A Vila Isabel na avenida, com “Raízes”

O Salgueiro pergunta “Por que não?”

A bonita apresentação da Portela

Fotos: O Globo, Extra e reprodução de TV

6 Replies to “Sambódromo em 30 Atos – “1987: Equilíbrio incrível e bicampeonato injusto””

  1. O que motivou a queda do Império da Tijuca, mais do que um desfile que não esteve à altura dos anteriores, foi o atraso da escola. O cronômetro foi implacável e a agremiação não pode evitar o descenso. Lembro bem desse carnaval pelo sambaço da Vila e pela polêmica causada pela vitória da Mangueira e as notas da Marina Montini. E realmente o “Tititi no Sapoti” era o mais executado de 1987 nas rádios, disparado.

    1. Falando sobre o Imperinho, esqueci de lembrar no texto que a escola perdeu o compositor Marinho da Muda no dia do desfile e isso, claro, abalou os componentes… Tomara que a escola se apresente bem em 2014 com um dos melhores sambas da safra!

    2. O Império da Tijuca apostava neste desfile para dar um salto.Infelizmente,não deu para a escola da Formiga.

  2. Você se esqueceu de citar que outro gênio do Carnaval,Arlindo Rodrigues,fez TAMBÉM seu canto de cisne com “Estrela Dalva”,pois ele faleceria um mês e meio antes do falecimento de Fernando Pinto.

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