Hoje o advogado Gustavo Cardoso inicia mais uma série de duas colunas, envolvendo nazistas fugitivos, política internacional e o pós guerra.

Século Monstruoso – Parte I

Nesta sexta-feira 25, o criminoso de guerra nazista Klaus Barbie (foto) faria 100 anos se estivesse vivo. Capturado em 1983, foi julgado na França, onde era conhecido como “o açougueiro de Lyon”. Como capitão da SS e chefe da Gestapo naquela cidade durante a ocupação alemã, matou sob tortura o principal líder de campo da Resistência Francesa, Jean Moulin. É considerado responsável direto pela morte de quatorze mil pessoas, inclusive crianças arrancadas de um orfanato e enviadas para Auschwitz.

Entre os julgamentos de nazistas, depois de Nuremberg, só o de Adolf Eichmann atraiu mais atenção que o seu. Em Nuremberg, eram os aliados julgando e condenando o nazismo; no de Eichmann, eram os judeus; no de Barbie, era a França. Não é sem motivo que Barbie esteja esquecido hoje em dia, nem é sem motivo que faço questão de lembrá-lo. Nosso aniversariante traz lembranças incômodas não só para os alemães, mas para os vencedores da Segunda Guerra Mundial.

Na narrativa destes vencedores, o nazismo encarnava o “mal absoluto”, e os que lutaram contra ele eram, logicamente, os “bons”. O julgamento de Eichmann embaçou esta versão a partir das observações perspicazes e impertinentes de Hannah Arendt, que viu a “banalidade do mal” naquele carrasco, mero burocrata que, simplesmente seguindo ordens, cometera horrendas atrocidades. Uma ideia insuportável, pois sugeria que, dadas as condições, os piores crimes podiam ser cometidos não apenas por monstros, mas por qualquer um de nós.

Barbie foi um personagem ainda mais incômodo. Ao contrário do inexpressivo Eichmann, confirmava nos mínimos detalhes a ideia que se faz do nazista típico: arrogante, sádico, brutal, fanaticamente racista e antissemita. Em Lyon, torturava barbaramente os prisioneiros com as próprias mãos, e os testemunhos atestam que sentia prazer genuíno na tarefa. As sessões incluíam quebrar ossos dos cativos, arrancar a pele de pessoas ainda vivas, estupros (praticados por ele próprio e por cachorros), e assim por diante. Ideologicamente, manteve-se um nazista convicto e sem remorsos até o fim. Quando vivia incógnito na Bolívia, chegou a ser expulso de um clube por fazer ostensivamente a saudação hitlerista.

O desconforto com Barbie se dá porque sua vida no pós-guerra desmonta muitos dos mitos narrativos que até hoje povoam nosso imaginário sobre a Segunda Guerra. É uma parte muito importante da cultura política americana a ideia de que os Estados Unidos representavam o “bem”, que salvou o mundo do “mal” nazista. Na Grã-Bretanha, dá-se o mesmo no culto a Churchill, o homem que, pelo bem da civilização, teimosamente enfrentou um poder nefasto que parecia invencível. Na Rússia, o “Dia da Vitória” é feriado nacional. Na verdade, todos nós hoje nos sentimos, de algum modo, partícipes daquele que muitos consideram o grande combate da nossa era. Repudiar o nazismo é estar “do lado do bem”.

Mas enquanto Eichmann (ou ao menos o Eichmann descrito por Arendt) se tornou um personagem confuso por embaralhar a própria noção de “mal”, Barbie servia adequadamente ao propósito de caracterizar o nazismo como maligno, mas não – que azar! – ao de figurar os adversários do nazismo como bons. Decorre daí, creio, a razão pela qual um personagem tão interessante tenha sido varrido para baixo do tapete da História.

Após a derrota alemã na guerra a França não conseguiu achar Klaus Barbie, e o condenou a morte à revelia. Ele foi rapidamente encontrado pelos serviços secretos americano e britânico, os quais, ao invés de entregá-lo aos franceses, o contrataram para trabalhar clandestinamente, com outros nazistas foragidos, na montagem de um sistema de inteligência para combater o comunismo na Europa. Outro interesse dos aliados era que Barbie lhes prestasse consultoria em técnicas de interrogatório (leia-se tortura).

Não foi um caso isolado. Uma unidade inteira da inteligência americana encarregada de espionar o bloco socialista, a Organização Gehlen, foi montada na Alemanha sob o comando do General Reinhard Gehlen, que fora chefe do serviço de espionagem de Hitler no front oriental. Suas centenas de membros eram, na maioria, ex-integrantes da SS. Em 1968, quando o serviço já fora incorporado aos quadros da Alemanha Federal, Gehlen se aposentou com as mais altas condecorações daquele país.

Barbie recebeu outro tipo de missão. Quando os franceses descobriram que ele estava trabalhando para os EUA, os americanos o ajudaram a fugir para a Bolívia, onde continuou trabalhando para a CIA, e a partir de 1965, também para o serviço secreto da Alemanha Ocidental, sob o nome falso de Klaus Altmann. A Bolívia tem uma considerável comunidade alemã, e Barbie/Altmann se sentiu em casa ao chegar a La Paz e ver um desfile da FSB, um partido de extrema direita de inspiração nazista, à época o segundo maior do país. Também não teve dificuldade de prosperar como contrabandista de armas, em sociedade com o próprio governo boliviano, e possivelmente também como traficante de drogas.

As rotas de fuga de vários oficiais nazistas para a América do Sul, com omissão e depois auxílio americano, e apoio logístico da Igreja Católica e da Organização Gehlen, ficaram conhecidas como “caminhos de ratos” (ratlines), e trouxeram para estas plagas uma verdadeira comunidade de nazistas que mantinham contato entre si e prestavam-se ajuda mútua. Vários deles tiveram proteção especial do governo, especialmente o de Perón, e alguns se tornaram eminências pardas em ditaduras sul-americanas neonazistas, como Hans-Ulrich Rudel no Paraguai de Stroessner e Walter Rauff no Chile de Pinochet. Ainda no Chile, outro nazista, Paul Schäffer, recebeu asilo e, sob os auspícios do governo, fundou uma sinistra sociedade que colaborou com a máquina de tortura de Pinochet e que, como se soube depois, se dedicava ao abuso de crianças.

O Brasil extraditou Franz Stangl e negou a extradição de Gustav Wagner por razões técnicas. O cientista louco Josef Mengele viveu aqui após fugir da Argentina, mas não consta que tenha sido ajudado pelo governo. Suspeita-se que fora protegido pelo ditador Stroessner quando residiu no Paraguai.

Klaus Barbie/Altmann beneficiou-se desse ambiente, e também da falta de interesse de seus perseguidores. Os franceses o localizaram em 1963, quando o presidente era Charles de Gaulle, superior imediato de Moulin na Resistência, mas preferiram manter a informação em sigilo e não pedir sua extradição. Os israelenses sabiam de seu paradeiro, mas não fizeram planos de sequestrá-lo (como Eichmann) nem de assassiná-lo (como Cukurs). Trabalhando para a CIA, o nazista planejou, ou pelo menos se gabava de ter planejado, a operação que resultou na captura e assassinato de Che Guevara.

Por fim, tornou-se conselheiro e estrategista dos ditadores-assassinos Hugo Banzer e Luis Meza, e recebeu a patente de tenente-coronel do exército boliviano. Em 1972, sua identidade veio a público de forma escandalosa, e a França foi forçada a pedir sua extradição. Banzer negou, e Georges Pompidou não insistiu. Mas dez anos depois o democrata Hernán Siles assumiu a presidência da Bolívia, e na França estava François Miterrand, certo de que o julgamento do carrasco nazista seria um momento de júbilo cívico em seus país. Por US$ 50 milhões, a Bolívia entregou Barbie à França.

5 Replies to “Pitaco: “Século Monstruoso – Parte I””

  1. O advogado Gustavo Cardoso é um estudioso da história e pesquisador perspicaz, por isso mesmo não sou eu que vai lhe fazer alguma crítica. Entretanto, da maneira como colocou, ficou parecendo que a Igreja Católica, como instituição, ajudou na fuga de nazistas e sua instalação em países católicos da América Latina. O que se sabe é que a Igreja Católica permaneceu neutra e está pagando por essa neutralidade ainda nos dias de hoje. Sabe-se ainda que alguns setores da Igreja ajudaram na fuga de judeus do nazismo, como se sabe também que outros setores radicais, chefiados pelo bispo Alois Hudal, através dos ratlines, como citou o advogado, ajudaram na fuga de fugitivos nazistas, a exemplo de Eichmann, Stangl, Mengele e outros, não sendo justo que a Igreja como um todo pague pelos erros de alguns.

    1. Caro Felipe, não discuti a posição da Igreja Católica durante a guerra. Em relação às ratlines, quis dizer isso mesmo: A Igreja como instituição ajudou na fuga de nazistas e na sua instalação em países católicos da América Latina. Alguns clérigos protegeram judeus por iniciativa própria antes e durante a guerra, e o mesmo se deu no auxílio aos nazistas no pós-guerra. A ajuda aos nazistas tornou-se institucional quando o Papa e a alta cúpula do Vaticano resolveram se envolver diretamente. Para afirmar isso, me reporto à historiografia plenamente reconhecida.
      A ratline de São Jerônimo foi operada por franciscanos croatas ligados à Ustase, uma organização terrorista fascista responsável por 1 milhão de mortes na Sérvia. Esta ratline abrigou durante algum tempo criminosos de guerra foragidos no monastério da São Jerônimo e no próprio Vaticano. Para se deslocar com segurança, esses nazistas usavam um carro do Corpo Diplomático do Vaticano. Igualmente, a Secretaria de Estado do Vaticano interveio pela libertação de membros da Ustase que estavam em poder da Grã-Bretanha e dos EUA (Mark Aaron e John Loftus, Unholy Trinity).
      A ratline de Roma, estruturada pelo bispo Hudal, permitiu a fuga de nazistas com documentos oficiais emitidos pelo Vaticano (Gitta Sereny, Into the Darkness). As primeiras ratlines espanholas foram montadas por prelados locais, mas posteriormente foram “adotadas” pelo Vaticano por decisão pessoal do Papa (Michael Phayer, Pius XII). A instalação dos nazistas na Argentina foi uma operação coordenada de Perón com a cúpula da Igreja, notadamente o cardeal Caggiano. Foram os religiosos argentinos que estabeleceram conexões com seus pares na Europa para evacuar os criminosos nazistas de cada país (Uki Goñi, The Real Odessa).

  2. Qual seria o interesse da Igreja Católica em proteger criminosos de guerra nazistas? A Igreja se posicionou a favor do nazismo ou do fascismo durante a segunda guerra mundial? No Brasil, o movimento de católicos radicais TFP tinha inclinações nitidamente nazi-fascistas.

  3. A Igreja Católica ficou neutra na Segunda Guerra Mundial, mas não isenta de compromissos políticos. Havia um quase-consenso entre os operadores do Vaticano de que a posição de neutralidade adotada na Primeira Guerra havia sido a melhor escolha. A Igreja se pronunciou de forma discreta contra as perseguições aos judeus, mas não tomou nenhuma atitude séria a este respeito, não podia e não queria tomar.
    O Papa Pio XII era um típico hierarca católico: habilidoso nos bastidores e politicamente conservador. Como todos os conservadores no entre-guerras, sentia especial aversão pelo bolchevismo e, se não era nazista, sentia alguma simpatia pelo papel de contenção que o nazismo, acreditava, fazia ao comunismo. Foi Núncio Apostólico do Vaticano na Alemanha nos anos 20 e manteve sempre interesse especial pela política alemã. Sua posição geral foi ambígua: reprovava a intolerância racial e o radicalismo político de Hitler, mas o via como um mal menor à alternativa stalinista.
    Por seu turno, sua habilidade política o levou a ser um dos articuladores do Tratado de Laterano, que fez da Santa Sé um Estado reconhecido pelo direito internacional, e à posição de primeiro Secretário de Estado do Vaticano após tal Tratado. O acordo foi costurado com o regime fascista italiano, e deixou a Igreja penhorada a Mussolini, sem condições de fazer-lhe oposição.
    Assim, pode-se dizer que a posição adotada por Pio XII nos anos 40 (durante e depois da guerra) foi um misto de convicção ideológica, pragmatismo político e da milenar opção da Igreja por jogar a sujeira para baixo do tapete. Segundo Michael Phayer (“Pius XII, The Holocaust, and the Cold War”), o Papa “preferia ver os criminosos de guerra fascistas embarcando em navios para o Novo Mundo do que apodrecendo em campos de prisioneiros de guerra”.

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