Nesta sexta feira a segunda parte do artigo do advogado Gustavo Cardoso sobre o julgamento do criminoso de guerra Klaus Barbie e algumas reflexões políticas a partir do caso.

Século Monstruoso – Parte II

Quando Klaus Barbie chegou à França para ser julgado, a sociedade estava agitada por reencontrar uma parte abjeta de seu passado. A ocupação alemã foi um dos episódios mais dolorosos da história francesa, não apenas pelo terror e a humilhação, mas porque a maioria dos franceses se resignou a ela, e alguns colaboraram com os nazistas. Toda nação depende do mito de união e coragem do povo para manter-se intacta, e este mito fora arranhado durante a guerra.

Outro ponto sensível era que, a fim de evitar uma terceira (e provavelmente última) guerra mundial, a Europa iniciou no pós-guerra o arranjo para uma nova era, que pressupunha colaboração entre os Estados, e possivelmente até uma futura unificação. Os países que formavam o eixo deste arranjo eram justamente França e Alemanha. Ou seja, a fim de seguir em frente, os franceses tentaram colocar uma pedra no passado recente. A Resistência foi glorificada, mas fazendo-se um esforço para não demonizar seus antípodas: os colaboracionistas e os alemães.

O julgamento de Barbie colocava em risco este frágil consenso. Para completar, era inegável que os que libertaram a França da ocupação foram os mesmos que deram a mão a um de seus carrascos mais cruéis. Mas o Açougueiro de Lyon era um homem tão odioso, e tão claramente culpado dos crimes dos quais era acusado, que pareceu à maioria que o evento seria uma oportunidade de lavar a alma francesa e unir o povo como há muito não acontecia. “Somos os bons, derrotando os maus”.

Havia um homem a quem não agradou este plano de autoindulgência. Este era o grande advogado Jacques Vergès, uma das figuras mais controvertidas do século XX. Comunista, ardentemente anti-imperialista, filho de pai francês e mãe vietnamita, sentiu na pele o racismo de seus próprios compatriotas (seu pai, um diplomata, perdeu o posto por casar-se com uma asiática). Sabia por experiência própria que os povos do mundo não se dividem simploriamente em “bons” e “maus”.

Na Segunda Guerra, atuou na Resistência Francesa. Depois, assistiu, horrorizado, a seus colegas de resistência esmagarem a insurgência na Argélia com táticas, torturas e uma ideologia racista que em tudo lembravam o que sofreram sob o nazismo. Entendeu que o nacionalismo e o imperialismo francês eram duas faces da mesma moeda. Tornou-se advogado de grupos argelinos que lutavam pela independência, e chamou os franceses de “nazistas na Argélia”.

Uma de suas clientes foi Djamila Bouhired, condenada à morte por atentados terroristas. A sentença foi revertida, e Djamila se tornou sua esposa. Sem medo de polêmicas, era amigo de Mao Tsé-Tung e Pol Pot, e defendeu sequestradores de aviões e vários terroristas famosos, entre eles Carlos, o Chacal. Seu maior adversário na vida foi o ocidente, e isso incluía o Estado de Israel, que via como mais um empreendimento colonialista. Sua polêmica lista de assistidos lhe valeu a alcunha de “Advogado do Diabo”.

Vergès viu no julgamento de Klaus Barbie uma chance única de esfregar na cara da França seu próprio passado e sua própria hipocrisia. Ofereceu-se como seu defensor, o que espantou o próprio réu. A equipe que assessorava Vergès continha africanos, árabes e asiáticos, e era surreal ver aquele time em defesa de um nazista.

Logo no início do julgamento ficou claro que o verdadeiro objetivo de Vergès não era o de defender Barbie, mas atacar a sociedade francesa. Em sua primeira manifestação, o réu negou as acusações que lhe eram imputadas e alegou estar apenas cumprindo ordens. Vergès, que não tinha interesse nesse tipo de defesa, fez seu cliente ler, no dia seguinte, um pedido de que não acompanhasse pessoalmente o julgamento, o que era permitido pela lei processual.

Sem a presença de Barbie, Vergès assumiu definitivamente o protagonismo. Ele não se preocupou em negar os crimes atribuídos a seu cliente, nem em minimizar sua participação no holocausto, nem mesmo em utilizar argumentos técnicos para questionar as circunstâncias do julgamento. A cada atrocidade narrada pela acusação, o que Vergès fazia era compará-la com outra, semelhante, cometida pelo imperialismo ocidental, e pelo francês em particular.

A narrativa, por vítimas e testemunhas, dos horrores praticados pelo “açougueiro” chocou a Corte, mas a catarse era frustrada pelas réplicas do “advogado do diabo”, sempre lembrando aos franceses que, por pior que fosse Barbie, eles não tinham o direito de se proclamar o “lado bom da humanidade”. Até a deportação das crianças órfãs para a morte era, segundo Vergès, culpa dos franceses que colaboraram com o regime de Vichy, inclusive judeus franceses.

O ponto culminante do julgamento foi o testemunho de Elie Wiesel, um sobrevivente de Auschwitz que se tornara um porta-voz das vítimas do Holocausto e recebera o Prêmio Nobel da Paz no ano anterior. Ele não presenciara os crimes de Barbie, mas sua autoridade moral era uma importante arma da acusação. Falou sobre a natureza do genocídio nazista, e foi especialmente pungente quanto ao destino das crianças.

Quando chegou sua vez de interrogá-lo, Vergès perguntou a Wiesel como se posicionou diante da morte de milhares de crianças argelinas em campos de concentração durante a guerra de independência, e sobre as centenas mortas em My Lai, exterminadas pelo exército americano na Guerra do Vietnã. Wiesel alegou que não se pronunciou na época por não ter conhecimento do que acontecia.

Vergès então perguntou sua opinião sobre o Massacre de Deir Yassim, cometido por guerrilhas israelenses numa aldeia palestina em 1948. Para isso não havia resposta. Na época, Wiesel era colaborador do Irgun, o próprio grupo que cometeu a atrocidade. Após um breve tumulto, Wiesel se limitou a dizer que se posicionava a favor de Israel, e fez críticas genéricas aos árabes.

A indiferença de Vergès com o destino de seu cliente e seu propósito diversionista eram tão flagrantes que, em suas alegações finais, quando deveria fazer o apelo por Barbie, levou ao centro da sala dois advogados, um argelino e um congolês, que fizeram um “apelo pelos povos árabes” e um “apelo pelos povos africanos”. Ambos denunciaram crimes do colonialismo que envergonharam o ocidente, mas não tinham nada a ver com o acusado nazista.

Em 1987 a França abolira a pena de morte, de modo que Barbie foi condenado à prisão perpétua. Faleceu em setembro de 1991, aos 77 anos. Jacques Vergès viveu até agosto de 2013, deixando viúva Djamila Bouhired. Seu último trabalho internacional foi a defesa, em 2008, de Khieu Samphan, Presidente do Camboja e um dos líderes do Khmer Vermelho. Também ofereceu seus serviços a Slobodan Milosevic, mas este preferiu defender a si próprio. Em sua última entrevista, foi-lhe perguntado se defenderia Hitler. Vergès respondeu: “Eu defenderia até Bush! Mas só se ele se declarasse culpado.”

Atualmente, no discurso político do mundo inteiro, principalmente nos EUA, fala-se o tempo todo de nazismo e Segunda Guerra Mundial. Qualquer tiranete é um “novo Hitler”, qualquer apaziguador é um “novo Chamberlain”, qualquer um que se pretenda um grande líder é um “novo Churchill”. Colonialismo, imperialismo e as relações incestuosas entre potências ocidentais, ditaduras latino-americanas e nazistas, ao contrário, são temas tabus.

É improvável que a maior parte da imprensa mundial tenha se lembrado, hoje, dos cem anos de Klaus Barbie.

One Reply to “Pitaco: “Século Monstruoso – Parte II””

  1. PS: Só soube de dois jornais, ambos de pouca importância, que se lembraram dos 100 anos de Klaus Barbie: um no México (http://www.excelsior.com.mx/global/2013/10/25/925298), outro na Eslováquia (http://www.topky.sk/cl/13/1365956/Klaus-Barbie–Masiar–ktory-velil-gestapu–Jeho-metody-boli-drasticke-).
    Coincidência ou não, esta semana o The Atlantic publicou uma resenha sobre “Postwar” (“Pós-Guerra”), de Tony Judt, que fala da “amnésia seletiva da Europa no pós-guerra”, e que cita Barbie, mas sem lembrar seu centenário (http://www.theatlantic.com/international/archive/2013/10/the-selective-amnesia-of-postwar-europe/280789/)

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